quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Escrevivencia-A-Escrita-de-Nos-Conceicao-Evaristo.pdf

   

 Conceição Evaristo - São Bernardo

 CONCEIÇÃO EVARISTO - “A escrevivência serve também para as pessoas  pensarem” | Itaú Social

 https://www.itausocial.org.br/wp-content/uploads/2021/04/Escrevivencia-A-Escrita-de-Nos-Conceicao-Evaristo.pdf

Coenheçam uma das obras da Conceição Evaristo. Todos os brasileiros deveriam conhecer esta trajetória  de vifda. 

 Da grafia-desenho de
minha mãe, um dos
lugares de nascimento
de minha escrita 

Conceição Evaristo

Talvez o primeiro sinal gráfico que me foi apresentado como
escrita, tenha vindo de um gesto antigo de minha mãe. An-
cestral, quem sabe? Pois de quem ela teria herdado aque-
le ensinamento, a não ser dos seus, os mais antigos ainda?
Ainda me lembro, o lápis era um graveto, quase sempre em
forma de uma forquilha, e o papel era a terra lamacenta,
rente as suas pernas abertas. Mãe se abaixava, mas antes
cuidadosamente ajuntava e enrolava a saia, para prendê-la
entre as coxas e o ventre. E de cócoras, com parte do corpo
quase alisando a umidade do chão, ela desenhava um gran-
de sol, cheio de infinitas pernas. Era um gesto solene, que
acontecia sempre acompanhado pelo olhar e pela postura
cúmplice das filhas, eu e minhas irmãs, todas nós ainda me-
ninas. Era um ritual de uma escrita composta de múltiplos
gestos, em que todo o corpo dela se movimentava e não só
os dedos. E os nossos corpos também, que se deslocavam
no espaço acompanhando os passos de mãe em direção à
página-chão em que o sol seria escrito. Aquele gesto de mo-
vimento-grafia era uma simpatia para chamar o sol. Fazia-se
a estrela no chão.


Na composição daqueles traços, na arquitetura daqueles
símbolos, alegoricamente, ela imprimia todo o seu desespero.
Minha mãe não desenhava, não escrevia somente um sol, ela
chamava por ele, assim como os artistas das culturas tradicio-
nais africanas sabem que as suas máscaras não representam
uma entidade, elas são as entidades esculpidas e nomeadas
por eles. E no círculo-chão, minha mãe colocava o sol, para
que o astro se engrandecesse no infinito e se materializasse
em nossos dias. Nossos corpos tinham urgências. O frio se
fazia em nossos estômagos. Na nossa pequena casa, roupas
molhadas, poucas as nossas e muitas as alheias, isto é, as das
patroas, corriam o risco de mofar acumuladas nas tinas e nas
bacias. A chuva contínua retardava o trabalho e o pouco di-
nheiro, advindo dessa tarefa, demorava mais e mais no tempo.
Precisávamos do tempo seco para enxugar a preocupação da
mulher que enfeitava a madrugada com lençóis arrumados
um a um nos varais, na corda bamba da vida. Foi daí, talvez,
que eu descobri a função, a urgência, a dor, a necessidade e a esperança da escrita. É preciso comprometer a vida com
a escrita ou é o inverso? Comprometer a escrita com a vida?


Mais um momento, ainda bem menina, em que a escrita
me apareceu em sua função utilitária e, às vezes, até cons-
trangedora, era na hora da devolução das roupas limpas.


Uma leitura solene do rol acontecia no espaço da cozinha
das senhoras:
4 lençóis brancos,
4 fronhas,
4 cobre-leitos,
4 toalhas de banho,
4 toalhas de rosto,
2 toalhas de mesa,
15 calcinhas,
20 toalhinhas,
10 cuecas,
7 pares de meias,
etc. etc. etc.
 

As mãos lavadeiras, antes tão firmes no esfrega-torce
e no passa-dobra das roupas, ali diante do olhar conferente
das patroas, naquele momento se tornavam trêmulas, com
receio de terem perdido ou trocado alguma peça. Mãos que
obedeciam a uma voz-conferente. Uma mulher pedia, a outra
entregava. E quando, eu menina testemunhava as toalhinhas
antes embebidas de sangue, e depois, já no ato da entrega,
livres de qualquer odor ou nódoa, mais a minha incompreen-
são diante das mulheres brancas e ricas crescia. As mulheres
de minha família, não sei como, no minúsculo espaço em que
vivíamos, segredavam seus humores íntimos. Eu não conhe-
cia o sangramento de nenhuma delas. E quando em meio às
roupas sujas, vindas para a lavagem, eu percebia calças de
mulheres e minúsculas toalhas, não vermelhas, e sim san-
gradas do corpo das madames, durante muito tempo pensei
que as mulheres ricas urinassem sangue de vez em quando.
Foram, ainda, essas mãos lavadeiras, com seus sóis ris-
cados no chão, com seus movimentos de lavar o sangue ín-
Da grafia-desenho de minha mãe,
um dos lugares de nascimento de minha escrita timo de outras mulheres, de branquejar a sujeira das roupas
dos outros, que desesperadamente seguraram em minhas
mãos. Foram elas que guiaram os meus dedos no exercício
de copiar meu nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os nú-
meros, difíceis deveres de escola, para crianças oriundas de
famílias semianalfabetas. Foram essas mãos também que,
folheando comigo revistas velhas, jornais e poucos livros que
nos chegavam recolhidos dos lixos ou recebidos das casas dos
ricos, aguçaram a minha curiosidade para a leitura e para a
escrita. Daquelas mãos lavadeiras recebi também cadernos
feitos de papéis de embrulho de pão, ou ainda outras folhas
soltas, que, pacientemente costuradas, evidenciavam a nossa
pobreza, e distinguiam mais uma de nossas diferenças, em
um grupo escolar, que nos anos 50 recebia a classe média
alta belorizontina.


Das mãos lavadeiras, recebi ainda listas de mantimentos,
palavras cifradas, preços calculados para não ultrapassar o
nosso minguado orçamento (sempre ultrapassavam) e lá ia eu,
menina, às tendinhas, aos armazéns e às padarias perto da
favela para fazer compras. Nesse exercício de quase adivinhar
os textos escritos produzidos por minha família, quem sabe o
meu aprendizado para um dia caminhar pelas vias da ficção…


Ainda, uma de minhas tias, a que me criou, tinha por
hábito anotar resumidamente em folhas de papéis datas
e acontecimentos importantes, desde fatos relacionados à
economia doméstica a acontecimentos sociais ou religiosos.
Anotações familiares como:
“A nossa última galinha d’angola fugiu semana
passada, isto é, no final do mês de novembro”.
“No dia 13 de dezembro, pus a galinha garnisé
para jogar sobre nove ovos”.
“Dona Etelvina de Seu Basílio voltou para São
Paulo no dia 15 de agosto de 1965”.
“Já paguei duas mensalidades para ajudar na
festa da Capela do Rosário”.
“Maria Inês, minha sobrinha, ficou noiva no dia
22 de junho de 1969”.
 

Conceição Evaristo52
E à medida que eu crescia e os meus conhecimentos tam-
bém, alguns desses eventos passaram a ser registrados por
mim, como também passou a ser de minha responsabilidade
cuidar de meus irmãos menores na escola, acompanhar seus
deveres, ir às reuniões escolares e transmitir os resultados
para minha mãe. De meus irmãos passei a acompanhar os
deveres das crianças menores vizinhas. No pequeno quintal
de nossa casa, debaixo das árvores, improvisei uma sala de
aula. Das moedas, que me eram dadas pelas mães gratas
pelo desenvolvimento de seus filhos na escola, surgia meu
primeiro salariozinho. Riqueza que me permitia comprar ora
o pão diário, ora açúcar, ora o leite do irmãozinho menor, ora
um caderno para mim, e às vezes algum livrinho, (revistinhas
infantis, gibis, que não sei por que eu considerava como sendo
livro) ou ainda obter uma alegria maior: doces, doces, doces…
 

Mas digo sempre: creio que a gênese de minha escrita
está no acúmulo de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo
das palavras, das histórias que habitavam em nossa casa e
adjacências. Dos fatos contados à meia-voz, dos relatos da
noite, segredos, histórias que as crianças não podiam ou-
vir. Eu fechava os olhos fingindo dormir e acordava todos os
meus sentidos. O meu corpo por inteiro recebia palavras, sons,
murmúrios, vozes entrecortadas de gozo ou dor, dependendo
do enredo das histórias. De olhos cerrados eu construía as
faces de minhas personagens reais e falantes. Era um jogo
de escrever no escuro. No corpo da noite.
 

Na origem da minha escrita ouço os gritos, os chamados
das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das
portas, contando em voz alta umas para as outras as suas
mazelas, assim como as suas alegrias. Como ouvi conversas
de mulheres! Falar e ouvir entre nós, era a talvez a única de-
fesa, o único remédio que possuíamos. Venho de uma família
em que as mulheres, mesmo não estando totalmente livres
de uma dominação machista, primeira a dos patrões, depois
a dos homens seus familiares, raramente se permitiam fra-
gilizar. Como “cabeça” da família, elas construíam um mun-
do próprio, muitas vezes distantes e independentes de seus
homens e mormente para apoiá-los depois. Talvez por isso
Da grafia-desenho de minha mãe,
um dos lugares de nascimento de minha escrita tantas personagens femininas em meus poemas e em minhas
narrativas? Pergunto sobre isto, não afirmo.
 

Afirmo, porém que foi do tempo/espaço que aprendi
desde criança a colher as palavras. Não nasci rodeada de
livros, do meu berço trago a propensão, o gosto para ou-
vir e contar histórias. A grande oportunidade para a leitura
constante me chegou, quando eu, já quase mocinha, tinha a
autonomia para ir e vir à Biblioteca Pública de Belo Horizonte,
casa-tesouro, em que uma das minhas tias se tornou servente.
 

Se a leitura desde a adolescência foi para mim um meio,
uma maneira de suportar o mundo, pois me proporcionava
um duplo movimento de fuga e inserção no espaço em que
eu vivia, a escrita também, desde aquela época, abarcava
essas duas possibilidades. Fugir para sonhar e inserir-se para
modificar. Essa inserção para mim pedia a escrita. E se, in-
conscientemente, desde pequena, nas redações escolares
eu inventava outro mundo, pois dentro dos meus limites de
compreensão, eu já havia entendido a precariedade da vida
que nos era oferecida, aos poucos fui ganhando uma cons-
ciência. Consciência que compromete a minha escrita como
um lugar de autoafirmação de minhas particularidades, de
minhas especificidades como sujeito-mulher-negra.
 

E retomando a imagem da escrita diferencial de minha
mãe, que surge marcada por um comprometimento de tra-
ços e corpo, (o dela e os nossos) e ainda a de um de diário
escrito por ela, volto ao gesto em que ela escrevia o sol na
terra e imponho a mim mesma uma pergunta. O que levaria
determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não
letrados, e quando muito, semialfabetizados, a romperem com
a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita?
 

Tento responder. Talvez, estas mulheres (como eu) te-
nham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do
mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção
da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito
da escrita, proporcionando-lhe a sua autoinscrição no interior
do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por
mulheres negras, que historicamente transitam por espaços
culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. Insu-
bordinação que pode se evidenciar, muitas vezes, desde uma
escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso exemplar
o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da
matéria narrada.
 

A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias
para “ninar os da casa-grande”, e sim para incomodá-los em
seus sonos injustos.

 

Oii colegas, criei nosso grupo
Segue o link
Em qua., 10 de set. de 2025 às 20:58, Cristiane santos de melo <cristianemelopedagoga@gmail.com> escreveu:
Olá Pessoas,

Espero que estejam bem!!!!

Meu nome é Cristiane Melo e estou muito feliz com o convite para iniciarmos nosso primeiro diálogo no dia 16/09. Para a nossa conversa, sugiro a leitura de dois textos, informados abaixo e anexados no email.

* EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita, p. 48-54. O texto pode ser acessado em: https://www.itausocial.org.br/wp-content/uploads/2021/04/Escrevivencia-A-Escrita-de-Nos-Conceicao-Evaristo.pdf

* SANTIAGO, FLAVIO. “Não é nenê, ela é preta”: educação infantil e pensamento interseccional. Educação em revista, v. 36, p. e220090, 2020.   O texto pode ser acessado em:   https://www.scielo.br/j/edur/a/tyzm4v7TDVpDtsBcNmvhKzz/?format=html&lang=pt

Aguardo a todes na semana que vem!

Um abraço,

Cristiane Melo

Em qua., 10 de set. de 2025 às 18:12, Carmen Faustino <carmenfaustino@gmail.com> escreveu:
Oi pessoal, boa noite!

Bom, sou Carmen Faustino e estarei com vocês no dia 23/09. 
Vou trabalhar os textos da Intelectual e feminista negra Audre Lorde.
Segue o link por aqui, ele se encontra também na minuta do programa, aula 12.

Até!

 Da grafia-desenho de
minha mãe, um dos
lugares de nascimento
de minha escrita1
Conceição Evaristo

Talvez o primeiro sinal gráfico que me foi apresentado como
escrita, tenha vindo de um gesto antigo de minha mãe. An-
cestral, quem sabe? Pois de quem ela teria herdado aque-
le ensinamento, a não ser dos seus, os mais antigos ainda?
Ainda me lembro, o lápis era um graveto, quase sempre em
forma de uma forquilha, e o papel era a terra lamacenta,
rente as suas pernas abertas. Mãe se abaixava, mas antes
cuidadosamente ajuntava e enrolava a saia, para prendê-la
entre as coxas e o ventre. E de cócoras, com parte do corpo
quase alisando a umidade do chão, ela desenhava um gran-
de sol, cheio de infinitas pernas. Era um gesto solene, que
acontecia sempre acompanhado pelo olhar e pela postura
cúmplice das filhas, eu e minhas irmãs, todas nós ainda me-
ninas. Era um ritual de uma escrita composta de múltiplos
gestos, em que todo o corpo dela se movimentava e não só
os dedos. E os nossos corpos também, que se deslocavam
no espaço acompanhando os passos de mãe em direção à
página-chão em que o sol seria escrito. Aquele gesto de mo-
vimento-grafia era uma simpatia para chamar o sol. Fazia-se
a estrela no chão.


Na composição daqueles traços, na arquitetura daqueles
símbolos, alegoricamente, ela imprimia todo o seu desespero.
Minha mãe não desenhava, não escrevia somente um sol, ela
chamava por ele, assim como os artistas das culturas tradicio-
nais africanas sabem que as suas máscaras não representam
uma entidade, elas são as entidades esculpidas e nomeadas
por eles. E no círculo-chão, minha mãe colocava o sol, para
que o astro se engrandecesse no infinito e se materializasse
em nossos dias. Nossos corpos tinham urgências. O frio se
fazia em nossos estômagos. Na nossa pequena casa, roupas
molhadas, poucas as nossas e muitas as alheias, isto é, as das
patroas, corriam o risco de mofar acumuladas nas tinas e nas
bacias. A chuva contínua retardava o trabalho e o pouco di-
nheiro, advindo dessa tarefa, demorava mais e mais no tempo.
Precisávamos do tempo seco para enxugar a preocupação da
mulher que enfeitava a madrugada com lençóis arrumados
um a um nos varais, na corda bamba da vida. Foi daí, talvez,
que eu descobri a função, a urgência, a dor, a necessidade e a esperança da escrita. É preciso comprometer a vida com
a escrita ou é o inverso? Comprometer a escrita com a vida?


Mais um momento, ainda bem menina, em que a escrita
me apareceu em sua função utilitária e, às vezes, até cons-
trangedora, era na hora da devolução das roupas limpas.


Uma leitura solene do rol acontecia no espaço da cozinha
das senhoras:
4 lençóis brancos,
4 fronhas,
4 cobre-leitos,
4 toalhas de banho,
4 toalhas de rosto,
2 toalhas de mesa,
15 calcinhas,
20 toalhinhas,
10 cuecas,
7 pares de meias,
etc. etc. etc.
As mãos lavadeiras, antes tão firmes no esfrega-torce
e no passa-dobra das roupas, ali diante do olhar conferente
das patroas, naquele momento se tornavam trêmulas, com
receio de terem perdido ou trocado alguma peça. Mãos que
obedeciam a uma voz-conferente. Uma mulher pedia, a outra
entregava. E quando, eu menina testemunhava as toalhinhas
antes embebidas de sangue, e depois, já no ato da entrega,
livres de qualquer odor ou nódoa, mais a minha incompreen-
são diante das mulheres brancas e ricas crescia. As mulheres
de minha família, não sei como, no minúsculo espaço em que
vivíamos, segredavam seus humores íntimos. Eu não conhe-
cia o sangramento de nenhuma delas. E quando em meio às
roupas sujas, vindas para a lavagem, eu percebia calças de
mulheres e minúsculas toalhas, não vermelhas, e sim san-
gradas do corpo das madames, durante muito tempo pensei
que as mulheres ricas urinassem sangue de vez em quando.
Foram, ainda, essas mãos lavadeiras, com seus sóis ris-
cados no chão, com seus movimentos de lavar o sangue ín-
Da grafia-desenho de minha mãe,
um dos lugares de nascimento de minha escrita
51
timo de outras mulheres, de branquejar a sujeira das roupas
dos outros, que desesperadamente seguraram em minhas
mãos. Foram elas que guiaram os meus dedos no exercício
de copiar meu nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os nú-
meros, difíceis deveres de escola, para crianças oriundas de
famílias semianalfabetas. Foram essas mãos também que,
folheando comigo revistas velhas, jornais e poucos livros que
nos chegavam recolhidos dos lixos ou recebidos das casas dos
ricos, aguçaram a minha curiosidade para a leitura e para a
escrita. Daquelas mãos lavadeiras recebi também cadernos
feitos de papéis de embrulho de pão, ou ainda outras folhas
soltas, que, pacientemente costuradas, evidenciavam a nossa
pobreza, e distinguiam mais uma de nossas diferenças, em
um grupo escolar, que nos anos 50 recebia a classe média
alta belorizontina.


Das mãos lavadeiras, recebi ainda listas de mantimentos,
palavras cifradas, preços calculados para não ultrapassar o
nosso minguado orçamento (sempre ultrapassavam) e lá ia eu,
menina, às tendinhas, aos armazéns e às padarias perto da
favela para fazer compras. Nesse exercício de quase adivinhar
os textos escritos produzidos por minha família, quem sabe o
meu aprendizado para um dia caminhar pelas vias da ficção…


Ainda, uma de minhas tias, a que me criou, tinha por
hábito anotar resumidamente em folhas de papéis datas
e acontecimentos importantes, desde fatos relacionados à
economia doméstica a acontecimentos sociais ou religiosos.
Anotações familiares como:
“A nossa última galinha d’angola fugiu semana
passada, isto é, no final do mês de novembro”.
“No dia 13 de dezembro, pus a galinha garnisé
para jogar sobre nove ovos”.
“Dona Etelvina de Seu Basílio voltou para São
Paulo no dia 15 de agosto de 1965”.
“Já paguei duas mensalidades para ajudar na
festa da Capela do Rosário”.
“Maria Inês, minha sobrinha, ficou noiva no dia
22 de junho de 1969”.
Conceição Evaristo52
E à medida que eu crescia e os meus conhecimentos tam-
bém, alguns desses eventos passaram a ser registrados por
mim, como também passou a ser de minha responsabilidade
cuidar de meus irmãos menores na escola, acompanhar seus
deveres, ir às reuniões escolares e transmitir os resultados
para minha mãe. De meus irmãos passei a acompanhar os
deveres das crianças menores vizinhas. No pequeno quintal
de nossa casa, debaixo das árvores, improvisei uma sala de
aula. Das moedas, que me eram dadas pelas mães gratas
pelo desenvolvimento de seus filhos na escola, surgia meu
primeiro salariozinho. Riqueza que me permitia comprar ora
o pão diário, ora açúcar, ora o leite do irmãozinho menor, ora
um caderno para mim, e às vezes algum livrinho, (revistinhas
infantis, gibis, que não sei por que eu considerava como sendo
livro) ou ainda obter uma alegria maior: doces, doces, doces…
 

Mas digo sempre: creio que a gênese de minha escrita
está no acúmulo de tudo que ouvi desde a infância. O acúmulo
das palavras, das histórias que habitavam em nossa casa e
adjacências. Dos fatos contados à meia-voz, dos relatos da
noite, segredos, histórias que as crianças não podiam ou-
vir. Eu fechava os olhos fingindo dormir e acordava todos os
meus sentidos. O meu corpo por inteiro recebia palavras, sons,
murmúrios, vozes entrecortadas de gozo ou dor, dependendo
do enredo das histórias. De olhos cerrados eu construía as
faces de minhas personagens reais e falantes. Era um jogo
de escrever no escuro. No corpo da noite.
 

Na origem da minha escrita ouço os gritos, os chamados
das vizinhas debruçadas sobre as janelas, ou nos vãos das
portas, contando em voz alta umas para as outras as suas
mazelas, assim como as suas alegrias. Como ouvi conversas
de mulheres! Falar e ouvir entre nós, era a talvez a única de-
fesa, o único remédio que possuíamos. Venho de uma família
em que as mulheres, mesmo não estando totalmente livres
de uma dominação machista, primeira a dos patrões, depois
a dos homens seus familiares, raramente se permitiam fra-
gilizar. Como “cabeça” da família, elas construíam um mun-
do próprio, muitas vezes distantes e independentes de seus
homens e mormente para apoiá-los depois. Talvez por isso
Da grafia-desenho de minha mãe,
um dos lugares de nascimento de minha escrita
53
tantas personagens femininas em meus poemas e em minhas
narrativas? Pergunto sobre isto, não afirmo.
 

Afirmo, porém que foi do tempo/espaço que aprendi
desde criança a colher as palavras. Não nasci rodeada de
livros, do meu berço trago a propensão, o gosto para ou-
vir e contar histórias. A grande oportunidade para a leitura
constante me chegou, quando eu, já quase mocinha, tinha a
autonomia para ir e vir à Biblioteca Pública de Belo Horizonte,
casa-tesouro, em que uma das minhas tias se tornou servente.
 

Se a leitura desde a adolescência foi para mim um meio,
uma maneira de suportar o mundo, pois me proporcionava
um duplo movimento de fuga e inserção no espaço em que
eu vivia, a escrita também, desde aquela época, abarcava
essas duas possibilidades. Fugir para sonhar e inserir-se para
modificar. Essa inserção para mim pedia a escrita. E se, in-
conscientemente, desde pequena, nas redações escolares
eu inventava outro mundo, pois dentro dos meus limites de
compreensão, eu já havia entendido a precariedade da vida
que nos era oferecida, aos poucos fui ganhando uma cons-
ciência. Consciência que compromete a minha escrita como
um lugar de autoafirmação de minhas particularidades, de
minhas especificidades como sujeito-mulher-negra.
 

E retomando a imagem da escrita diferencial de minha
mãe, que surge marcada por um comprometimento de tra-
ços e corpo, (o dela e os nossos) e ainda a de um de diário
escrito por ela, volto ao gesto em que ela escrevia o sol na
terra e imponho a mim mesma uma pergunta. O que levaria
determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não
letrados, e quando muito, semialfabetizados, a romperem com
a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita?
 

Tento responder. Talvez, estas mulheres (como eu) te-
nham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do
mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção
da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito
da escrita, proporcionando-lhe a sua autoinscrição no interior
do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por
mulheres negras, que historicamente transitam por espaços
culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das
Conceição Evaristo54
elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. Insu-
bordinação que pode se evidenciar, muitas vezes, desde uma
escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso exemplar
o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da
matéria narrada.
 

A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias
para “ninar os da casa-grande”, e sim para incomodá-los em
seus sonos injustos.

 

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