HISTÓRIA DE UM PAI
No início de minha vida profissional fui plantonista de um sério pronto
atendimento.
Nestes plantões eram lotados dois médicos, os
atendimentos eram para pacientes emergenciais, os casos mais graves eram transferidos
e recebidos com todo o prazer pelos plantonistas da unidade Hospitalar que
davam suporte a este pronto atendimento.
Naquela
época, como nos dias atuais, era discutido o que é um atendimento de urgência,
o que deve o médico atender, até que ponto é ético o médico dizer este caso não
é emergência e não deve ser atendido nesta casa e sim por outra unidade,
unidade esta que neste complexo existia e muitas vezes com especialistas.
Era um dia de domingo, 03h30min da manhã, chovia e a cidade estava
deserta, não me recordo o motivo, a pediatria encontrava-se desativada ,
recomendado cautela, os pacientes eram atendidos alternadamente , até a
meia noite era intenso o movimento, depois caia consideravelmente, neste
horário chegou um senhor de uns 40 anos de idade, trazia embalado nos braços
envolto num grosso lençol uma criança de 4 a 5 anos , foi até a recepção ,
disse que o filho estava com febre e dor na garganta.
A recepcionista explicou que não se tratava de uma emergência e que deveria
procurar o serviço adequado logo que o dia clareasse, o ambulatório de
otorrinolaringologia .
Humildemente, sem saber o que era um ambulatório e até mesmo o que
significava a complicada palavra otorrinolaringologista, o senhor
sentou numa cadeira defronte a televisão , que passava a noite ligada,
pensou, refletiu, voltou para a recepcionista, tentou explicar a sua
presença daquele horário , não logrou sucesso, voltou à sua
insignificância , sentou-se na última cadeira protegida pela grande porta
de vidro temperado , protegia cuidadosamente a sua cria do frio e
dos respingos da torrencial chuva que banhava o solo soteropolitano da
Bahia de meu Deus.
Com o menor aconchegado ao colo e cheio de
amor solicitou que lhe mostrasse quem eram os médicos,
queria falar e solicitar pelo o amor de Deus que atendessem o seu filho, o
médico da vez respondeu que aquele caso não configurava uma emergência e poderia
muito bem esperar até o amanhecer. O esculápio pensou: " amigdalite
às 3h30 da manhã, era brincadeira, porque não levou o garoto durante o
dia no ambulatório apropriado, resmungou para si, amigdalite às 3 e 30, é
demais .
Ao ver a cena
e sentir naquele pai um semblante de diminuição, de inferioridade e de
desvalorização como cidadão, chamei o colega, solicitei que atendesse , foi
irredutível, o colega, como Pilatos, lavou as mãos.
Não pensei duas vezes, mandei fazer a ficha , solicitei que colocasse o pai e o filho no consultório, chamei o colega e frente a frente iniciei a consulta, não uma consulta médico-clínico, mas uma consulta médico-social.
Não pensei duas vezes, mandei fazer a ficha , solicitei que colocasse o pai e o filho no consultório, chamei o colega e frente a frente iniciei a consulta, não uma consulta médico-clínico, mas uma consulta médico-social.
O pai revelou que morava na periferia, que saíra de casa às 06 horas da manhã,
trabalhava numa empresa encostada noutra, nem mais era terceirizada, o
transporte era uma casinha adaptada sobre a carroceria de um caminhão, não
tinha alimentação nem garantia de emprego , era o último a chegar em
casa, no subúrbio ferroviário, depois de uma peregrinação por toda a
cidade devido o despejo dos seus pares que moravam em pontos diversos.
Naquele dia havia deixado
a fábrica às 22h, rodara por mais de 150 quilômetros, ao chegar em casa, sem
almoço e sem jantar, sem banho e possuído pelo cansaço foi avisado pela esposa
que o menino estava com febre e esperava o pai para levá-lo ao médico , matou a
sede, encostou a mochila e a marmita, embalou a criança e debaixo de chuva
andou a pé três mil metros, pegou o trem suburbano que se conectava com o
ultimo ônibus e depois de rodar 30 quilômetros atingiu o fim de linha, um
turístico logradouro, desceu a pé um íngreme , enladeirado , longo e deserto
percurso da grande praça ao longínquo serviço de urgência.
Na
solidão do caminho, na escuridão da noite, sob o frio da úmida e torrencial
chuva, arriscando as suas vidas mergulhou na realidade. Na cabeça um
turbilhão de pensamentos, todos de baixa estima: pobre, não bonito, suburbano,
pertencente a uma categoria sem valor, afro descendente, naquele
dia sem se alimentar e cansado foi tomado pelo desânimo, porém, tinha um filho,
possuía um rei, possuía uma das razões que justificava viver, que justificava
todo e qualquer sacrifício, aliás, levar o seu filho a um médico não era
sacrifício, era um prazer apesar da imensa tristeza.
Pensava no seu trabalho, na sua família e no seu pai, via e sentia
naquela hora, naquele momento como era difícil a vida, como era dura, como era
insignificante diante do mundo, ainda bem que existia o médico, este sim me
compreendia, este sim era homem de coração bom, este sim atendia a toda hora,
atendia em todos os momentos, nos momentos de necessidades e sempre alegre,
sempre rindo, ainda bem que existia o médico, neste mundo só o médico, somente
o médico era verdadeiramente humano, quem era ele para ser atendido, para
receber a atenção daquela espécie de homem, homem estudado e importante, o
homem de branco, inclusive por ele ser um simples operário era condição
suficiente para não ser atendido, ainda assim o médico atendia, atendia
porque era humano, porque era bom, porque era gente, apesar de estudado era
gente e foi assim que veio pensando em todo o seu longo e difícil trajeto,
imaginava encontrar um amigo, um amigo que lhe escutasse, que lhe estendesse as
mãos , que lhe acolhesse , que lhe desse atenção e que lhe desse
socorro, ainda bem que existe o médico. Disse também que saiu preocupado como
voltaria, com que carro, com qual dinheiro e para ir ao trabalho no outro dia,
sem dormir, sem comer, sem condições de faltar e se fosse demitido? Porém, nada
disso era mais importante do que aquele filho, nada tinha mais importância do
que a saúde do seu filho, ainda bem que existe o médico, ainda bem que ainda
existe a compaixão, ainda bem.
O colega frente a frente com o relato , cara a cara com o menor e o pai , silenciosamente escutava o relato paterno.
Aquele depoimento era mais um desabafo, um desabafo social, um
desabafo para com ele mesmo, um desabafo quem sabe, talvez para com DEUS, e o
colega escutava calado, silencioso, olhar perdido, o colega estava noutro
mundo, o colega viajava, estava bem distante, não sei onde, num lugar
longínquo; cabisbaixo. Repentinamente, com os olhos marejados, voz trêmula,
rompeu o silencio , abraçou o guerreiro pai e balbuciou:
“PAI, AH
SE TODOS OS PAIS FOSSEM ASSIM! COMO SERIA DIFERENTE”.
Pegou as rédeas do atendimento, arranjou energia não sei aonde, atendeu,
conversou, riu, ofereceu o seu lanche noturno e o café da manhã para aquele pai
exemplar , alimentou a criança , pediu-me que passasse o plantão pela manhã e
com a criança medicada, a bolsa cheia de amostras e muita disposição foi
conhecer na periferia onde morava um homem, onde morava um cidadão , onde
morava um verdadeiro pai e saíram os três na mesma condução .
Ainda hoje, nos encontros
da vida escuto do nobre e gentil colega : “Meu amigo, muito obrigado, a
medicina não é só conhecimentos técnicos é muito mais. A medicina é o social, é
o humanismo, é a ética, é o altruísmo, a medicina é a essência da cidadania, é
compaixão, a medicina é uma das representantes fiel de Deus”.
Ser médico enfim, é ser um misto de tudo quanto é de bom, ser médico é ser provedor, acolhedor e compreender os encontros e os desencontros do homem e da vida , ser médico é apenas ser Médico.
Ser médico enfim, é ser um misto de tudo quanto é de bom, ser médico é ser provedor, acolhedor e compreender os encontros e os desencontros do homem e da vida , ser médico é apenas ser Médico.
APENAS.
Iderval Reginaldo Tenório
23 de out de 2013 - Vídeo enviado por Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR)
O "Vale a pena ser médico" foi produzido em 2004 e traz uma emocionante reflexão sobre a a ..Adicionar legenda |
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