terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A vida e as suas incógnitas

 

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                      A vida e as suas incógnitas

Relata Zezinho, que na sua cidade havia um  senhor muito bom para todos os seus habitantes.  Não era   oriundo de familias ricas e nem de  linhagem política .    Apesar da baixa escolaridade era  culto , inteligente, prestativo e solidário. Para a população era considerado  um verdadeiro sábio. 

Da universidade da vida, cursara presencial e intestinalmente muitas áreas dos conhecimentos ,  principalmente das   humanas e sociais . Com muito trabalho, seriedade e dedicação conseguiu com o  suor do seu próprio rosto  educar os seus 14 filhos,   a maiora  alisou os bancos da Universidade.

O tempo passou, os filhos cresceram e  ascenderam culturalmente na   escala social,  fruto dos esforços,  ensinamentos e  sagacidade do grande mestre. 

Á proporção que acumulava  conhecimentos, o bom senhor  envelhecia  com saúde, dignidade, cidadania e o respeito de todos os que lhe rodeavam.

Como é peculiar à família nordestina, anos após anos, os familiares procuravam lembrar ao velho   o seu  valor e   importância   para a sua prole, realizavam um encontro no dia do seu anversário .

Dos filhos , um havia voado mais alto e galgado postos estratégicos na carreira pública. O tempo passava  e  de todos os descendentes, este filho nunca estava presente aos eventos, a  agenda nacional consumia o seu precioso  tempo   a discutir as demandas da sociedade .

Muitas  vezes, quando se lembrava, nomeava um preposto: um   irmão, um primo, um amigo  e até mesmo um funcionário  para lhe representar. Jamais negara ajuda financeira, era  sempre influente nas questões decisórias da família, porém à distância. Era um verdadeiro adminstrador, um exímio e admirável  profissional .

Com o passar dos anos, o ancião foi perdendo as forças.  Músculos  atrofiados,  cabelos  ralos e brancos  ,  mente apresentando falhas  e o afastamento do trabalho iam  paulatinamente  enfraquecendo a sua  memória.

Perguntava onde estava,  quem era , o que fazia e de vez enquando regressava ao seu mundo de criança,  pedia para ir à casa dos avós, dos tios que já se foram e dos amigos de infância.

A   tradicional família continuava as suas comemorações, e ano após anos, o filho notável era representado por outra pessoa, até o dia em que foi convocado e até intimado por todos da família a comparecer ao 99º  aniversário do patriarca, não poderia faltar.

Ao chegar,  entrou no quarto do seu genitor, sentou-se  na cabeceira da cama e  bem junto ao velho pai,   falou :

             "Peço a sua  bênção pai,  a bênção pai"

O velho imobilizado e aéreo nada respondeu.  Repetiu mais alto:

                  "A Bênção pai ,  a  bênção "

O  velho abriu os olhos, mexeu com a cabeça  de um lado para o outro, fez esforço para levantá-la, mirou o rosto do nobre senhor  e com a voz trêmula balbuciou:

"Quem é o senhor?  De onde  veio?  Onde mora? Quem é o seu pai? "

O filho parou, pensou, abaixou a cabeça e disse :

"A bênção pai, eu sou  seu filho .  O seu filho do meio, é que faz mais de 20 anos que não vejo o senhor, faz mais de 20 anos que não venho à nossa terra, eu trabalho no Ministério, trabalho no governo, moro na capital do país"

O pai mais uma vez falou:

"Quem é o senhor? De onde o senhor  veio? Onde o senhor  mora?  É filho de quem?  O que faz?"

O filho mais uma vez informa em voz alta e já discrente.

                  "Sou seu filho, seu filho" 

O velho respondeu em voz baixa.

 “Eu lhe abençoo, não sei quem é você, não estou lhe reconhecendo, a minha memória está curta,  se você diz que é meu filho,  é porque é  meu filho,  porém eu não me lembro de você”

Desencantado pelo vasto tempo que havia visto o seu pai , a amnésia paterna e o que presenciara  não conseguiu entender o que se passava.

Mais tarde   soube por intermédio dos irmãos, que o seu pai, num processo fisiológico,  fora perdendo a capacidade de memorizar,  verbalizar e de locomoção,  passando a lembrar dos fatos repetitivos, dos rostos cotidianos,  dos que de mais perto convivera nos últimos dias, primordialmente dos  cuidadores,  do  cachorro e dos  reles utensílios de primeira necessidade: banheiro, penicos , televisão, o abrir e fechar das  portas , o bate-bate das panelas, dos pratos, dos talheres    ,  o ranger das velhas e enferrujadas dobradiças  manipuladas para o arejamento do ambiente e  a entrada do sol.   

Numa onda de culpa  entendeu   que o pai,  devido a sua ausência,  havia apagado da mente quaisquer resquícios ou lembranças de sua existência. Havia apagado de sua mente até mesmo a legitimidade paterna, entendeu que foi a sua ausência , a distância e o descaso para com o velho pai que apagara a sua existência como filho.

Desconfiado, deprimido e solitário partiu para a conquista, para a luta e  para a briga.   Esforçou-se, porém o velho aos poucos foi apagando da mente os dados e imagens cerebrais , aos poucos foi esquecendo , esquecendo, esquecendo... até o dia em que não mais lembrava nem de si, até o dia em que entrou em vegetação.

Com os fatos presenciados,  o filho passou a entender que o seu pai precisava era de abraços, carinho, respeito , de sua presença  e não de ajuda financeira ou   de gestos pecuniários, estes atos  jamais substituirão um simples abraço e o calor que emana de cada corpo.

Foi-se o velho, com ele foi sepultado todas as suas memórias e conhecimentos, restando as boas lembranças e os seus ensinamentos.

Para o filho ficou a certeza que foi 20 anos atrás o último dia em que o seu pai lhe viu, ficou gravado na sua memória que os seus filhos não eram netos do seu pai e mais claro ainda  que o homem é a mente, o homem é a comunicação , o homem é fruto de sua raiz, o homem é o cérebro.

Ficou claro e evidente ,   que o núcleo familiar é o maior elo entre o homem e a vida, que  jamais esqueça a importância dos seus genitores.

 Por mais longe que o homem vá, por mais importante que seja  a sua posição,   as suas raízes deverão continuar  fortes e  firmes, terão que continuar  aderidas  e presentes em toda a sua existência.

 Um dia, cada  cidadão, sentirá o sabor da sua existência. Sentirá   o âmago das suas raízes e dos seus vedadeiros amigos ,  daqueles que incondicionalmente lhe amam. 

"Sejas um bom pai para os  seus filhos , que  um   dia serás um bom  pai para os  seus pais"

 Iderval Reginaldo Tenório

Adendo: 

Cuide dos seus genitores ou daqueles que lhe criaram . A neurociência mostrou e mostra  que depois dos 78 ou 80 anos apenas 20% dos idosos administram a sua vida .

Depois desta idade, a única riqueza e preocupação que o idoso tem é com a sua prole.

Nesta época cibernética, de senhas, numeros e de golpes são os idosos  os principais alvos.

Todo o cuidado é pouco, mesmo porque depois dos 80 o envelhicimento  mental é muito rápido.

Não deixe de visitar os seus genitores. São frágeis em tudo e a velocidade de adoecimento é imensa.

Visite com frequência os seus idosos, notadamente aqueles que têm dificuldades em se comunicar por qualquer problema e estão aposentados , presos nos seus domicilios e sem condições de visitar os filhos por conta própria .

 

   Não seja negligente com os seus pais.

 

Iderval Reginaldo Tenório 

 

24 de Janeiro de 1981

Iderval Reginaldo Tenório

6° Ano de  Medicina da FAMED-UFBA

As quatro estações - Vivaldi - YouTube       

Antonio Lucio Vivaldi (Veneza, 4 de março de 1678 — Viena, 28 de julho de 1741

As quatro estações - Vivaldi.
YouTube · zovideos · 26 de dez. de 2007

 

 

 

Um comentário:

Cláudia Carneiro disse...

Raízes fortes mantendo a flexibilidade na vida sempre