sábado, 9 de agosto de 2025

ZEZINHO E O AMANHECER NA SERRA DO ARARIPE

                      


                 




                  ZEZINHO  E  O AMANHECER  NA SERRA DO ARARIPE 


 galo Chulipa, antes do sol nascer, cantava   para informar   que era o  senhor do terreiro, na outra extremidade, o jumento Jericó zurrava  para mostrar que aquele era o seu reduto. 


A brisa fria batia  nas gramíneas, nas babujas  e nos arbustos, enquanto    o orvalho da noite  precipitava-se sobre as folhagens da caatinga, a  propiciar a  seiva da vida, molhar o rosto  e as vestes    do  serrano ao dirigir-se ao curral, em busca do néctar branco,   o abençoado e raro leite, oriundo do ubre  das vacas de baixa produção leiteira.  Bovinos de pequenos portes, resistentes à seca e  ao calor, sem pedigree e de baixo valor venal, porém de valor nutricional, emocional e de extrema cumplicidade, fêmea do gado chamado Pé Duro, canelas finas e  orelhas pequenas, uma das riquezas do homem sertanejo. 

Do bovino nada se perde, do esterco à urina, perpassando pelo cheiro,  berro,  couro, leite, ossos, cascos, chifres,  carne, sebo e a gordura. Do boi tudo se aproveita.   


Ao ser encontrado morto por uma picada da serpente crotálica, a  cascavel, a mais temida cobra da caatinga, cujo veneno inibe os movimentos musculares, causando paralisias em várias partes do corpo. Deste animal aproveita-se tudo, inclusive a carne e a gordura para se fazer sabão.  Quando não encontrado, serve de  alimentos para os urubus e os animais carniceiros dos sertões.  É um animal abençoado, é um promotor de felicidades e de autoestima para os seres humanos, notadamente para os sofridos caatingueiros. 

Os cheiros contagiantes da terra, raízes e folhas,  os sons dos galhos balançantes das árvores, os cantos dos pássaros e dos galos, os falares dos  animais e   o zoar  de dezenas de chocalhos,      os viventes do arraial despertavam cheios de energia.

O vaqueiro,  com a sua corda de caroá(croá) e  balde a tiracolo,   adentrava ao curral  coalhado de esterco e urina bovina e  ocupado por meia   dúzia de bezerros,  enquanto as  suas mães, as vacas pé duro, para mitigar o stress dos filhotes, pastavam  e bebiam soltas  ao redor do curral. Ao amanhecer, todas corriam para a porteira à espera de alimentar as suas crias e amenizar a solidão da noite.

Orgulhosamente e cheio de brios, o serrano iniciava o seu mister. Compassadamente  abria a porteira, diligentemente chamava   as vacas, uma por uma,  uma após a outra e apresentava à sua cria. 

Cada animal tem um nome:  Vaca Mimosa,  Estrela, Formosa, Mansinha, Branquinha  e Vaca  Cuidadosa, todas  atendem pelo nome. O bezerro ia até as  edemaciadas tetas da genitora e ali iniciava-se a liberação do leite produzido durante a noite, parte para o homem e parte para  a sua cria.

Enquanto mais o bezerro mamava, mais a mãe o lambia e liberava o néctar da vida, mais um mistério sublime  da natureza, que os homens insistem em  chamar de intuitivo e de irracional, não é amor, é instinto, um impulso inato, inconsciente  e sem reflexão, isto é o que diz o homem.

A cabeça do bezerro junto ao ubre,  peias nas pernas traseiras da vaca e as   mãos grossas do  sitiante a amaciar o túrgido alforje natural  repleto de leite, inicia-se a colheita do enche bucho do sertanejo.   

A cuidadosa e desconfiada mãe liberava o proteico líquido, ciente que alimentava o seu filho já afastado pelo cuidadoso serrano, porém mantido na mesma posição, como se estivesse a mamar. Três entes sertanejos  em busca de perpetuar as suas espécies: O homem, a vaca e o bezerro. 

Nos sertões só com a cumplicidade das espécies consegue-se viver. É o homem, o gado, os animais  de cargas e de passeios, as abelhas, as formigas, os pássaros e  outros polinizadores que  juntos ás aves de rapina, os roedores, as serpentes,  a flora, os astros e os fenômenos naturais, em consonâncias,  conseguem viver  em  confraternização, sem estes fenômenos a vida seria incompleta.

Enquanto a vaca  mugia,   mungia o vaqueiro, e entre um mugido e outro, o vaqueiro ia mungindo, ia mungindo até o momento em que o bezerro faminto berrava, era um  alerta, era um pedido de socorro. Informava à mãe   que o  leite não estava lhe sendo entregue, estava sendo desviado para outro mamador, iria  alimentar outras bocas, a sua genitora estava sendo enganada.  De imediato a vaca segurava o néctar  da vida,  só liberava para a boca faminta de sua cria, que com muita sede   ordenhava as  tetas com a sua áspera língua, beiços grossos e duas ou três marradas  no  ubre pseudo vazio.

Num aforismo nordestino que diz, "Bezerro que não berra não mama", daquele momento em diante  só o bezerro poderia mamar. Terminada esta ordenha, partia o vaqueiro para outra  vaca, que mugia à procura do seu rebento.  Enquanto a vaca mugia, o vaqueiro mungia, mungia de uma a uma, de teta em teta, era assim o amanhecer na querida Serra do Araripe. 

O vaqueiro mungindo e a vaca  a mugir, o galo  cantava, o Jumento Zurrava, as vacas mugiam, os bezerros berravam, os pássaros cantavam, os chocalhos zoavam e o vaqueiro mungia.

O sol nascia, abriam-se as porteiras, os animais corriam, enchiam os pastos e o tilintar dos chocalhos preenchiam sonoramente os espaços que    cheiravam  a jasmim, cedros, cidreiras, capins, estercos e urinas, estas de um amarelo   espumante e  cobertas por borboletas de todas as cores em busca de nutrientes orgânicos e minerais.  

Mesa posta, aroma de café em toda a casa, queijos  artesanais, prato  fundo com leite fresco, espumante e pelando de quente. Farinha de milho ou de mandioca, sal, carne do sol, tigelas de coalhadas, prato de macaxeira cozida, bule vermelho  esmaltado  cheio de   café,  torrado e pilado em casa,  tapioca untada com manteiga de garrafa, ovos estrelados na banha de porco e que na maioria das vezes  a gordura caia  pelos cantos da boca e que de vez em quando a mãe falava: "Limpa a bôca menino".

Era assim o amanhecer na  querida Serra do Araripe, berço  do menino Zezinho. E haja saudades.

 

              Salvador, 09 de agosto de 2025

Iderval Reginaldo Tenório

... Lá no meu pé de serra Deixei ficar meu coração Ai, que saudades tenho Eu vou voltar pro meu sertão". No Meu Pé de Serra (Luiz Gonzaga e ...

LUIZ GONZAGA E HUMBERTO TEIXEIRA.

 No meu pé de serra” é um forró que consagra a primeira parceria de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.  A música faz referência à saudade da vida no sertão. É escancaradamente nostálgica, numa alusão  ao coração deixado lá no “pé de serra”. Parece que o forró clássico, tradicional, à moda de Luiz Gonzaga, tem algo de nostálgico, inocente, tem-se a impressão que a canção de amor em ritmo de xote é mais singela, a saudade do baião é mais intensa, a alegria do xaxado é mais pura.


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