sábado, 20 de setembro de 2025

A despedida da drag queen/Rita Von Hunty

A despedida da drag queen que revolucionou a educação popular no Brasil. Por Milly Lacombe

No UOL

Rita Von Hunty quebrou. A personagem criada pelo professor Guilherme Terreri disse, em vídeo publicado sem seu cana no Youtube, que precisa parar. Guilherme e Rita não suportaram seguir nesse mundo dentro do qual genocídios são tratados como disputas, tretas, polêmicas. Ecoaram o que escreveu Vladimir Safatle em “O Alfabeto das colisões”: a verdadeira decisão ética aqui consiste em recusar qualquer compromisso com a permanência de uma situação histórica fundada na infelicidade de muitos. Nesses casos, a felicidade acaba por ser uma arma apontada contra a consciência da irreconciliação. Ela é apresentada como uma fortaleza individual, mas se realiza na verdade como capitulação”.

O vídeo de despedida de Rita Von Hunty, o nome da drag-queen criada por Terreri há dez anos, é delicado, sensível, comovente, dilacerante. Desde 2015, Rita Von Hunty leciona com impressionante didatismo sobre cultura, literatura, política, filosofia e sociologia. Seu canal tem hoje quase 1,5 milhões de inscritos. Usando um pitoresco sotaque italiano, ela educa enquanto diverte. O nome é uma mistura: Rita é uma homenagem a Rita Hayworth (1918-1987); a preposição von vem da dançarina burlesca estadunidense Dita von Teese; e o hunty é gíria usada entre drag queens gringas para demonstrar admiração.

O que levou Terreri a quebrar? Basicamente, como conta no vídeo de despedida, a situação de extermínio em Gaza. Enquanto, há algumas semanas, gravava um vídeo sobre a Palestina, Rita colapsou. Terreri contou que a pesquisa para gravar o vídeo, somada a uma aula que deu durante uma vigília a favor do direito de existir do povo palestino, ele resgatou um texto de Susan Sontag (Diante da Dor dos Outros) e se deparou com uma hipótese desoladora da autora a respeito dos conflitos atuais. Sontag falava da guerra contra o terror, promovida por Bush, mas profetizava que a exposição em tempo real a um genocídio não produziria nos seres humanos o horror necessário para que o genocídio fosse interrompido. Produziria a apatia, a normalização do absurdo.

No vídeo de despedida, Terreri dá dados sobre as mortes em Gaza, sobre o pavor gerado pelo assassinato de crianças, mulheres e idosos. Com a voz embargada e o olhar entristecido, como o avesso da personagem que criou, o educador não fez questão de esconder o sofrimento. Gaza, para ele, sinaliza uma espécie de fim dos tempos. O fim de um tempo, pelo menos. “Gaza é o fim da possibilidade de acreditar nos direitos humanos”, diz.

Foi na preparação do roteiro da aula a respeito da Palestina que Terreri compreendeu que não conseguiria seguir. Não poderia atravessar esse acontecimento histórico repetindo a vida de antes. O educador foi invadido por uma onda de realidade que o fez ficar de joelhos e perder o ar. Hora de se recuperar, de se reorganizar, de descansar, de buscar novos olhares, outras forças, outra dimensão para confiar naquilo que não podemos enxergar.

Recorro a Safatle novamente: “a ética se tornou um aprendizado sobre como cair e como se quebrar. Há certos momentos em que o mais importante é saber como cair. Pois fomos feitos para nos quebrarmos”.

Faz dez anos que Terreri planta sementes. Outros farão agora a colheita necessária para que a luta siga. Guilherme Terreri vai descansar e se reconectar. Ele avisou que um dia pode voltar. A gente aguarda sabendo que, o fundamental, é seguir uns pelos outros e uns com os outros. São tempos brutais como nenhum outro que nossas gerações já viveram. Vamos enfrentar o que nossos antepassados já enfrentaram e que achávamos que não precisaríamos jamais ter que enfrentar novamente. Monstros antigos vestidos em novas roupas. Aos que quebram, nossa solidariedade. A luta se faz tanto na ação quanto na parada. Obrigada por tanto, Rita. Fica com meu carinho, Guilherme.


 pausa de Rita von Hunty, debate gênero e conta dates



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