MATÉRIA DE SUMA IMPORTANCIA PARA TODOS OS SERES HUMANAOS.
A CIVILIZAÇÃO EM PAUTA
'A imagem do jovem gay é a que vende', diz ativista pelos direitos dos idosos LGBT
Educador espanhol Federico Armenteros criou o primeiro asilo público para essa população no mundo
Elisa Martins
28/06/2019 - 00:01.
OGLOBO
SÃO PAULO - "Tivemos muitos avanços. Mas também corremos o risco de
voltar ao que vivemos há 40 anos. Há novos grupos ultraconservadores que
querem tirar direitos já conquistados". O alerta vem do
educador espanhol Federico Armenteros, de 60 anos, defensor ferrenho de
direitos para
idosos
LGBT
+, um tema sensível em um assunto já tido como tabu. "Não se fala de velhice
LGBT
porque a imagem do jovem
gay
é a que vende. Isso só aumenta o preconceito e aumenta a vulnerabilidade a doenças, abandono, solidão", lamenta.
Há onze anos, em plena crise na Espanha, Armenteros decidiu criar uma
empresa, que anos depois virou fundação, a 26 de Diciembre, que atende
idosos
LGBT+ com serviços de saúde, alimentação, sociabilidade e residência em
um projeto pioneiro em Madri. A maioria dos beneficiados foi abandonada
pela família e esquecida, ou morava na rua. "Imagine o preconceito já
sofrido pelos
homossexuais
, e dobre, ou triplique, quando se fala em um velho gay", afirma
Armenteros, que diz só ter tido coragem de "sair do armário" aos 36
anos, depois de um casamento, uma filha e muita terapia. A seguir, os
principais trechos da entrevista que o espanhol concedeu ao GLOBO em São
Paulo, onde participou do 3º Seminário Velhices
LGBT
, promovido pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, em parceria com a ONG Eternamente Sou e apoio do SESC.
"Velhice" e "LGBT" são termos que raramente aparecem juntos em uma discussão. Por quê?
A imagem do jovem gay é a que vende. É como no mundo hétero: o jovem
branco, de corpão, consumista. É o modelo competitivo e aceito no mundo
capitalista. É um choque para as pessoas quando digo que sou idoso e
gay. Parece que não combina. Até nas propagandas dirigidas ao público
homossexual, de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, por
exemplo, quem aparece são os jovens. Isso só aumenta o preconceito e
aumenta a vulnerabilidade a doenças, abandono e solidão. Dados recentes
de saúde na Espanha mostram que a transmissão de HIV e outras DSTs
aumentou nesse grupo com mais de 50 anos.
O preconceito aumenta proporcionalmente com a idade?
Claro. Primeiro por uma questão histórica. O que os LGBT+ mais velhos
viveram não tem nada a ver com o que os de hoje vivem. Na minha época,
ser gay era tido diretamente como sinônimo de doença,
delinquência, pecado. As pessoas agora com 80 anos viveram mais de 60
anos em uma homofobia forte. E essa homofobia foi interiorizada. Não se
falava. Até por uma questão de sobrevivência. Naquela época as pessoas
se suicidavam, eram presas ou internadas em hospital psiquiátrico. Nunca
se fez nada por esse coletivo, como se o tempo fosse curar tudo. E
então os preconceitos foram se acumulando. Existe a discriminação dos
próprios contemporâneos, que cresceram dizendo que o outro era a bicha, o
estranho, o doente. As lésbicas ainda somam discriminação por serem
mulheres. Imagine o preconceito já sofrido pelos homossexuais e dobre,
ou triplique, quando se fala de um velho gay.
Como foi "sair do armário" em uma época diferente da de hoje?
Desde pequeno eu sabia que era diferente. Todos se afastavam de
mim. Quando fiz quatro anos, um tio me deu uma boneca. Quando fui pegar o
presente, todo feliz, ele tirou da minha mão e disse: "Sua bicha!".
Nunca me esqueci. Foi a primeira vez que percebi que tinha que esconder
da sociedade como eu me sentia. Quando cresci, minha forma de defesa era
brigar. Quando me ofendiam, às vezes eu batia, em outras apanhava. Na
pré-adolescência, tentei me matar. Não tinha amigos, nem apoio na
família. Meu pai tentou de tudo, me colocou no futebol. Ele era filho de
republicanos, que perderam a guerra. Meu avô foi preso, nunca se falava
nesse tema, eles foram muito machucados pelo franquismo. Meu pai
pensava que eu tinha que ser forte, e ele me via frágil. Minha mãe nunca
foi próxima, não me lembro de um carinho. Fugi de casa, fui parar em um
serviço social, quase virei padre. Mas fui expulso com a justificativa
de que não tinha vocação. Claro! Um dia, me apaixonei por uma mulher e
achei que estava curado. Curado, porque eu achava que era errado, e que
naquele momento tinha virado uma pessoa 'normal'. Ela era uma pessoa
maravilhosa. Me casei, tivemos uma filha. Mas eu sentia que minha vida
era um fingimento. Comecei a fazer terapia até que, aos 36 anos, assumi
para mim mesmo que era gay. Ainda queria esconder do resto do mundo. Meu
maior medo era minha filha. Mas ela percebeu antes de todo mundo, e um
dia me perguntou. Ela via que eu era diferente dos pais dos amigos dela.
Minha hoje ex-mulher nunca me atacou. Elas me entenderam. Isso foi
muito importante. Se tivesse continuado com minha vida hétero,
acabaria em um hospital psiquiátrico. Depois que saí do armário, decidi
que nunca mais iria voltar.
Daí surgiu a ideia de criar o primeiro centro e residência especializado em idosos LGBT+?
Não foi imediato. Mas continuei na terapia e minha psicóloga disse: você
ainda vai ter um papel muito importante para esse coletivo. Em 2008, eu
era diretor de um centro de educação infantil, veio a crise na Espanha e
fomos todos para a rua. Eu já tinha 50 anos. Não ia conseguir mais a
mesma remuneração, e os mais jovens teriam preferência. Como aprendi a
resolver meus problemas, pensei: "Estou velho. Vou envelhecer ainda
mais. E os velhos LGBT, cadê?". Foi aí que decidi usar minha
experiência, trabalho e tempo para o meu coletivo. Nasceu a Fundação 26
de Diciembre. Fui a bancos, pedi doações a pessoas conhecidas,
desconhecidas. Não tinha carro, andava, pegava metrô. A repercussão foi
grande. Não havia nada igual no mundo. A maioria dos idosos LGBT+ não
tem dinheiro, aposentadoria, vive à margem da sociedade. Muitos me
diziam que tinham medo de morrer porque os vizinhos só
descobririam quando sentissem o cheiro. Ninguém liga, era preciso fazer
algo. Hoje atendemos 220 pessoas diariamente, no centro de convivência e
residência ou em suas próprias casas. Elas têm serviços de saúde,
alimentação, sociabilidade. São 14 funcionários. Temos
também apartamentos compartilhados, com mais de vinte pessoas. Até o
final do ano, vamos abrir um asilo propriamente, nos arredores de Madri.
Isso vai ajudar a mostrar que existimos, precisamos de
visibilidade. Será público, pelo convênio que temos com o governo local.
Terá o nome de Josete Massa, o primeiro homem que conseguimos ajudar.
Era um senhor que vivia isolado há anos. Ele tinha câncer de próstata,
estava morrendo sozinho. E deixou que o ajudássemos. O que mais faltava
era alguém do lado dele. É um símbolo de muitos casos.
Como vê a questão de patrimônio no caso de um casal idoso LGBT+?
Não é raro que, quando um companheiro morre, a família que nunca deu
atenção apareça.
Recomendamos que as pessoas deixem tudo registrado. Hoje também há leis
de união estável que ajudam a que o outro não fique desamparado. Muitas
famílias nem sabem que o parente se casou, e esse é um instrumento de
proteção. Também é importante registrar em cartório como querem ser
cuidados na velhice. Quem vai ser o tutor, como esperam que os
tratamentos de saúde sejam conduzidos. Aí, quando chegar a hora em que
já não poderão responder, por velhice ou doença, ou que não tenham apoio
de família ou amigos, a vontade será respeitada.
Os obstáculos mudaram com o passar dos anos? Que futuro imagina para a causa LGBT+?
Há questões problemáticas. Como tenho as lembranças do passado, vejo que
o que aconteceu há mais de 40 anos está voltando. Surgiram novos grupos
ultraconservadores que querem tirar direitos já conquistados. Na
Espanha, por exemplo, voltaram os ataques a homossexuais, imigrantes,
mulheres. E também falta trabalhar melhor a relação entre as gerações,
para que os homossexuais de hoje não comprem a ideia do individualismo,
porque isso não vai nos levar a nada. Claro que houve avanços também. Se
hoje me agredirem, posso denunciar, e serei ouvido. Há leis que antes
não existiam. Mas regredir em temas de igualdade e respeito é
inaceitável. A diferença é que há cada vez mais pessoas decididas a não
dar nem um passo para trás.
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