CENA DE
UMA EMERGÊNCIA
Nos dias atuais, no Brasil, grandes são os desentendimentos nas
emergências públicas e privadas.
Numa grande Emergência, em Salvador, formou-se uma aglomeração em
torno de uma senhora, octogenária, exposta numa fria, suja e nua maca. Duas mulheres, suas filhas, a
esbravejar . Braços rijos, dedo em riste e voz alta a escrachar o abnegado
servidor.
Junto a cabeceira da maca, de jaleco branco,
surrado, suado e amarrotado um jovem esculápio. Olhos
arregalados , tez engordurada, semblante de medo e sinais de
cansaço. Àquela altura confundia até o seu próprio nome, era fim de plantão.
Não saia uma atitude de sua lavra, não possuía palavras, gestos e nem
argumentos que resgatasse a paz no seu trabalho, estava engessado,
congelado , estupefato. O tão necessário raciocínio fora embotado pela dantesca cena .
Como um providencial invasor, um médico
interveio na dramática cena . Posicionou-se entre os quatro e a plateia, constituída de paramédicos, pacientes, acompanhantes e
curiosos. Foi até a surrada maca, expôs os
cabelos brancos e a limpar os óculos ficou frente a frente à frágil
anciã. Sem luvas alisou o rosto, os cabelos , o abdome , segurou e
apertou as mãos da enferma, mirou a sua face , cravou os olhos nos olhos da paciente e entrou vagarosamente
na sua alma .
Pausadamente e com a voz macia perguntou o
seu nome, onde morava, o que fazia, a idade , a profissão, perguntou pela
família , o que estava sentindo , relembrou o seu passado de lutas e de glórias.
Levantou a cabeça, olhou
para as duas acompanhates , colocou um dos braços no ombro do jovem esculápio , o outro no ombro de uma das filhas fechando o círculo da
compreensão. Mirou uma das janelas que mostrava o
infinito azul do céu, poucas nuvens, uma bela
estrela e a borda da lua . Sem pensar, guiado por uma
força maior, vindo não se sabe de onde, lembrou a todos que
Deus existe e ali estava presente .
O ambiente conspirava pela presença do Criador, não
existia outras possibilidades, naquele momento não havia outras
explicações. Ali encontrava-se uma anciã, quase santa, que na vida praticara o bem: grande mãe, exímia avó, magistral esposa e eterna sofredora
por não conseguir consertar as mazelas do mundo, uma octogenária quase pura . Estava em sofrimento, debilitada, vigio e atenta apesar da situação na qual se encontrava.
Achava-se uma estranha naquele nosocômio , naquela emergência de
propriedade sua, pois era uma unidade publica, ali encontrava-se o suor de todos os
habitantes , de toda a comunidade e do estado
, ali era uma das suas propriedades, ali
era um bem comum, era de todos, era o seu suor que movimentava o hospital .
Tratava-se de um ser humano fragilizado,
subserviente, sem força e sem ação assistida por um dos seguidores de Deus
, o médico, que só pensa no bem, que faz tudo pelo bem e é guiado pelo
bem . Ao lado suas filhas, duas guerreiras que lutavam
desbravada e consanguineamente ao seu favor, enxergavam
naquela relíquia humana o que existia de mais precioso, valioso e sublime
nas suas vidas, uma dádiva de Deus, a sua querida e insubstituível
mãe. Queriam a sua recuperação e exigiam os seus direitos.
O momento era a prova concreta da presença do
grande Mestre, ali estavam todos de mãos dadas para a recuperação daquela
heroína. O velho esculápio, após apaziguar os ânimos , parou o
discurso, quase uma homilia , saiu de cena e deixou
mansamente o ambiente .
O jovem prosseguiu o seu atendimento. Ele,
as filhas, a enferma, quase santa, os olhares , a desnuda e fria maca,
a velha janela, as nuvens , a grande estrela, a nesga da lua , todos sob a tutela do Criador.
O silêncio reinou no recinto e as filhas aproximaram-se ao jovem médico . O diálogo sadio colocou nos eixos o tumultuado
momento, todos entenderam os esforços do guerreiro e sofrido
médico.
O velho Esculápio deu continuidade à sua
rotina nesta grande casa de saúde.
Como médico, quase que calejado, ficou feliz com o
desenrolar daquele momento sublime que estava transformando-se num funesto
imbróglio, ainda bem que Deus existe.
Viva a paz, o respeito, a ética, a
benevolência, a beneficência, a autonomia e a cidadania.
É assim que se
constrói um grande povo e uma boa medicina. Viva a natureza , a mãe da humanidade; o diálogo e a abnegação
de muitos seres humanos .
Doutor, muito obrigado.
18 DE MARÇO DE 2022
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