'Escritores como eu querem lançar dúvidas': Resgatamos uma entrevista com Sérgio Sant'anna, morto neste domingo
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O escritor Sérgio Sant'anna tinha 52 anos quando deu esta entrevista ao jornalista e crítico literário Luciano Trigo. A conversa foi publicada pelo GLOBO em 13 de fevereiro de 1994, quando o autor estava lançando "O monstro" (Companhia das Letras), com três contos, entre eles, o texto que dá nome ao livro. Na época, Sant'anna já era relacionado entre os maiores contistas do Brasil, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria em 1983. Na entrevista, que o Blog do Acervo resgata em homenagem à memória do escritor, morto neste domingo, vítima do coronavírus, Sant'Anna diz que escreveu "O monstro" porque sempre se interessou pelo "drama do criminoso" execrado pela sociedade após cometer um ato bárbaro. O autor também reflete sobre o perfil de seu público, que chama de "elitista", e comenta o sucesso de escritores como Paulo Coelho:
"É carência das pessoas. Quem traz palavra de
esperança, de certezas, tem um resultado de vendas muito bom. Escritores
como eu, ao contrario, querem lançar dúvidas".
Leia, abaixo, a entrevista na íntegra
O conto "O monstro" é sobre um criminoso. Você gosta de escrever sobre comportamentos desviantes?
O que me levou a escrever esse conto foi o seguinte: crime está na ordem do dia no Brasil o tempo todo. Toda noite aparece na televisão alguém que cometeu um crime bárbaro — como esse caso da Daniella Perez. Eu olhando para aquelas figuras pensava assim: 'pô, como estará a cabeça de um cara desses?' Porque a vítima morreu, e, justamente por ser a vítima, todo mundo gosta dela. Mas o criminoso, além de ter cometido um ato bárbaro, é execrado pela sociedade inteira. Sempre me interessou esse drama do criminoso, e o que me seduziu foi a tentativa de desvendar esse drama, usando o estilo neutro do jornalismo. Tive que fazer isso através de um personagem que fosse acessível para mim, porque queria aprofundar temas meio dostoievskianos, a culpa. Não teria acesso à mente de um personagem mais bruto.
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Eu tinha essa curiosidade, mas o importante no conto é a forma da carta. Neste momento tem um monte de cartas importantes lá no correio, mas ninguém está lendo. É como se elas tivessem autonomia. Eu queria escrever uma carta contundente, forte e selvagem, e naturalmente surgiu o tema do desejo que se transmite às palavras. Quem escreve tem a solidão como um lado fundamental, seu gozo é por vezes maior quando vem através da escrita ou do pensamento que fazendo a coisa em si.
Você buscou um estilo mais claro em "O monstro"?
Eu não tinha pensado nisso,
mas em outra coisa: sempre que escrevo um livro ele é necessariamente
diferente do anterior. Então "O monstro" tinha que ser diferente do
"Senhorita Simpson" e de "Uma breve história do espírito", tinha que ser
mais pesado, e ao mesmo tempo eu queria deslocar para a ficção textos
que valem por si fora do contexto literário: uma carta, uma entrevista
de jornal... Nesse sentido é um livro menos experimental ao nível da
palavra, mas tem essa noção de texto como objeto. Quando comecei a me
interessar por literatura, nos anos 60, em Belo Horizonte, estava muito
ligado ao pessoal que fazia ficção experimental e sempre me interessei
em pesquisar o que se pode fazer com a ficção — não no sentido de
inventar palavras, como os neologismos de Joyce ou Guimarães Rosa,
porque isso já estava feito, mas, justamente, considerar os textos como
objetos.
No prefácio ao romance "Confissões de Ralfo", você falava sobre a impotência do oficio do escritor...
Eu só consigo me interessar por ler ou escrever qualquer palavra ou livro que sirvam para iluminar algum recanto da alma ou da sociedade. Eu sabia que não ia transformar essa sociedade com meus livros. Você escreve por uma necessidade de clarear algumas questões, sociais ou não, e o máximo que pode esperar é que os leitores tenham afinidades. Um romance pode ter no máximo 0,0001% de efeito transformador sobre o estado geral das coisas. Um escritor fala de pessoa para pessoa, mais do que para a sociedade inteira. "Harmada", do João Gilberto Noll, dá uma visão metafórica do Brasil extraordinária, no entanto o alcance politico do livro vai ser nenhum.
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Olha, igual ao que foi na década de 70 eu não vi mais. Eu critico a literatura de hoje como uma literatura yuppie, e não só no Brasil. Por exemplo, recentemente saíram várias reportagens sobre um escritor americano, Scott Smith, que nem sei se é bom, mas ficou claro que houve todo um planejamenfo de marketing para ele escrever o livro que o mercado pedia. Isso está pesando muito na literatura de hoje.
Você fica incomodado quando romances de Chico Buarque e Bruna Lombardi vendem mais que seus livros?
Incomodar não incomoda, porque é
um fenômeno natural, a sociedade é de marketing mesmo, e quem é mais
conhecido vende mais. Até gosto de "Estorvo", acho um bom livro, mas é
óbvio que se não fosse do Chico Buarque não teria vendido aquela
quantidade. O romance da Bruna eu não li. Mas eu não sou um cara
invejoso, parto do princípio de que não vou vender cem mil exemplares.
Isso é até bom, porque me permite me dar ao luxo de botar o Godard como
personagem. Se pouca gente ler, tudo bem.
Godard e Karajan aparecem no conto "As cartas não mentem"...
Eu não tenho medo de ser elitista porque acho que o público que lê meus livros é esse mesmo, é o pessoal que vê os filmes do Godard. E ele entrou de uma forma esponânea, porque o ambiente e a conversa do conto eram totalmente godardianos. A associação veio naturalmente. Godard é o papa de nós todos no lance do experimentalismo, e acho que se ele lesse o conto ia gostar. E acho que dá para estabelecer uma relação entre minha literatura e o cinema. Quando estava escrevendo "Amazona" e "Senhorita Simpson", eu visualizava aquilo em termos de imagens cinematográficas.
E qual é sua relação com a psicanálise, que também aparece no conto?
Eu faço psicanálise, mas não planejei botar a psicanalista no conto, ela surgiu naturalmente. Não vejo paralelo entre a atividade do escritor e a do psicanalista. Acho até que, de certa forma, eles se opõem. O psicanalista em geral puxa para o saudável, a norma, enquanto o escritor muitas vezes dá um reforço no sentido inverso.
O que você acha do sucesso do gênero romance histórico?
Não acho nada, tanto pode ser bom como ruim. Li "Boca do Inferno", da Ana Miranda, e gostei, os outros não li. Pessoalmente não tenho nenhuma vontade de entrar nessa área, porque tenho uma preguíça mortal de fazer pesquisa. Estou mais preocupado em decifrar o mundo em que vivo, miilha raiz literária é essa.
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Eu não sou sociólogo, mas a única explicação que posso dar é que se trata de um problema econômico: uma época de recessão torna as pessoas muito cautelosas, medrosas. Como professor eu pude perceber isso: os alunos que tive no início de carreira eram mais livres, soltos, menos preocupados com a profissão. Tanto é que boa parte deles se deu mal profissionalmente. Depois os alunos já entraram mais preocupados: o cara via a família passando por dificuldades e sabia que, sem um emprego, ia dançar. Os anos 60 e 70 eram uma época de expansão econômica, de sobras, o petróleo era barato. O Brasil estava melhor do que agora, apesar da ditadura. Só porque o preço do petróleo era mais barato, a verdade é essa.
Mas você fazia parte daquele comportamento "sexo e drogas" da época?
Se eu fazia parte? Bastante, bastante... Não, calma lá! Bastante não, não fui nenhum drogado! O que aconteceu foi que casei muito cedo, aos 21 anos, e aos 24 eu e minha mulher
começamos a descobrir que o mundo tinha mudado completamente. A gente teve que se reciclar, o que foi ao mesmo tempo fascinante e extremamente angustiante. As pessoas têm tendência a se lembrar só da festa, mas a festa não era tão fácil assim: todo comportamento audacioso implicava angústias e conflitos sérios.
Como analisa o fenômeno Paulo Coelho?
É carência das pessoas, que estão perdidas. Quem traz uma palavra de esperança, de certezas, tem um resultado de vendas muito bom. Escritores como eu, ao contrario, querem lançar dúvidas.
Você se aposentou de seu emprego público?
Eu me aposentei proporcionalmente, depois de 20 anos. Hoje só estou escrevendo, e mesmo assim pouco, só o que me dá vontade. Também deixei de dar aulas. Trabalhei em emprego público, como muitos escritores, porque era mais fácil para escrever. Escrevi muito dentro do tribunal, mas muito mesmo. Em Belo Horizonte escrevi um romance inteiro lá dentro, usando papel timbrado e tudo. Era ótimo.
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