As Gargalhadas de seu
Mocim.
Ao
adentrar não aguentou a decoração da sala, deslumbrou-se com os enfeites da estante , os
diversos quadros mostrando a família, os painéis de
informações , as esculturas das coisas do sertão e nem mesmo as estátuas do Padre Cícero e do Frei Damião escaparam da sua visão . Desmanchou-se em risos, não conseguia olhar nos olhos do médico, era um
olhar de realização, de superioridade, da desforra, do esvaziamento das
mágoas, era o olhar da vitória. A cada detalhe, mais risos, ficou
exausto de tanto riso.
"Doutor
há muito tempo que não tenho dado um único sorriso, só sofrimentos, só
mesmo o senhor para me fazer rir, obrigado doutor . Mais uma vez se
desmanchou em intermináveis gargalhadas."
Se
refez, olhou para o médico, perguntou qual era seu
interior e onde havia se formado. Começou a fazer comentários da
inusitada sala. Falou que o ambiente estava mais para museu do que para
consultório, mais para o passado do que para o presente ou futuro, perguntou se
aquele rádio de 1930 funcionava, lembrou muito do seu avô , do seu
pai e ficou assombrado quando no toque de um dos botões surgiu um som grave de
uma viola pantaneira, da lavra da maior violeira brasileira, a Helena Meirelles, depois se deliciou com um som aconchegante do velho Gonzagão, A volta da Asa Branca, do compositor Zé Dantas. Não se conteve, levantou-se, encostou as orelhas na parte frontal do
aparelho, abaixou e elevou o som, ficou impressionado, era igualzinho ao do seu
avô .
"Doutor este rádio é igual ao do meu avô, me lembro até da sua voz, do seu cheiro, das suas mãos ressecadas e do cuidado com o seu rádio, estou na Fazenda do Tio Chiquim"
Não
conseguiu ficar em silencio, pegou um candeeiro que
estava sobre o rádio e pronunciou o nome de sua vó, riu ao avistar
uma máquina de costura e veio à mente a sua tia
Cotinha, tão boa, tão caridosa, tão atenciosa, era a mais velha, era franzina
, inclusive Deus já levou. Não conseguiu calar quando avistou um
fruto nordestino, um jatobá, os olhos lacrimejaram, pois no seu
sertão quando menino, era o único bocado a lhe matar a fome quando
perambulava à caça de alguns nambus , preás e juritis, caiu em prantos.
"Ah!
seu doutor como era bom , tudo era alegria, como o mundo era bom , puro e de todos os homens da terra"
Os
risos foram desaparecendo e aos poucos a razão foi se aproximando e junto
com a emoção o homem começou a falar de sua vida, a explicar à filha
como foi a sua infância nos cafundós da Paraíba, a raridade
da água, a seca de 32, os conselhos do Pe
Cícero e o quanto importante foram os seus antepassados e que há muito
não se lembrava das pessoas como também do seu velho torrão.
Contemplando o ambiente, sentou na cadeira
do paciente, pregou os olhos num quadro 100 X150 mostrando uma velha
estação, os trilhos envelhecidos, um trem cambaleante e uma criança
esquálida no batente de uma choupana, uma serra lá no fundo com os arbustos cinzas. Olhou,
balançou a cabeça, mirou a face do médico e assim se expressou .
"Doutor,
valeu, só esta visita valeu, mesmo que não fique bom de minha enfermidade, valeu,
mas valeu mesmo. Viajei no tempo e no
espaço, voltei ao meu Seridó. Valeu."
Iniciei
a consulta, perguntei por suas origens, do seu Estado natal,
profissão, pais, avós, das brincadeiras na infância, das
namoradas, das festas juninas e de fim de ano, se havia tomado banho de
rio, se morou em casa de sopapo, se falou e
andou na época certa, se já teve sarampo ou catapora . Falei
dos seus filhos, do seu
trajeto como ser humano, da dureza de hoje se encontrar com 85 anos
, vivo, lutando, brigando , muitas vezes desvalorizado, incompreendido
e injustiçado, uma vez que na
vida só fez mesmo foi trabalhar, trabalhar para educar os filhos e enriquecer o país em troca de quase nada.
Neste
momento notei mudanças no seu semblante.
Após
este preâmbulo, olhei firme para todos o seu corpo , parte por parte, indaguei por sua saúde detalhe por detalhe, ponto por
ponto, sintomas por sintomas, enquanto olhava e perguntava, o nariz o cheirava à procura dos seus odores e dos odores das patologias . O coloquei numa macia maca, procurei edema em membros inferiores, palpei as suas vísceras, os gânglios , realizei a percussão abdominal, auscultei os pulmões e o coração, isto parte por parte, sempre a descrever para seu Mocim, depois olhei todos os seus exames. Trazia na lapela um
diagnóstico sombrio de péssimo prognóstico, era uma doença maligna
em avançado estado, inclusive com ascite e disseminação
para outros órgãos, não aguentava mais procurar médicos e sem solução.
De posse dos seus dados esbocei um
rascunho do aparelho digestório, localizei a origem do
seu problema, martelei didaticamente órgão por órgão, para que servem, o
que fazem e como se encontravam, explanei a sua evolução.
Expliquei que o homem
no país vive em média até os 74anos e ele com 85 já
havia ultrapassado 11 anos, mandei que o mesmo
relembrasse dos seus amigos de infância, coloque em uma única mão contando nos
dedos quantos estavam vivos, quantos ainda saboreavam um feijão com toucinho e
farinha, ele não se conteve e disse:
"E bem vividos doutor, bem vividos, o
senhor esqueceu da rapadura dos sertões das cidades de Monteiro e de
Campina Grande."
Completei:
"vividos no trabalho, no respeito, na honestidade
e com seriedade, não como muitos que se dizem importantes e só servem
para subtrair o pouco dinheirinho do povo, muitos estão exercendo cargos políticos."
"Pura
verdade doutor, pura verdade . Eduquei todos os meus filhos com o salário da leste e com o suor do meu próprio rosto. Eu só
tenho o ABC doutor, o ABC, mas conseguir educar os meus filhos, hoje um é engenheiro da
Petrobrás, outro é Professor e o outro é Medico, médico numa cidade
do interior, muito procurado pelos seus pacientes, não é porque é meu filho não
doutor, mas é um bom médico, todo mundo gosta dele, desde pequeno que é muito
estudioso, toda semana me telefona e ainda manda uma coisinha todo mês. Sei
que está difícil, mas não esquece de mim e nem da sua velha mãe. Esta
aqui é a Dolores, a caçula, estudou para Assistente Social, casou com um colega do senhor, está muito bem."
Complementei:
"Seu
Mocim é de pessoas como o senhor que o Brasil precisa, aliás, foi o
senhor quem construiu este país com a força dos seus braços . Naquela época sem estrada, sem luz,
sem telefone, nem geladeira existia , se existia só os ricos,
só os mangangões, só aqueles que mandavam, só os
coronéis possuíam, o resto era sofrimento,
existindo a comida já estava bom demais, mesmo assim lá estava o senhor na labuta"
"Êita
que doutor danado, era isso mesmo doutor, era assim mesmo."
E mais uma vez os olhos marejaram, inclusive os olhos da dedicada filha .
Foi realizado um minucioso exame físico, o
que confirmou a gravidade do caso. Explicado ao
paciente que se tratava de uma doença que não necessitaria de cirurgia,
que ele poderia comer o que quisesse desde quando não prejudicasse a sua saúde,
que poderia passear, ir à praia , visitar os seus parentes na Paraíba, trazer
um bom queijo coalho para o seu médico e que não deixasse de
comparecer à clínica nestes próximos 15 dias. Aos familiares informado que se tratava de um caso
inoperável devido as metástases, a gravidade e outras doenças adquiridas durante a dura vida que levou .
De pronto a filha disse:
"Doutor
, nós queríamos ouvir mais uma opinião e pai disse que se fosse para operar ele
não aceitaria."
A conversa continuou por mais alguns instantes, o abraço
da despedida foi mais efusivo do que o da chegada, foi um abraço mais
forte, do desprendimento, da conquista, o abraço como de
dois velhos amigos que há muitos anos não se viam, o abraço da compaixão , da liberdade e do entendimento.
Termino
informando que o paciente passou a ser um grande amigo,
o consultório começou a fazer parte de sua vida , sempre que necessário. Muitos
foram os momentos de alegrias, de puro entretenimento e muitas histórias
recuperadas, passei a frequentar a sua casa e conhecer todos os
familiares.
Usufruir
de bons papos , enriquecedoras prosas e saborosas relíquias da culinária
brasileira passaram a ser rotina, seus filhos me consideram irmão.
Como o
tempo não perdoa e o Criador sabe o que faz, o amigo
foi se familiarizando com seu quadro, tomou conhecimento da sua enfermidade. Comentava que o homem é um ser mortal e que todos tem o seu dia para falar mais
de perto com Deus .
Alegre
como um menino foi plantando alegria , foi aproximando os familiares
com as suas mensagens, até o dia de sua audiência maior com o Criador.
Exatamente
360 dias depois foi realizado a missa de 7º dia em homenagem ao
o meu querido amigo , que muito riu, dançou, cantou e me abraçou
no humilde, simples e singelo consultório que muitas alegrias
trouxe.
Nos seus
últimos dias, na cabeceira do leito, ou melhor, na cabeceira de
sua cama, rodeado de familiares e amigos, olhava e dizia:
"Amigo
doutor, valeu, valeu e como valeu"
Convicto
de que daqui há muitos e muitos anos, quando me encontrar quase
que irreconhecível pelos janeiros acumulados e ao
chegar onde muitos já estão, não serei um estranho no ninho, chegarei contente
e cônscio da missão cumprida , sinto que lá, LÁ,
ONDE DEUS MORA e se for merecedor, serei muito bem recepcionado.
Foi assim
que ganhei mais um amigo e foi assim
que aumentei a minha família.
Salvador,
30 de julho de 2006
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