'Estão ocorrendo mortes por coronavírus sem diagnóstico na rede pública', diz pneumologista da Fiocruz
Margareth Dalcolmo defende o isolamento radical para que a Covid-19 não custe ainda mais caro
Ana Lucia Azevedo
27/03/2020 - 04:30
/ Atualizado em 27/03/2020 - 08:38
RIO — Como todos os médicos e cientistas, Margareth Dalcolmo, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz,
uma das pneumologistas mais experientes do país, se preocupa muito com o
risco de o Brasil não fazer o isolamento social necessário e a Covid-19 explodir descontroladamente nas comunidades onde as pessoas vivem aglomeradas e sem saneamento.
Pandemia: Genoma mostra que o novo coronavírus adquiriu características singulares no Brasil
Ela
teme porque vê, a cada dia, a doença mostrar um pedaço mais feio de sua
face. As sequelas dos sobreviventes podem ser incuráveis. E no Brasil a
Covid-19, até o momento, tem atacado adultos com menos de 50 anos com a ferocidade com que afeta os idosos na Itália.
O conhecimento muda a cada dia. Em que pé estamos?
Sabemos
que esse vírus é muito mais transmissível e letal do que a gripe comum.
E é imprevisível. Que fique claro, ele não causa uma pneumonia
clássica, do tipo que os médicos estão acostumados a ver.
Como ela é?
A
pneumonia da Covid-19 é muito diferente da comum. Ela se caracteriza
por ser intersticial e que evolui com fibrose pulmonar, muitas vezes
precoce. As tomografias dos pulmões mostram marcas que se parecem com
fibroses antigas. Nunca vimos isso antes. E isso é só parte do problema.
E o que mais?
O
processo inflamatório é muito grande. A Covid-19 causa uma imensa
inflamação. Ela começa pelos pulmões, mas depois se espalha pelo corpo,
pega outros órgãos.
Como é a evolução dos casos graves?
A
maioria começa como uma gripe comum e evolui rapidamente para
insuficiência respiratória aguda decorrente de uma pneumonia. Mas a
inflamação é tão grande que leva à sépsis, ou inflamação generalizada.
Todo o corpo começa a sofrer e a falhar. Na terceira fase vemos o
paciente sofrer de síndrome de angústia respiratória (Sara). Muitos não
voltam dessa fase.
Qual a extensão dos danos nos sobreviventes?
Não sabemos.
Como é uma doença nova, não há estudos com um grande número de
pacientes, que mostrem as sequelas mais frequentes, os danos que elas
causam. Não sabemos qual o grau de sequela que os sobreviventes podem
ter. E se as sequelas que vemos agora serão permanentes ou superadas.
Não sabemos como ficarão os pulmões desses pacientes. Se as cicatrizes
causadas pela Covid-19 ficarão e que tipo de perda de função poderão
provocar. O mundo ainda não conhece a face dessa doença, só um pedaço
dela.
E quando conheceremos?
À medida que o tempo avançar e
possamos saber o que aconteceu com os sobreviventes. Como os pulmões
deles reagiram, por quanto tempo sentirão problemas e se algum dia se
livrarão deles.
A disponibilidade de respiradores é essencial agora. Por que não foi com pandemias como as de gripe?
O
tempo que os pacientes graves precisam de ventilação é chocante e um
dos fatores que ameaça de colapso o sistema de saúde. Mesmo na gripe
H1N1, que causou pandemia em 2009 e ainda mata muita gente no Brasil e
no mundo, ele não é tão grande. Na H1N1 é de, em média, sete dias. Na
Covid-19, de 20 dias, às vezes mais.
Qual a dimensão disso?
É
verdade que 80% dos casos são leves e não precisam de hospitalização.
Mas metade dos 20% restantes vai precisar de ventilação, de
respiradores. Se há mil infectados, isso é absorvido pela rede de saúde.
Mas se há 50 mil infectados, haverá 5.000 pessoas precisando
simultaneamente de respiradores. Esse é o horror dessa doença que se
espalha depressa e deixa muita gente doente ao mesmo tempo
É isso que tem levado os médicos na Itália a escolher que pacientes salvar?
Sim.
Os mais velhos têm sido preteridos porque suas chances são, em tese,
menores. Mas essa é uma decisão horrorosa. Imagine ter que fazer isso
várias vezes por dia, o tempo todo. Temos pavor aqui no Brasil de
começar a ter que fazer a mesma coisa em breve. A Fiocruz, por exemplo,
está se preparando para poder oferecer 400 leitos. Mas em quanto tempo
eles serão ocupados?
Qual o risco Brasil para a Covid-19?
O
Brasil tem seus próprios riscos, que nos deixam muito vulneráveis.
Podemos não ter tantos idosos quanto a Itália, mas temos imensa parcela
de nossa população vivendo em condições precárias em comunidades. São
pessoas que correm alto risco tanto para si próprias quanto para
perpetuar a disseminação da doença.
O quão vulneráveis são?
Um
exemplo é o caso da tuberculose, uma doença que é fator de agravamento
da Covid-19. O Brasil tem uma taxa elevada, cerca de 30 casos por 100
mil habitantes. Em cidades como o Rio de Janeiro, ela já é muito alta,
de 70 a 75 casos por 100 mil. Mas na Cidade de Deus, onde houve um caso,
na Rocinha e em Manguinhos, por exemplo, ela explode para 280 a 300 por
100 mil. E nos presídios chega a absurdos 2.500 casos por 100 mil.
Cerca de 80% dos casos de tuberculose são pulmonares. Quando a Covid-19
encontrar a tuberculose teremos uma mortalidade absurda.
Isso pode mudar o perfil da doença no Brasil?
Sim. Aqui
poderemos “rejuvenescer” a Covid-19. A minha preocupação é que a média
de idade aqui seja muito mais jovem do que na Itália, justamente por
nossas condições socioeconômicas. Mas não só por isso, mas também pelo
que temos visto nos hospitais.
E o que tem sido observado?
A
média de idade dos pacientes em estado grave no Brasil está, por ora,
entre 47 anos e 50 anos. São pessoas de classe média e alta, internadas
na rede particular. E aqui ainda nem sabemos bem o que está acontecendo
porque existe uma lacuna entre os números oficiais e o que acontece nos
hospitais. Não temo em dizer que estão ocorrendo mortes por Covid-19 sem
diagnóstico na rede pública.
Por quê?
Porque sépsis e doenças pulmonares são muito comuns e não há testes para toda a rede.
O que podemos fazer hoje?
Defender
o isolamento social radical. Não há alternativa. Isso tem um alto custo
econômico, terrível mesmo. Mas a doença custará ainda mais caro. O
Brasil tem milhões de trabalhadores informais. O governo tem que
ajudá-los, mas a iniciativa privada também deveria colaborar com essa
parte. Não haverá vacina para salvar as pessoas nessa pandemia. A vacina
será para daqui a cerca de dois anos. Mas as pessoas estão morrendo
agora.
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