Mais
de 100 médicos e estatísticos de vários países lançaram um alerta sobre
graves irregularidades no maior estudo sobre a eficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina contra a covid-19. Os responsáveis pela iniciativa exigiram que os dados do trabalho sejam revistos para que ele seja corrigido ou retirado.
O estudo em questão
provocou uma tempestade mundial em torno de dois possíveis tratamentos
que há poucos meses eram considerados os mais promissores contra a
doença, mas que agora parecem ter caído em desgraça. O trabalho foi uma
análise de dados anônimos de mais de 96.000 pacientes em 600 hospitais
do mundo todo. Concluiu que a cloroquina e a hidroxicloroquina não só
não oferecem nenhum benefício para os pacientes, como também podem
aumentar o risco de morte em 30%. O trabalho foi publicado na The Lancet, uma das revistas científicas de maior prestígio do mundo.
Como resultado desses dados, a Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu o uso destes medicamentos
no estudo clínico Solidarity, que tenta provar a eficácia de diversos
tratamentos contra a Covid em hospitais do mundo inteiro. Foi uma
suspensão temporária, até que um grupo independente analise os dados e
responda se é seguro continuar. Mas depois do anúncio da OMS, a França
proibiu o uso desses medicamentos como tratamento e parou os ensaios
clínicos em andamento. A Itália também suspendeu seu uso como tratamento
e a Bélgica alertou sobre sua utilização fora dos estudos clínicos, de
acordo com a Reuters.
Na Espanha, a agência de
medicamentos concluiu que o estudo não fornecia provas suficientemente
sólidas sobre o risco associado aos dois medicamentos e recomendou que
continuem em andamento os ensaios clínicos com esses fármacos no país.
Um porta-voz da agência explicou ao EL PAÍS que até agora o órgão não
havia recebido nenhum alerta de segurança por parte dos responsáveis por
esses ensaios.
A origem inicial do boom que promoveu os dois medicamentos foi um estudo comandado pelo médico francês Didier Raoult,
que encontrou benefícios no uso contra a covid-19. A pesquisa, no
entanto, foi considerada posteriormente como irregular, mal projetada e
muito pouco confiável. Isso não evitou que esses tratamentos fossem
apontados como “revolucionários”, nas palavras do presidente dos EUA,
Donald Trump, que anunciou que toma hidroxicloroquina para se proteger
do coronavírus, sendo seguido, posteriormente, pelo presidente brasileiro,
Jair Bolsonaro. No momento, não existe nenhuma prova sólida de que
esses medicamentos funcionem contra a doença. Existem apenas dados
parciais apontando que eles podem aumentar o risco de arritmias em
pacientes graves.
O último estudo, que condenou o
uso da cloroquina e hidroxicloroquina, “tem um nível de inconsistências
alarmante”, alerta Pedro Alonso, diretor do programa de malária da OMS,
ao EL PAÍS. “Há enormes dúvidas sobre a qualidade desse trabalho e
tanto seus autores como a revista que o publicou vão ter de prestar
contas”, ressalta.
A cloroquina e sua derivada são usadas
para combater a malária há décadas e têm um perfil de segurança muito
alto, lembra Alonso. Além disso, esses medicamentos são utilizados para
combater doenças autoimunes como o lúpus. “Até agora não sabemos se
funcionam ou não contra a covid-19, mas a solução não é interromper os
ensaios com esses medicamentos e, sim, seguir adiante com eles, pois
precisamos de bons ensaios clínicos controlados e randomizados para
saber se oferecem algum benefício, principalmente para a segunda onda da
doença”, considera Alonso.
O estudo em questão é
assinado por Mandeep Mehra, do Hospital Brigham de Mulheres de Boston;
Frank Ruschitzka, do Hospital Universitário de Zurique; Amit Patel, do
departamento de bioengenharia da Universidade de Utah, e Sapan Desai, da
empresa Surgisphere, que forneceu os dados anônimos dos 96.000
pacientes incluídos no estudo.
Mas o trabalho tem
inconsistências, como o tratamento dos dados, que não foram publicados
para que possam ser analisados pelo restante da comunidade científica, e
a ausência de um comitê de ética para verificar se o tratamento dos
dados dos pacientes está de acordo com a lei, segundo a carta aberta
publicada quinta-feira, assinada por mais de 120 médicos,
bioestatísticos e pesquisadores biomédicos e enviada à direção da
revista The Lancet.
O estudo não dá informações
detalhadas sobre os hospitais de cada país de onde vêm os dados, afirmam
os signatários. Além disso, utiliza doses de cloroquina e
hidroxicloroquina que são em média 100 miligramas mais altas do que as
recomendadas pela agência de medicamentos dos EUA, acrescentam.
Na
Austrália, o estudo considera um número de pacientes mortos (73 até 23
de abril) que é superior ao registrado em todo o país até essa data pela
Universidade Johns Hopkins, segundo o jornal The Guardian. Na
África, inclui 25% de todos os infectados que havia no continente e 40%
de todos os falecidos, o que significaria, pela expressividade da
amostra, que eles teriam acordos para poder acessar os dados
computadorizados detalhados dos pacientes, algo que os signatários da
carta consideram “pouco provável” —e Alonso considera “impossível”— dado
o baixo grau de digitalização de muitos hospitais no continente. O
estudo reúne informações de pacientes de seis continentes e, apesar das
diferenças entre eles, a incidência de doenças prévias, como diabetes e
os problemas cardiovasculares, é “extraordinariamente pequena”, assinala
a carta.
Os signatários exigem que a empresa Surgisphere
forneça todos os dados e que uma comissão independente da OMS ou outro
organismo independente os analise. Também pedem à revista que cumpra os
compromissos que assinou sobre dados públicos e publique também os
detalhes da revisão desse estudo por especialistas independentes.
Na tarde de sexta-feira, a The Lancet
publicou uma correção, alterando o número de pacientes analisados na
Ásia (8.101 em vez de 4.402) e na Austrália (63), mas sem mudar os
resultados principais do estudo.
Mandeep Mehra,
cardiologista do Brigham e primeiro autor do estudo, disse ao EL PAÍS
que, além das correções, foi iniciada uma “revisão independente dos
dados”, acrescentando: “Os resultados e conclusões do trabalho continuam
sendo os mesmos”. A Surgisphere, empresa responsável pelo banco de
dados, defendeu em um comunicado enviado ao EL PAÍS a validade de seu
sistema, baseado no estabelecimento de acordos de colaboração com 1.200
hospitais de 45 países para que lhe deem acesso a dados anônimos de
pacientes, e garantiu que cumpre as principais normas internacionais de
proteção de dados.
Bloqueio de ensaios clínicos
O
trabalho deu um golpe fatal em muitos dos ensaios clínicos que estavam
em andamento. Isto, por sua vez, pode fazer com que nunca se saiba se,
de fato, esses medicamentos podem ajudar contra a covid-19,
possivelmente em doses que não sejam altas e com pacientes que não
apresentam anomalias no batimento cardíaco. Para isso, são necessários
ensaios controlados —nos quais um grupo não toma o medicamento ou toma
um placebo— e randomizados, ou seja, cada paciente é colocado
aleatoriamente em um dos grupos.
“Uma questão muito
importante agora é que as pessoas com poder científico na organização de
saúde apostaram em diferentes medicamentos que estão sendo testados em
estudos randomizados”, afirma Julián Pérez Villacastín, presidente
eleito da Sociedade Espanhola de Cardiologia. “[Os estudiosos da
cloroquina e hidroxicloroquina] fizeram um investimento enorme e estão
no meio do caminho, e em alguns casos, estão sendo forçados a parar.
Além disso, têm o problema de que no início havia muitos pacientes e,
com isso, poderiam ser obtidos resultados confiáveis em um prazo
relativamente curto. Mas o que aconteceu é que o recrutamento ficou
muito mais lento porque o número de pacientes diminuiu. Está sendo muito
difícil concluir os estudos e muitos poderão não ser concluídos nunca”,
assinala. Alonso ressalta também que, devido aos dados do estudo
publicado na The Lancet, os pacientes não queiram participar de ensaios por “medo”.
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