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Artigo: Cérebros de crianças sob privação extrema podem sofrer danos permanentes
Estudo de pesquisadores europeus mostrou que o volume do cérebro de
órfãos maltratados era menor do que o daqueles que foram adotados e não
passaram por sofrimentos
Roberto Lent*
16/01/2020 - 06:00
O GLOBO
* Professor Emérito da UFRJ e Pesquisador do Instituto D’Or
* Professor Emérito da UFRJ e Pesquisador do Instituto D’Or
Todos os dias nos extasiamos com as maravilhas criadas pela
humanidade: obras de arte, conquistas da ciência, políticas públicas
afirmativas, ações de solidariedade. Mas todos os dias também nos
horrorizamos com atos de sinal contrário: guerras, assassinatos, ações
discriminatórias, abusos e torturas.
Nesse segundo grupo, faltam adjetivos para qualificar o mal que nossa
espécie consegue causar a suas crianças, e as consequências que isso
pode trazer depois que se tornam adultas. Crianças privadas de atenção
parental, abandonadas ou criadas em condições de miséria, abuso e
violência, não são incomuns no noticiário em praticamente todos os
países do mundo, até mesmo aqueles considerados mais “civilizados”.
É importante conhecer o impacto desses tratamentos desumanos no cérebro delas quando se tornam adultas, a repercussão mental e emocional, e as possibilidades de reversão das consequências. Haverá danos permanentes no cérebro e funções mentais das crianças maltratadas, ou será possível corrigir a nossa própria insanidade incivilizatória?
Um trabalho de um consórcio europeu de pesquisadores foi publicado há poucos dias, abordando o caso das crianças maltratadas em orfanatos da Romênia durante o regime de Nicolae Ceausescu, nos anos 1960-1980. Para ter mais gente no mercado de trabalho, o aborto foi proibido, e todos os casais obrigados a ter filhos, sob pena de punição. A política não deu certo, e muitas dessas crianças acabaram em orfanatos sob condições horrorizantes: longe dos pais, viviam em berços superlotados dormindo sobre fezes e urina, maltratadas e abusadas. O regime caiu em 1989, e algumas crianças – já mais velhas – foram adotadas por famílias de outros países, capazes de prover o que elas nunca tiveram.
Os pesquisadores avaliaram por neuroimagem se a morfologia do cérebro dos órfãos adotados guardava consequências do período de privação, e se a incidência de transtornos mentais era maior. Respostas positivas a essas perguntas significariam que a neuroplasticidade não fora capaz de reverter os resultados dos maus tratos. E foi isso mesmo. O volume do cérebro era menor nos órfãos maltratados, em comparação com crianças adotadas por outras famílias sem ter passado pela provação dos romenos. E diversas áreas cerebrais haviam sofrido alterações na sua estrutura, para mais ou para menos. A incidência de alguns transtornos psiquiátricos era também maior.
Um sopro de esperança veio com o trabalho de Pamela Mello Carpes e sua equipe na Universidade Federal do Pampa, Rio Grande do Sul, também divulgado há poucos dias. O grupo brasileiro utilizou um modelo animal de privação materna, abordando as suas consequências na capacidade cognitiva de ratinhos em condições experimentais: 3 horas por dia longe das mães durante os primeiros 10 dias após o nascimento. Aos 2-3 meses de idade, os animais revelavam perdas na memória de curto e longo prazo. Para tentar reverter esses danos, alguns eram colocados em gaiolas cheias de “brinquedos” coloridos, móveis e sonoros. Com o ambiente enriquecido, foi possível reverter os danos da privação materna precoce. Nessas condições, não tão drásticas como no caso das crianças romenas, a neuroplasticidade revelou-se compensatória.
A neurociência continua interessada em elucidar esses efeitos de privação extrema na infância, mas não compete a ela resolver o problema: o caminho é lutar no âmbito da política para que essas aberrações da humanidade não continuem a ser praticadas em todo o mundo.
É importante conhecer o impacto desses tratamentos desumanos no cérebro delas quando se tornam adultas, a repercussão mental e emocional, e as possibilidades de reversão das consequências. Haverá danos permanentes no cérebro e funções mentais das crianças maltratadas, ou será possível corrigir a nossa própria insanidade incivilizatória?
Um trabalho de um consórcio europeu de pesquisadores foi publicado há poucos dias, abordando o caso das crianças maltratadas em orfanatos da Romênia durante o regime de Nicolae Ceausescu, nos anos 1960-1980. Para ter mais gente no mercado de trabalho, o aborto foi proibido, e todos os casais obrigados a ter filhos, sob pena de punição. A política não deu certo, e muitas dessas crianças acabaram em orfanatos sob condições horrorizantes: longe dos pais, viviam em berços superlotados dormindo sobre fezes e urina, maltratadas e abusadas. O regime caiu em 1989, e algumas crianças – já mais velhas – foram adotadas por famílias de outros países, capazes de prover o que elas nunca tiveram.
Os pesquisadores avaliaram por neuroimagem se a morfologia do cérebro dos órfãos adotados guardava consequências do período de privação, e se a incidência de transtornos mentais era maior. Respostas positivas a essas perguntas significariam que a neuroplasticidade não fora capaz de reverter os resultados dos maus tratos. E foi isso mesmo. O volume do cérebro era menor nos órfãos maltratados, em comparação com crianças adotadas por outras famílias sem ter passado pela provação dos romenos. E diversas áreas cerebrais haviam sofrido alterações na sua estrutura, para mais ou para menos. A incidência de alguns transtornos psiquiátricos era também maior.
Um sopro de esperança veio com o trabalho de Pamela Mello Carpes e sua equipe na Universidade Federal do Pampa, Rio Grande do Sul, também divulgado há poucos dias. O grupo brasileiro utilizou um modelo animal de privação materna, abordando as suas consequências na capacidade cognitiva de ratinhos em condições experimentais: 3 horas por dia longe das mães durante os primeiros 10 dias após o nascimento. Aos 2-3 meses de idade, os animais revelavam perdas na memória de curto e longo prazo. Para tentar reverter esses danos, alguns eram colocados em gaiolas cheias de “brinquedos” coloridos, móveis e sonoros. Com o ambiente enriquecido, foi possível reverter os danos da privação materna precoce. Nessas condições, não tão drásticas como no caso das crianças romenas, a neuroplasticidade revelou-se compensatória.
A neurociência continua interessada em elucidar esses efeitos de privação extrema na infância, mas não compete a ela resolver o problema: o caminho é lutar no âmbito da política para que essas aberrações da humanidade não continuem a ser praticadas em todo o mundo.
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