sexta-feira, 31 de julho de 2015

A CALÇOLA DE TIA ZIZINHA

A CALÇOLA DE TIA ZIZINHA




 
A calçola de tia Zizinha


Apesar de franzina tia Zizinha era uma setentona valente, de semblante calmo, de voz firme e olhar seguro. impunhava respeito,    nem só os seus sobrinhos, mas todos a chamavam de Tia Zizinha, era ela quem organizava as quermesses, as partidas de futebol, as torcidas organizadas e as festas do milho. 

Quando jovem, ganhou concursos de Rainha da Paróquia, embora pequena e  sequinha, fora a minha tia um verdadeiro furacão ou um vulcão em atividade.



Era dezembro de 1978,  a cidade se achava em chamas , a população duplicada devido a presença dos visitantes para a maior vaquejada da região , cavalos espalhados em todos os recantos e baixios,  bois nos currais, caminhões e caminhonetes enchiam as ruas de chão batido,  carros de som martelando ouvidos, canções sertanejas aproximando os apaixonados, rodas gigantes, canoas, tiro ao alvo e muita comida regional, tudo idealizado, organizado e executado por tia Zizinha.



O relógio marcava 12 horas,  a conversa rodeava a farta mesa do almoço, o papo solto campeava na imensa sala da amada tia, eu, sempre tirado a conversador, iniciei uma discussão sobre a vida, sobre a grandeza do universo, sobre a importância do ser humano e o quanto de orgulho possui uma certa classe social, apesar da insignificância, depois da longa prosa filosófica, em tom de deboche, falei para tia Zizinha: 


- Tia, a senhora não vê neste mundão de meu Deus, esses indivíduos que se dizem importantes, bonitos, orgulhosos, cheios de soberbas etc.? Eles e todos nós somos uns bostas, tia Zizinha, somos uns merdas, aliás tia Zizinha, nós e bosta somos a mesma coisa: basta um mosquito, uma bactéria, um vírus, e lá estamos todos nós debaixo do chão, veja tia, nós não somos nada, basta um dia sem um banho, e lá está a inhaca.


Tia Zizinha parou, pensou , matutou e de imediato me falou:
- Nós não, meu filho, me tire dessa corriola,  vocês sim, vocês que estudaram, que se diplomaram, moram e moraram na capital e são doutores podem se considerar bostas, podem se achar uns merdas, porque eu ainda sou um pum: um pum silencioso, um pum sem odor, isto é, um pum fajuto, escondido e que não tem direito a voz,  pra você vê, nem zoada o coitado faz, eu, seu pai e a sua  mãe somos uns projetos de bosta, ainda falta muito, e nem sei se um dia seremos bosta, acho que daqui para frente , seremos  sempre prenúncios bosta.


Após gostosas e efusivas gargalhadas retruquei:


- É tia, eu não sei por que tanto orgulho, tanto orgulho besta, pois todo mundo do mundo tem por trás uma bunda: umas batidas, outras avantajadas, mas todos têm, todos, todo mundo do mundo tia, tem uma bunda.



Pensei       que havia falado tudo , a tia não concordou e não  contou conversa, com o dedo em riste, abriu a boca e, em voz alta  advertiu a todos que estavam na sala: 



- E ainda por cima, meu filho, ainda por cima, furada,.



Este é o perfil da minha velha tia Zizinha, respostas na ponta da língua e tem para todas as perguntas. 


                                      *****


Agora  voltando à vaquejada, estávamos num pôr do sol de domingo, Tia Zizinha no comando da festa, de vestido vermelho-rodado, chicote de couro cru na mão direita, chapéu de massa na esquerda  e uma  bota cano longo que beirava o joelho, era uma verdadeira amazonas. Ao redor via-se a pista limpa, rapazolas pendurados nos mourões da cerca de madeira, moças de minissaias saboreando maçãs do amor, velhos e crianças nas arquibancadas de tábuas agrestes. As cancelas e os portões fechados, tudo pronto para a abertura do evento.



Sob os aplausos da platéia entra na pista a tia Zizinha, sozinha, descontraída e envaidecida,  com as salvas de palmas era a toda poderosa, a rainha da festa, ali estava a Tia Zizinha em carne, osso e outros predicados, a platéia gritava em coro e sincronizada: “Tia Zizinha!” várias vezes e sempre em som mais alto,  aquele ato poderia se chamar de dia de glória, de labuta, de dedicação, dia  de coroação, Tia Zizinha era mais do que uma  Rainha, era a imperatriz do sertão.
De repente, não se sabe de onde,  surgiu um boi preto de mais de metro de largura,  ancas largas, chifres em arcos, grandes e  pontudos, bem pontudos, com um aro de cobre nas narinas, cinta de couro apertada no  vazio, olhos avermelhados, narinas bufando que só uma maria-fumaça, com os cascos queria furar o chão, as patadas sobre o solo e o poeirão que subia chamou a atenção do público, o animal não contou conversas, nem gritaria e nem tempo ruim,  partiu enlouquecido e desembestado  pra cima de tia Zizinha. 


Imediatamente a tia procurou os portões, todos lacrados, a amazona não titubeou, com seus finos gravetos quis fazer bonito, levantou os braços, mostrou o belo chapéu de massa e rodou o chicote de couro cru sobre a cabeça, quis parecer que tudo fora programado, que aquilo fazia parte do espetáculo, correu para um lado, pulou para o outro, gritou como vaqueiro,  “Vai boi mandingueiro, boi marruá, boi bufão”, . Procurava enganar o valente bizão e mostrar valentia para os espectadores , conseguiu chegar até a cerca, mas,  chegou tarde,  sentiu na sua traseira uma cravinetada dupla ou um impulso veloz, compacto, agudo e muito forte nos atrofiados glúteos, os chifres lhes acertaram em cheio, a tia decolou   como um teco-teco , sem biruta a manobra lhe arrancou a saia, as anáguas e a combinação, de quebra, trouxe como troféu a sua vermelha calçola de brim, fundo duplo de forro grosso e acinturada com cordões de rede. 


Com a setentona jogada contra a cerca ,  as saias lhes cobrindo as enfurecidas narinas, além das vistas vedadas pela calçola o boi ficou acuado, perdeu o rumo, rodava como um peão à procura da presa, o povo gritava, pulava,  o boi atordoado ficou perdido, desorientado, o boi pirou, surtou, o boi endoideceu e rodava como uma cobra cega. 


Apesar do ataque o boi perdeu a batalha, a Tia Zizinha levantou garbosamente o machucado corpo, ao sacudir a poeira não teve outra escolha, desfilou só de califon e com as vestes de cima três dedos abaixo dos seus dois murchos maracujás,  com a traseira batida e dois vergalhões vermelhos indo até as costas, a tia corria elegantemente para escapar do esbaforido boi. 


Foi o espetáculo do ano, a platéia foi ao chão, os gritos ensurdecedores contagiaram os presentes, a platéia foi ao  delírio e   a tia Zizinha chegou ao estrelato, ao dia de glória.

Os narradores com os microfones em punho, muitos ficaram roucos de tanta emoção, foi o maior espetáculo da terra, nos folhetins  a manchete :
A CALÇOLA VERMELHA DE TIA ZIZINHA E O BOI QUE PERDEU O RUMO.  



 Daquele dia em diante nunca mais a tia organizou festas, passou a detestar vaquejadas e como vingança comprou o boi bufão, realizando o maior churrasco aberto de minha terra, na Chapada do Araripe não ficou um cristão que não saboreasse uma parte do velho boi e lá a tia  não  compareceu, como troféu  guarda na dita sala a cabeça do boi BUFÃO


Iderval Reginaldo Tenório
Noticias
 1   
Ainda hoje todo boi bravo que aparece nas vaquejadas o locutor brada em voz alta:

___E lá vai o boi que tirou as calçolas de tia Zizinha, o boi dos chifres certeiros, o boi que aposentou tia Zizinha e  complementa a narração com diversas trovas.

menina me da um beijo     só não quero do pescoço,

quero no bico do peito  num lugar que não tem osso,

que é pra quando eu ficá velho  me alembrar que já fui moço.
2
Confesso que não gostei da inusitada cena e nem do inesperado espetáculo, porém,  vibro, vibro, pois não tenho culpa de ser parente de gente famosa e sobrinho da  minha querida, amada  e inesquecível tia Zizinha.
3
Não perco a oportunidade de anualmente participar da maior festa do interior do Ceará, realizado no Parque de Exposição e Vaquejada Tia Zizinha, cujo símbolo é uma cabeça de boi com uma calcinha vermelha nas pontas, cravada com o magestoso TZ maiúsculo.               
O TZ de TIA ZIZINHA.


 Salvador, 20 de Fevereiro de 2008.
Iderval Reginaldo Tenório



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