Um novo olhar - Por Sávia Maria Ferraz Vieira da Cunha
Um novo olhar
Em minha pequena cidade pairava no ar um forte cheiro de tabaco. Especialmente na época das visitas dos romeiros. Por todas as estreitas ruas e vielas, aglomeravam-se caminhões carregados de pessoas simples, com sandálias de couro, roupas pretas imitando batinas, rostos curtidos pelo sol, andando e falando alto, sempre em grupos, de modo que tínhamos que andar pelos calçamentos tal o aglomerado de gente com sotaques variados. Era uma festa ter tanta gente em volta e ao mesmo tempo provocava no íntimo um certo desconforto. Parecia que o calor forte tornava-se mais intenso assim como o forte cheiro de fumo. Andavam sempre em grupos e durante todas as horas. De dia e de noite. Pareciam nunca dormir. Quando sossegavam, armavam suas redes e iam para as calçadas, acocorados, tentando livrar-se do calor, consumidos por uma ansiedade em sentir o clima e o odor da cidade santa. Ficavam em ranchos improvisados, sem nenhuma comodidade para os corpos já cansados das longas horas de viagem. Nem reclamavam!
Alguns já vinham pagar promessas feitas e alcançadas. Dirigiam-se ao túmulo do Padre Cícero onde até choravam comovidos e emocionados! Caminhavam com o sol a pino no passeio das almas com a expressão de quem estava prestes a subir aos céus!
Nas expressões sofridas de gente simples, havia sempre um agradecimento muito formal na maneira de se portar diante de um simples copo com água concedido, ou de uma informação. Pareciam realmente acreditar que se encontravam na Cidade Santa. Talvez em sua ingenuidade coletiva acreditassem que nós éramos privilegiados por estarmos ali. Percorriam com ansiedade o velho caminho do horto onde julgavam, com o sacrifício da longa e íngreme caminhada, expiar as suas culpas!
E nós, simples e complicados adolescentes, observávamos aqueles estranhos seres como se fossem de outro planeta. Chegávamos a rir das suas roupas, do jeito estranho de se comportarem. Nós nada entendíamos sobre a fé, a esperança e a caridade.
Ao final da romaria, nos reuníamos na calçada para contarmos o número de caminhões que saíam da cidade. Eles passavam agitando as mãos num sinal de despedida e correspondíamos aos seus acenos achando tudo muito engraçado. Nem nos passava pela cabeça que quando respondíamos aos seus acenos, eles se sentiam felizes a acolhidos pela cidade. Uma cidade na qual faltava água e talvez fosse esse o motivo do forte cheiro que impregnava o ar.
Nem suspeitávamos do grandioso sacrifício que eles faziam para chegar até ali. Para nós, o máximo do sacrifício era acordar cedo e ir à escola.
Em sua fé serena e simples encontravam o consolo para as secas, o salário miserável, seus problemas de saúde e a ausência do olhar do poder público. Afinal eles eram um público diferenciado. Não representavam votos.
Hoje, permanece ainda em minha cidade o forte cheiro de tabaco com o mesmo velho e implacável sol. As ruas ainda não se alargaram, as pessoas continuam se apertando para passar. Ainda falta água. Os esgotos escorrem a beira das estreitas calçadas.
Mudou apenas a nossa cabeça. Olhamos diferente e com carinho para as faces enrugadas pelo sol. Sentimos um respeito silencioso por todos os que vêm, com uma fé inabalável e a esperança de novos milagres.
Em mim, o grande milagre foi ter aprendido a amar essas pessoas tão diferentes, e ter a vontade de acolhê-las e de confortá-las fazendo-as enfim acreditar que os milagres verdadeiramente acontecem sim, em Juazeiro do Norte pois essa é a Cidade Santa que eles vieram buscar e a santidade está pura e simplesmente em nosso novo olhar...
Sávia Maria Ferraz Vieira da Cunha. Assistente social-gerontóloga.
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