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ZEZINHO E O AMANHECER NA SERRA DO ARARIPE,
A SUA TERRA NATAL.
O galo Chulipa, antes do sol nascer, cantava para informar que era o senhor do terreiro. Na outra extremidade, para mostrar que aquele era o seu reduto, zurrava o jumento Jericó.
Pela manhã, antes do sol nascer, a brisa fria batia nas gramíneas, nas babujas e nos arbustos, enquanto o orvalho da noite precipitava-se sobre as folhagens da caatinga, lhe proporcionando a seiva da vida, e ao mesmo tempo, molhava o rosto e as vestes do homem serrano ao dirigir-se aos currais em busca do nécta branco, o disputado e raro leite, oriundo do ubre de vacas de baixa produção leiteira. Animais sem pedigree e de baixo valor venal, porém de valor nutricional, emocinal e de extrema cumplicidade, conhecida como a fêmea do gado chamado Pé Duro, uma das riquezas do homem sertanejo.
Do bovino nada se perde, do esterco à urina, perpassando pelo cheiro, berro, couro, leite, ossos, cascos, chifres, carne, sebo e a gordura, do boi tudo se aproveita. Ao ser morto, por uma picada da serpente crotálica, a cascavel, a mais temida cobra da caatinga, que inibe os movimentos musculares, causando paralisias em várias partes do corpo, aproveita-se tudo, inclusive a carne e a gordura para se fazer sabão. Quando não encontrado pelos serranos, serve de alimentos para os urubus e os animais carniceiros dos sertões. É um animal abençoado, é um promotor de felicidades e de autoestima para os seres humanos, notadamente para os sofridos caatigueiros.
Com o cheiro contagiante vindo da terra, raízes e folhas orvalhadas, com os sons dos galhos balaçantes das árvores, os cantos dos pássaros e dos galos, os falares dos animais e o zoar de dezenas de chocalhos, os viventes do arraial despertavam cheios de energia.
O vaqueiro, com a sua corda de croá e balde a tiracolo, adentrava ao curral, coalhado de esterco e de urina bovina e ocupado por meia duzia de bezerros, enquanto as suas mães, vacas pé duro, pastavam e bebiam soltas ao redor do curral, para pela manhã alimentar as suas crias, a quebrar o jejum de uma noite solitária.
Orgulhosamente e cheio de brio, o serrano iniciava o seu mister. Compassadamente abria a porteira, diligentemente chamava as vacas, uma por uma, uma após a outra e apresentava à sua cria. Cada animal tem um nome: Abria vaca Mimosa, vaca Estrela ou vaca Mansinha, e atendem pelo nome. O bezerro ia até as edemaciadas tetas da genitora e ali iniciava-se a liberação do leite produzido durante a noite, parte para o homem e parte para a sua cria. Enquanto mais o bezerro mamava, mais a mãe o lambia e liberava o necta da vida, mais um mistério sublime da natureza, que os homens insitem em chamar de intuitivo e de irracional, não é amor, é instinto, um impulso inato, inconsciente e sem reflexão.
A cabeça do bezerro junto ao ubre, peias nas pernas traseiras da vaca e as mãos grossas do sitiante a amaciar o túrgido alforje natural repleto de leite, inicia-se a colheita do enche bucho do sertanejo. A cuidadosa e desconfiada mãe liberava o proteico líquido ciente que alimentava o seu filho, já afastado, pelo cuidadoso serrano, porém mantido na mesma posição, como se estivesse a mamar. Três entes sertanejos em busca de perpetuar as suas espécies: O homem, a vaca e a sua cria.
Nos sertões só com a cumplicidade das espécies consegue-se viver. É o homem, o gado, os animais de carga, as abelhas e outros polinizadores, que juntos aos pássaros, ás aves de rapina, os roedores, as serpentes, a flora, os astros e os fenômenos naturais em consonância, consguem viver em confraternização, sem estes fenômenos a vida seria incompleta.
Enquanto a vaca mugia, mungia o vaqueiro, e entre um mugido e outro, o vaqueiro ia mungindo, ia mungindo até o momento em que o bezerro faminto berrava, era um alerta, era um pedido de socorro. Informava à mãe que o leite não estava lhe sendo entregue, estava sendo desviado para outro mamador, iria alimentar outras bocas, a sua genitora estava sendo enganada. De imediato a vaca segurava o nécta da vida, só liberava para a boca faminta de sua cria, que com muita sede ordenhava as tetas com a sua áspera língua, beiços grossos e duas ou três marradas no ubre pseudovazio.
Num aforismo nordestino que diz, bezerro que não berra não mama, daquele momento em diante só o bezerro poderia mamar. Terminada esta ordenha, partia o vaqueiro para outra vaca, que mugia à procura do seu rebento. Enquanto a vaca mugia, o vaqueiro mungia, mungia de uma a uma, de teta em teta, era assim o amanhecer na querida Serra do Araripe. O vaqueiro mungindo e a vaca a mugir, o galo cantava, o Jumento Zurrava, as vacas mugiam, os bezerros berravam, os pássaros cantavam, os chocalhos zoavam e o vaqueiro mungia.
O sol nascia, abriam-se as porteiras, os animais corriam, enchiam os pastos e o tilintar dos chocalhos preenchiam sonoramente os espaços que cheiravam a jasmim, cedros, cidreiras, capins, estercos e urinas, estas de um amarelo espumante e cobertas por borboletas de todas as cores em busca de nutrientes orgânicos e minerais.
Mesa posta, aroma de café em toda a casa, queijos artesanais, prato fundo com leite fresco, espumante e pelando de quente. Farinha de milho ou de mandioca, sal, carne do sol, tigelas de coalhadas, prato de macaxeira cozida, bule vermelho esmaltado cheio de café, torrado e pilado em casa, tapioca untada com manteiga de garrafa, ovos estrelados na banha de porco e que na maioria das vezes a gordura caia pelos cantos da boca.
Era assim o amanhecer na querida Serra do Araripe, berço do menino Zezinho. E haja saudades.
Iderval Reginaldo Tenório
ADENDO DO AUTOR IDERVAL REGINALDO TENÓRIO
O jumento é um animal de origem desértica, porém existe em todos os continentes. Possui uma grande cabeça, olhos laterais, duas longas e sensíveis orelhas, uma boca larga, queixadas fortes, dentes resistentes e afiados. As orelhas, como dois radares captam numa varredura de 360º, ora para cima, para baixo, para frente e para trás quaisquer tipos de sons. Nada escapa de suas duas potentes e sensíveis antenas de abas largas.
É inteligente, cheio de manias, mistérios e superstições. Não tolera esporas, é vingativo e morde as pernas do condutor quando maltratado. Enxerga e percebe, no seu trajeto, os perigos que o homem não vê e não sente. Quando empacam é um alerta aos demais, inclusive ao homem, prova maior está na passagem bíblica entre o rei Balaque, o profeta Balaão e a sua jumenta a caminho de Moabe, capitulo 22 ao 24 do Velho Testamento.
O jumento é um animal protetor para os menores de sua raça e para outras espécies que com ele convive, é um ser de grande adaptação e é territorial. Come de tudo, de camisas a sacos de algodão, palhas, capins e até solas de sapatos encontradas nos monturos. Precisa de pouca água, passa dias sem beber e é resistente às intempéries da natureza. Chova ou faça sol, lá está o asno a sobreviver, é um animal xerófilo. Vive uma média de 45 anos, diferente do cavalo, que vive de 25 a 35 anos e é mais exigente e seletivo no comer. Ao cruzar com uma égua gerará uma belo burro, um muar, um animal híbrido e de carga, o mesmo acontece quando um cavalo cruza com uma bela asinina. O muar herda a força, a coragem e a perspicácia do asinino; herda o equilíbrio, a beleza, o garbo, a elegância, a altura e a cumplicidade do equino com o seres humanos.
Num
raio de quatro quilômetros, é o jumento quem manda na caatinga, é um
verdadeiro medidor dos tempos e das horas. É testosterônico em demasia e
se enfeitiçado pelo hormônio feminino, é um perigo. Derruba cerca e
cargas, invade plantações, sabe usar os dentes com fortíssimas mordidas
e as pernas traseiras com certeiros coices. Não é discreto, age, reage e
atua independente dos espectadores. Como um elefante impregnado com o
hormônio sexual, a testosterona, o jumento vira um demolidor.
Foi ele quem ajudou o menino Jesus a escapar, em Belém, das garras do Rei Herodes quando este autorizou o maior infanticídio da face da terra, o Massacre dos Inocentes. (Mateus 2:16–18)
Um comentário:
Dr Tenório, fui o menino Zezinho há uns 65 anos.Nasci na roça e presenciei tudo o que ocorria no Curral.So que em minha região, Remanso, quem ficava gora do Curral à noite eram os bezerros e na hora da ordenha o bezerro era peiado nas patas dianteiras das vacas. O termo croá,falávamos caroá.
No inverno, na época do umbu, tomávamos umbuzada com leite cru.Era uma delícia.
Agora só lembranças e saudades.
Abraço
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