Famed: uma história em ruína
Em 2008 a faculdade de medicina da Bahia completou
dois século e ainda tem reforma sem concluir e algumas salas estão em
estado de ruínas, a exemplo do salão nobre que se encontrava ameaçada
pela ação dos cupins e de goteiras.
POR CLÁUDIO ANTÔNIO DE FREITAS BANDEIRA*
A Faculdade de Medicina do Terreiro
de Jesus chegou aos 200 anos, em 2008, sem ter concluída a reforma do
prédio em estilo neoclássico, iniciada há quase duas décadas. Algumas de
suas alas continuam em estado de ruína. A ala nobre, felizmente já
restaurada, é depositária de um acervo de grande valor. O salão nobre –
por exemplo – encontrava-se ameaçada pela ação dos cupins e de
goteiras. Nesta ala se encontra também o salão onde funciona a
diretoria da Faculdade.
Apesar de a maior parte das obras estarem parada, vários progressos
foram realizados na restauração da ala nordeste, com a recuperação da
estrutura do teto, piso e a reinauguração, em agosto de 2001, do
anfiteatro Alfredo Britto. O espaço da biblioteca, onde por muito tempo
funcionou o Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues, foi reformado, mas um
raro e engenhoso elevador de fabricação alemã, usado no transporte de
livros, continua desativado.
A reforma está sob a responsabilidade de aplicados aprendizes da
Escola Oficina Salvador (EOS) que conta com a participação de 100
aprendizes na faixa etária dos 18 aos 24 anos, todos carentes, mas
dispostos a se submeterem a um processo de formação profissional durante
dois anos e a dar continuidade à escolarização, explica o arquiteto e
professor da UFBA, Luiz Carlo Dourado. O projeto do Centro de Estudos de
Arquitetura na Bahia da Faculdade de Arquitetura
da UFBA foi iniciado em 1997 com o propósito de promover a restauração
da faculdade. Esta mão de obra vem tomando para si a responsabilidade da
restauração do combalido prédio no Terreiro de Jesus, que no início
contou, exclusivamente, com o apoio financeiro do programa do governo
espanhol Escuelas Taller para a Ibero américa e hoje tem aporte de
recursos da Petrobrás.
A reforma do lugar onde funcionava a biblioteca, conta o ex-reitor da Universidade Federal da Bahia, Naomar Almeida Filho, foi possível graças à injeção significativa de recursos do Ministério da Saúde,
em 2004, quando foi firmado convênio para aquele fim. Também o acervo
da biblioteca – inteiramente deteriorado em função das chuvas e da
umidade – vem, desde então, passando por um minucioso processo de
restauro após a implantação de um laboratório de restauro de obras
raras. Do acervo bibliográfico, mais de dez mil livros e documentos já
foram restaurados. Apesar dos avanços, devidos principalmente ao
entusiasmo e dedicação das equipes engajadas nos projetos, o aporte de
recursos é insuficiente para a magnitude da obra, lamenta a atual
diretora da Famed, professora Lorene Louise Silva Pinto.
“Precisamos completar a restauração desse monumento, matriz da
medicina nacional. Para isso, contamos com a ajuda de todos, médicos,
profissionais de saúde, instituições e empresas da área da saúde. Só
então será possível implementar o projeto museológico do novo Memorial
da Medicina Brasileira, já elaborado por uma equipe técnica espanhola”,
afirmou Naomar Almeida.
Prossegue ele: “Assim, estudantes e pesquisadores terão oportunidade
de melhor conhecer e estudar uma das mais ricas tradições intelectuais e
científicas da ciência brasileira. É preciso promover esta memória,
pessoal e coletiva, a fim de podermos construir no futuro um sistema de
saúde mais humano, comprometido com equidade e justiça social”.
Templo da cultura médica – Em levantamento feito pela professora de História da PUC/ Rio, a Margarida Souza Neves
detalha o rico acervo do prédio do Terreiro “sempre em reforma” que foi
comparado a um templo do saber médico pelo então vice-presidente do Instituto Bahiano de História da Medicina e Ciências Afins,
professor Antonio Carlos Nogueira Britto, em conferência proferida no
Anfiteatro Alfredo Britto no dia 18 de fevereiro de 2003, por ocasião da
comemoração dos 195 anos de Ensino Médico na Bahia. Assim falou:
Atentai, ó vós que estais a pisar este chão. Este chão é sagrado. Este chão, este solo, esta terra são ungidos, são consagrados, são abençoados pelos deuses da Medicina. Este é o chão do Santuário da Medicina primaz do Brasil.
No local onde foi construído o que Nogueira Britto classifica de
templo do saber médico e da ciência no Brasil abrigava, antes da
expulsão dos jesuítas de Portugal e suas colônias, o Colégio da
Companhia de Jesus, posteriormente transformado em Hospital Real
Militar da Bahia. Após decisão do príncipe-regente, instalou-se a Escola
de Cirurgia da Bahia, primeira escola médica do Brasil.
Em 1816 é convertido na Academia Médico-Cirúrgica da Bahia para tornar-se, em 1832, a Faculdade de Medicina da Bahia, em 1891 a Faculdade de Medicina e Farmácia da Bahia, voltar a ser em 1901 a Faculdade de Medicina da Bahia, quando as Universidades passaram a aglutinar as faculdades isoladas. Em 1946, transformar-se na Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia.
Em 1816 é convertido na Academia Médico-Cirúrgica da Bahia para tornar-se, em 1832, a Faculdade de Medicina da Bahia, em 1891 a Faculdade de Medicina e Farmácia da Bahia, voltar a ser em 1901 a Faculdade de Medicina da Bahia, quando as Universidades passaram a aglutinar as faculdades isoladas. Em 1946, transformar-se na Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia.
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Apesar de ter perdido a sede a faculdade para a nova unidade no
bairro da Canela, abriga desde 1918 o Memorial da Medicina, fiel
depositário de relíquias da história da medicina na Bahia e no Brasil
imagens dos grandes vultos da medicina baiana e aparelhos que foram
usados nos rituais acadêmicos do passado.
Várias sessões solenes foram realizadas na sala da Academia de
Medicina da Bahia. Já em processo de restauro passou a abrigar a
diretoria e secretaria geral da Faculdade de Medicina da Bahia em março
de 2004. Também os programas de extensão organizados pela instituição
passaram a ser ministrados na velha sede do Terreiro. Ainda é mantida a
tradição de as turmas de médicos que comemoram o aniversário de sua
formatura percorram, como em uma procissão, os corredores e salões
após a missa festiva na Catedral da Sé.
O templo da memória da medicina, do saber médico e do prestígio
social dos médicos na sociedade brasileira, ganhou sua atual arquitetura
após reconstrução motivada por um incêndio, em 1905, que destruiu a
construção anterior. Nela prevalecem os estilos dos templos clássicos
com colunas dóricas e jônicas, das absides das igrejas cristãs na
rotunda onde se instalou o anfiteatro.
A pesquisadora Margarida Neves destaca ainda o mobiliário,
ornamentos e os objetos que oferecem ao “visitante vislumbre de
fragmentos do passado de glória do lugar que se vê e é visto como o
berço da medicina no Brasil. Sua monumentalização no imaginário da
cidade de Salvador e naquele dos cientistas do Brasil revestiram o velho
prédio da função de lugar fundacional e de toda a carga simbólica que
costuma a acompanhar esses espaços. Por isso é o Memorial da Medicina,
sem uma especificação que o remeta à cidade de Salvador ou mesmo à
Bahia: é, por excelência, o Memorial da Medicina no Brasil”, define.
Abrigando material de valor inestimável, o Memorial guarda arquivo
formado por teses defendidas desde o século XIX, de matrículas dos
alunos, cadernetas, atas de concursos, e atas das sessões da Congregação
da Escola Médica. Se por um lado, o simbolismo do velho prédio destaca
tempos heroicos, por outro sintetiza o descaso para com a ciência no
Brasil.
Este descaso se manifesta no estado de ruína em que o prédio foi
relegado, muito em função da desmobilização arquitetada pelo regime
militar que se instaurou no país após 1964, como destaca o professor
Tavares-Neto. O desapreço pela memória científica brasileira também se
manifestou, cita a professora Margarida Neves, na noite do dia 2 de
março de 1905, com o incêndio que poderia ter sido controlado, segundo a
imprensa da época, caso os bombeiros tivessem sido mais eficientes e
melhor aparelhados. O fogo destruiu completamente a Biblioteca e algumas
dependências da Faculdade, inclusive o Gabinete de Medicina Legal
dirigido por Nina Rodrigues.
Foram destruídos os 22 mil volumes da mais valorosa Biblioteca Médica
do país. A tragédia se repete em outubro de 1951, quando outro
incêndio destruiu o pavilhão da frente da Faculdade de Medicina da
Bahia. Ambos retratos do desapreço que permitiu que os dois
“imprevistos” ocorressem. Não fosse doações feitas por professores,
particulares e instituições e a biblioteca não teria sido reconstruída.
Com a decadência agravada após os anos 50 do século passado, o
telhado da biblioteca ruiu, o mobiliário foi danificado em função das
chuvas e além de parte significativa dos livros, alguns deles raros.
Diagnostica Souza Neves: “Como tantas vezes acontece, depois do desastre
consumado, foram tomadas providências e um investimento significativo
foi destinado à restauração do que ainda possa ser recuperado. Quando da
recente visita de um Ministro de Estado às obras de restauração, em
lugar de expor as reais necessidades de equipamentos e de pessoal
especializado, o que foi mostrado foram os livros já higienizados e
recuperados, mas não o subterrâneo irrespirável onde se amontoam
milhares de livros ou o galpão vizinho a uma carpintaria, de portas
abertas para um pátio interno por onde circula quem quiser e com as
vidraças das janelas quebradas, repleto de livros, teses, periódicos
científicos e de sacos e mais sacos de lixo com livros irrecuperáveis,
alguns deles preciosos, fossilizados pela ação da chuva e do calor na
antiga biblioteca ou carcomidos pelas traças”.
A expectativa de médicos e de toda a sociedade baiana é que as obras
de reforma consigam vencer a lentidão burocrática do serviço público:
“As paredes do casarão do Terreiro de Jesus não guardam apenas relíquias
mortas da história da medicina e da ciência no Brasil. Os livros, as
teses médicas, os manuais e os periódicos científicos que um dia
estiveram na Biblioteca não guardam apenas informações que interessam
aos eruditos: são parte substancial da identidade da ciência no Brasil,
porque são memória viva, e como tal deveriam ser cuidados”, define a
pesquisadora. Muitos dos antigos mestres e alunos da Faculdade de
Medicina não aceitaram a decisão do regime militar de transferi-la para o
insosso prédio no Vale do Canela, nos anos 70, quando teve início a
total degradação do patrimônio instalado no Terreiro de Jesus, que
abrigara anteriormente o Colégio dos Jesuítas, parte integrante da
memória histórico-cultural de Salvador.
Confira as primeiras matérias da série especial Memória da Medicina
*Cláudio Antônio de Freitas Bandeira é jornalista especializado em Jornalismo Cientifico e Tecnológico
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