As Gargalhadas de seu Mocim.


As Gargalhadas de seu Mocim.
Em três Capítulos.
I
A CHEGADA
As Gargalhadas de seu Mocim.
Ao adentrar, não aguentou a decoração da sala. Como um cinegrafista, filmou com os olhos os painéis de informações, as esculturas das coisas do sertão, as estátuas do Padre Cícero e a do Frei Damião, nada escapou das suas duas objetivas fotográficas naturais, desmanchou-se em risos. Não conseguia olhar nos olhos do médico, olhava para dentro de si e para o mundo, era um olhar de realização, de igualdade, superação, desforra, da conciência humana e do esvaziamento das mágoas, um olhar vitorioso, um olhar de cidadania, cada detalhe, mais risos, viajou pelos longínquos recantos do seu sertão. Ficou exausto de tanto sorrir.
"Doutor há muito tempo que não tenho dado um único sorriso, só sofrimentos, só mesmo o senhor para me fazer rir, obrigado doutor, Deus sabe o que faz.
Mais uma vez se desmanchou em intermináveis gargalhadas.
Falou que o ambiente estava mais para museu do que para consultório, para o passado do que para o presente ou futuro. Perguntou se aquele rádio de 1930 funcionava, lembrou muito do seu avô e do seu pai. Ficou assombrado quando no toque de um dos botões, surgiu um som grave, de uma viola pantaneira, a executar o clássico Chalana, do Mário Zan, dedilhado pela maior violeira brasileira, Helena Meirelles, hoje estudada em diversas universidades pelo mundo. Depois se deliciou com um som aconchegante do velho Gonzagão, A volta da Asa Branca, do médico pernambucano Zé Dantas.
"Doutor este rádio é igual ao do meu avô, me lembro até da sua voz, do seu cheiro, das suas mãos ressecadas e do cuidado com a sua preciosidade. Aqui estou na Fazenda do Tio Chiquim".
Não conseguiu ficar em silêncio. Pegou um candeeiro que estava sobre o rádio e pronunciou o nome de sua vó, "VÓ MARIA". Riu ao avistar uma antiga máquina de costura, veio à mente a sua tia Cotinha, tão boa, tão caridosa e tão atenciosa, era a mais velha das irmãs do seu pai, era franzina, porém decidida. Deus a chamou, quando o Brasil foi campeão em 1970. Não conseguiu calar quando avistou um fruto nordestino, um jatobá, os olhos lacrimejaram, pois no seu sertão, quando menino, era o único bocado a lhe matar a fome quando perambulava à caça de alguns nambus, preás e juritis, caiu em prantos.
"Ah! seu doutor como era bom, tudo era alegria. Como o mundo era bom, puro e de todos os homens da terra, a única riqueza era a família"
Contemplando o ambiente, sentou na cadeira do paciente, pregou os olhos num quadro 100 X150, que mostra uma velha estação de trem. Trilhos envelhecidos, um trem fumacento, cambaleante e uma criança esquálida no batente de uma choupana. Lá no fundo, uma chapada baixa com arbustos cinzas, e no primeiro plano, uma alta calçada em decomposição. Deitado abaixo da falha marquise, que ensombreia a frente da estação, um velho cão à espera de um naco para saciar a fome. Olhou, balançou a cabeça, mirou a face do médico e assim se expressou .
"Doutor, valeu, só esta visita valeu, mesmo que não fique bom de minha enfermidade, valeu, mas valeu mesmo. Viajei no tempo e no espaço, voltei ao meu Seridó, senti o cheiro dos meus antepassados. Valeu."
II
A CONSULTA
Iniciei a consulta. Perguntei por suas origens, o seu Estado natal, profissão, pais, avós, das brincadeiras na infância, das namoradas, dos seus vira-latas, das festas juninas e de fim de ano, se havia tomado banho de rio, se morou em casa de sopapo, se falou e andou na época certa, se já teve sarampo, catapora, bicho de pé ou outras moléstias regionais e se já tomou alguma vacina. Indaguei a respeito dos seus filhos e dos contemporâneos do campo, do seu trajeto como ser humano e da dureza de hoje encontrar-se com 90 anos, vivo, lutando, brigando, incompreendido, injustiçado e muitas vezes desvalorizado, uma vez que, na vida só fez mesmo foi trabalhar. Labutar para educar os filhos e enriquecer o país em troca de quase nada.
Expliquei que o homem no Brasil, vive em média até os 74anos, e ele com 90, já havia ultrapassado 16 anos da média. Mandei que o mesmo relembrasse dos seus amigos de infância, coloque em uma única mão contando nos dedos, quantos estavam vivos, quantos ainda saboreavam um feijão com toucinho e farinha, ele não se conteve e complementou:
"E bem vividos doutor, bem vividos. O senhor se esqueceu das doces rapaduras das cidades de Monteiro, Souza, Cajazeiras e de Campina Grande."
Levantando o dedo indicador da mão direita, apontando-o para os céus, complementou:
"as rapaduras mais doces do mundo."
Completei:
"vividos no trablho seu Mocim, no respeito, na honestidade e com seriedade, não como muitos que se dizem importantes e só servem para subtrair o pouco dinheirinho do povo, muitos estão exercendo cargos políticos a enganar a nação nordestina."
Retrucou seu Mocim:
"Pura verdade doutor, pura verdade. Eduquei todos os meus filhos com o salário da leste e com o suor do meu próprio rosto.
Na leste eu era o despachante das toneladas de algodão que a Paraíba mandava para a Inglaterra. A minha função era de compactador.
O algodão vinha nos caminhões e para a carga não ocupar muito espaço nos navios, os ingleses mandaram um compactador, uma máquina de ferro para comprimir o algodão que vinha nos fardos. Esta geringonça pegava um caminhão carregado até o topo, e transformava em três ou quatro cubos de um metro por um metro. Daqui eram enviados até o Porto de Cabedelo em João Pessoa"
Mostrei o meu interesse pelo assunto e o seu Mocim orgulhosamente explanou:
"O senhor sabia que todo o algodão do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e parte do Ceará iam para os estrangeiros pelo porto do Cabedelo? A minha Paraiba doutor, fez e faz muito por este Brasil"
Eu só tenho o ABC doutor, o ABC, mas conseguir educar os meus filhos. Hoje um é engenheiro da Petrobrás, outro é Professor e o outro é Medico, médico numa cidade do interior, muito procurado pelos seus pacientes. Não é porque é meu filho não doutor, mas é um bom médico, todo mundo gosta dele, desde pequeno que é muito estudioso.
Todas as semanas, me telefona e ainda manda uma coisinha todo mês. Sei que está difícil, mas não se esquece de mim e nem da sua velha mãe."
Elevou a ressecada mão esquerda até o ombro direito da filha e falou:
Esta aqui doutor, é a Dolores, a caçula. Estudou para Assistente Social, casou com um colega do senhor, está muito bem e mora aqui em Salvador, trabalha no INPS.
Complementei:
Seu Mocim, é de pessoas como o senhor que o Brasil precisa, aliás, foi o senhor quem construiu este país, contruiu com vergonha na cara e as forças dos seus braços.
Naquela época, sem água encanada, estrada, luz e sem telefone; geladeira só para os ricos, os mangangões, aqueles que mandavam no povo. Só os coronéis possuíam esta tal de Frigidaire, o resto era sofrimento.
Existindo água no pote, comida e um cômodo para dormir, já estava bom demais. Mesmo assim, lá estava o senhor na labuta e numa vida digna para toda a família.
O homem abriu mais um sorriso, desta vez uma gargalhada, o sorriso da experiência, da responsabilidade, da autoestima, da força de vontade e do orgulho pessoal.
"Êita que doutor danado, era isso mesmo doutor, era assim mesmo."
Aos familiares, foi informado que se tratava de um caso inoperável devido as metástases, a gravidade e outras doenças adquiridas durante a dura vida que levou, além dos 90 anos de idade, bem vividos.
De pronto a filha disse:
"Doutor, nós queríamos ouvir mais uma opinião e pai disse que se fosse para operar, ele não aceitaria."
Nos seus últimos dias, na cabeceira do leito, ou melhor, na cabeceira de sua cama, rodeado de familiares e amigos, olhava e dizia:
"Amigo doutor, valeu, valeu e como valeu"
Salvador, 21 de Dezembro de 2025
Iderval Reginaldo Tenório
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