Pesquisa feita pela Universidade de Harvard, com órfãos da Romênia, comprova que o abandono por tempo prolongado pode causar danos neurológicos em crianças.
A ciência confirmou o que muitos educadores, psicólogos, pais e cuidadores já haviam percebido na prática.
Além de traumas psicológicos, o abandono nos primeiros anos de vida pode causar danos graves no desenvolvimento neurológico das crianças. Um estudo conhecido como Órfãos da Romênia, com alto nível de precisão e rigor científico, mapeou nos últimos 20 anos os efeitos da institucionalização precoce no desenvolvimento do cérebro de crianças.
Realizado pelo Hospital de Crianças de Boston, da Universidade de Harvard, tem apresentado resultados devastadores.
Entre outros fatos, a pesquisa demonstra que crianças abrigadas por tempo prolongado, especialmente durante os primeiros anos de vida, têm déficits cognitivos significativos. Isso inclui diminuição de QI, aumento do risco de distúrbios psicológicos, redução da capacidade linguística, dificuldade de criação de vínculos afetivos, crescimento físico atrofiado, entre inúmeros outros sérios problemas, alguns deles irreversíveis.
Por outro lado, uma análise comparativa, com base em exames de eletroencefalograma (EEG) mostrou que a intervenção precoce e eficaz pode ter um impacto positivo nos resultados a longo prazo.
No estudo, constataram que existe uma janela de tempo, denominada período crítico, que afeta campos cognitivos e emocionais. Já sabíamos das carências e consequências emocionais. Agora temos provas e urgências ligadas aos processos neurológicos.
Cada ano que uma criança vive num abrigo institucional resulta em quatro meses de déficit em sua cognição geral.
Como o estudo foi realizado
Os pesquisadores americanos selecionaram 136 crianças entre 6 meses e 2,5 anos, abandonadas em instituições governamentais nos primeiros anos de vida, todas sem problemas neurológicos ou genéticos.
Metade dessas crianças, escolhidas aleatoriamente, foi transferida para um acolhimento de alta performance criado especialmente para este estudo e a outra parte permaneceu nas instituições precárias e super lotadas.
Também foi selecionado um grupo comparativo de 72 crianças que nunca haviam sido institucionalizadas e viviam com suas famílias de origem.
Contexto histórico
No início da pesquisa, no outono de 2000, a Romênia vivia os reflexos do duro regime comunista de Nicolae Ceausescu. Para aumentar a natalidade e a mão de obra no país, o ditador proibiu o aborto, o uso de contraceptivos e cobrava altos impostos das famílias que não tivessem filhos ou dos que tivessem poucos.
O resultado foi a explosão da taxa de natalidade, que aliado à miséria do país, levou milhares de bebês e crianças aos orfanatos estatais. Ao final do regime de Ceausescu, em 1989, quando foi executado pelo Exército, havia mais de 170 mil órfãos vivendo em 700 instituições superlotadas e precárias.
Cresciam isoladas do resto da sociedade, eram frequentemente vítimas de castigos físicos e de abusos sexuais e algumas sofriam de desnutrição.
Comparando com o Brasil
Como dado comparativo, a população do Brasil é atualmente dez vezes maior do que na Romênia, e o número de crianças e adolescentes acolhidas no Brasil está próximo de 33 mil (dados de novembro de 2023), número infinitamente menor do que na Romênia dos anos 2000, mas ainda considerado alto pelos organismos internacionais. Num comparativo proporcional, seria como se o Brasil tivesse 2 milhões de acolhidos.
Estimam-se segundo dados da Unicef, que existam mais de 8 milhões de crianças e jovens acolhidos em todo o mundo.
Essa trágica situação da Romênia ganhou destaque internacional e levou à pesquisa chamada oficialmente de “Programa de Intervenção Precoce de Bucareste”, coordenada pelos professores e pesquisadores Charles A. Nelson III, da Escola de Medicina de Harvard e do Hospital de Crianças de Boston; Nathan A. Fox, da Universidade de Maryland; e Charles H. Zeanah, da Universidade de Tulane, em cooperação com o novo governo romeno.
Os resultados dos estudos, medidos inicialmente até os 12 anos de idade, sugerem que a institucionalização precoce leva a déficits profundos em muitos domínios, incluindo comportamentos cognitivos (o QI) e sócio emocionais (apego), atividade e estrutura cerebral e uma incidência muito elevada de transtornos psiquiátricos e deficiências.
Elas vêm sendo avaliadas periodicamente e, em uma segunda fase, foram reexaminadas aos 21 anos, para determinar se a intervenção tem efeitos mais duradouros e se existem outros períodos sensíveis para a recuperação e quais são os mecanismos associados a essa mudança.
A importância do afeto
Segundo os autores da pesquisa, o cuidado infantil vai muito além de apenas trocar fraldas ou alimentar as crianças.
O desenvolvimento cerebral de bebês e crianças pequenas depende do estímulo dos pais ou cuidadores, ou seja, de interação social e afetiva. É através dos estímulos gerados pelo afeto, que a criança amplia seu entendimento de mundo e estabelece padrões de pensamento, raciocínio lógico e linguagem que vão ser presentes em todas as fases de sua vida.
A pesquisa comprova cientificamente o que já nos anos cinqüenta e sessenta John Bowlby afirmava em sua Teoria do Apego. O psiquiatra britânico procurou explicar em seus estudos como ocorre, e quais as implicações para a vida adulta, dos fortes vínculos afetivos entre o bebê e o provedor de segurança e conforto.
Usando vários mecanismos de avaliação, ente eles exames de eletroencefalograma (EEG), que mapeiam a atividade cerebral, a linguagem e a cognição, os estudos descobriram que existem períodos sensíveis que regulam a recuperação. Ou seja, quanto mais cedo uma criança for colocada em cuidado especial, com uma família, melhor será sua recuperação.
Embora os períodos sensíveis para a recuperação variam, os resultados do estudo sugerem que a colocação antes da idade de dois anos é fundamental.
“Aos 30, 40 e 52 meses, o QI médio do grupo institucionalizado apresentou pontuação entre 70 e 75, enquanto as crianças adotadas mostraram cerca de 10 pontos a mais. Não foi surpresa que o QI de cerca de 100 foi o padrão médio para o grupo que nunca ficou nas instituições”, afirma a pesquisa.
Outro dado relevante foi quanto ao período crítico de desenvolvimento. “As crianças encaminhadas ao acolhimento familiar antes do fim do período crítico de dois anos se saíram muito melhor que os que permaneceram em uma instituição quando testadas mais tarde (aos 42 meses), em quociente de desenvolvimento (QD), medida de inteligência equivalente ao QI, e na atividade elétrica cerebral, conforme avaliação por eletroencefalograma (EEG).”*
Os pesquisadores concluíram também que a maioria das crianças institucionalizadas apresentavam comprometimento nos vínculos afetivos. “Apenas 18% das crianças institucionalizadas, 42 meses depois do acolhimento, conseguiram criar vínculos afetivos seguros, enquanto que as crianças que estavam em acolhimento familiar esse número chegou a 68%.
No canal do IGA no Youtube, você pode assistir um vídeo do documentário “O Começo da Vida”, onde o Dr. Charles A. Nelson, pediatra e neurocientista, responsável pelo estudo na Romênia explica com imagens chocantes das crianças como se deu o estudo. Vale muito a pena assistir 🙂
Além do QI, os pesquisadores ainda observaram outras diferenças entre as crianças que viviam com famílias e as que viviam nas instituições, como atrasos no desenvolvimento da linguagem, problemas de relacionamento e até diagnóstico psiquiátrico (63% para os institucionalizados contra 20% dos que nunca foram institucionalizados).
Os índices de depressão e ansiedade também foram o dobro nas crianças de instituições, e o volume cerebral bem menor do que nas que convivem em famílias.”* Enfim, foram feitos inúmeros outros estudos, mas a conclusão é uma só:
Crianças e jovens institucionalizados, privados de afeto, vínculos e estímulos, têm seu desenvolvimento geral comprometido, muitas vezes de forma irreversível.
*dados publicados na revista Scientific American Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário