Diante de tantos casos de Pedofilia no mundo e aqui na Bahia, encotrei na midia este artigo da Dra Regina Alves Andrade e achei pertinente divulgar para os leitores, notadamente profissionais afins como médicos, psicologos, educadores, pais e qualquer cidadão que quera saber com mais profundidade o assunto.
É um assunto polêmico e que com o aprofundamento dos estudos terá melhor compreensão.
Resumo: A pedofilia,
apesar existir há muitas décadas, só constituiu um objeto de estudo
relevante no campo das ciências jurídicas e psiquiátricas no século XX.
Essa atenção se justifica pelos recorrentes práticas de violência sexual
contra crianças, as quais são consideradas reprovativas e abomináveis.
Diante dessa conjectura, o presente artigo objetiva analisar a pedofilia
sob uma abordagem ampla e interdisciplinar perpassando a ótica da
Psiquiatria e, especialmente, do Direito Penal. De início, examina-se a
pedofilia enquanto patologia, destacando as características que
constituem o perfil pedofílico, as suas causas e implicações na
sociedade. Por outro lado, busca-se averiguar a pedofilia enquanto crime
no ordenamento jurídico brasileiro, ressaltando a ausência de
tipificação do termo e o seu processo de criminalização. Por fim,
chegando ao ponto chave desse estudo, é colocada em debate a seguinte
pergunta: “A pedofilia é uma doença ou crime?”, uma vez que é nesse
questionamento que irá se dirimir sua inimputabilidade ou não para fins
penais.
Palavras-chaves: Pedófilo. Culpabilidade. Direito Penal. Psiquiatria.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo geral
discutir a pedofilia sob a luz do Direito Penal, explorando se há ou não
culpabilidade do pedófilo bem como o seu enquadramento nos tipos
penais. Nesse sentido, torna-se essencial investigar a genealogia dos
saberes que permitiram a emergência da criminalização da pedofilia. Como
abordagem interdisciplinar, serão confrontados os saberes jurídicos e
psiquiátricos acerca da pedofilia, explorando a linha tênue existente
entre doença e crime.
Como a maioria das questões sociais, o
abuso sexual contra crianças não é um fenômeno novo. Somente a partir do
final do século passado e início do século XXI é que ele vem sendo
intensivamente abordado nos diversos setores tais como a mídia e
judiciário, tendo em vista a sua prática recorrente. Essa violência
sexual se desdobra em várias nuances que compõe uma realidade bastante
problemática no âmago social, sendo uma delas a pedofilia, a qual é
considerada uma das práticas mais reprovativas e abomináveis. No
entanto, à priori, torna-se imprescindível destacar a semântica do seu
conceito uma vez que contribuirá para o melhor entendimento de tal
fenômeno.
Originalmente, o temo pedofilia vem do grego antigo paidophilos, que se refere tanto aos pais como à criança, e de phileo,
que significa amar. Ou seja, é definida como o amor de um adulto pelas
crianças. Na classificação psiquiátrica, a pedofilia consiste em um
transtorno psiquiátrico agrupado no universo das parafilias que são
comportamentos ou fantasias sexuais recorrentes e intensos envolvendo
objetos, atividades ou situações incomuns, e responsáveis por um
sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento
social ou ocupacional do indivíduo (OMS, 1993).
Todavia, na contemporaneidade, a sua
definição tornou-se tão elástica e imprecisa que, muitas vezes,
confunde-se com outras práticas tais como pornografia e exploração
infantil. Nesse contexto, costuma-se atribuir essa distorção aos
veículos de comunicação de massa os quais abordam o pedófilo como
sujeito isolado e não informam ao público leigo os limites entre doença e
crime da pedofilia, distanciando-a cada vez mais de sua significação
original. Com efeito, essa abordagem não deve se esgotar no próprio
sujeito dissociado da sua história e do contexto social de seu tempo,
uma vez que um não tem autonomia sobre o outro, influenciando-se
mutuamente.
É fato que, no século XXI, o sexo é um
tema bastante delicado e cercado de tabus e preconceitos. Apesar de
falar-se difusamente tudo sobre ele, o envolvimento dessa prática com
crianças desperta uma reação automática de repulsa e reprovação.
Especialmente se for algum caso de pedofilia, uma vez que suas vítimas
são pré-púberes desprovidos de noções sobre sexualidade. (Rodrigues
Herbert, 2014) Nesse contexto, o fenômeno da pedofilia nunca foi tão
condenado como ocorre atualmente. Tal caráter reprovativo é herdeiro dos
primeiros estudos sobre as perversões sexuais no século XIX, das quais a
psicanalista Elisabeth Roudinesco ocupou-se. Para ela, há em cada
sociedade e sua respectiva época um tipo de perversão a ser tratada com
perversidade (Roudinesco, 2008). No caso da idade contemporânea, é sob o
pedófilo que recai o ódio e desprezo. No entanto, essa perversão é
parte intrínseca da humanidade, uma vez que exibe o que nunca se parou
de esconder: a parte obscura presente em cada um.
Sob esse viés, surgem alguns
questionamentos os quais serão explorados ao longo do estudo: como
entender a pedofilia? Quais os aspectos psicossociais envolvidos? O que
constitui o perfil do pedófilo?
Nota-se, no entanto, que tal debate está
centralizado em uma disputa de saberes: de um lado, o saber
médico-psiquiátrico tratando a pedofilia como uma patologia, e do outro,
o saber jurídico-penal que passou a tratá-la como crime. É exatamente
nessa discussão que o presente artigo se situa. O objetivo primordial é
entender se a pedofilia em si se constitui um crime e, a partir disso,
delinear as dificuldades enfrentadas pelo ordenamento jurídico no que
tange à adequação da resposta penal dada aos pedófilos, bem como a
evolução das legislações reguladoras dessa matéria. Outrossim, é nesse
contexto que irá se dirimir a inimputabilidade ou não de um pedófilo
para fins penais.
A escolha da pedofilia como objeto de
estudo justifica-se, principalmente, pelo problema da popularização do
tema atrelado a insuficiência de informações acerca do sujeito acometido
por esse transtorno. Saber identificar o comportamento pedofílico não
só contribui para sua melhor compressão, como também estrutura melhores
estratégias de tratamento e prevenção.
Ademais, como afirmava o sociólogo Émile
Durkheim, a sociedade é comparada a um organismo vivo composto por
diferentes partes específicas, embora dependentes umas das outras. Todas
essas partes devem estar integradas para que o organismo funcione
perfeitamente. No entanto, quando algum órgão entra em colapso, todo o
funcionamento é comprometido. Por esse mesmo raciocínio, o presente
artigo é relevante para toda sociedade, uma vez que o tratamento correto
e eficaz dos indivíduos pedofílicos culmina no bom funcionamento da
sociedade
2 PEDOFILIA: SÍNTESE HISTÓRICA E CONCEITUAL
É fato que os desvios de natureza sexual
convivem com a humanidade desde a sua origem na medida que acompanha a
sua evolução e expansão das sociedades em suas diversas épocas e
culturas. Foi o caso do incesto, o qual passou por sucessivas mudanças
até ser considerado um ato imoral e ilegal na contemporaneidade. Do
mesmo modo, apesar de não haver exatidão quanto ao surgimento da
pedofilia, sabe-se que ela não é um fenômeno novo, mas que nem sempre
trouxe consigo um sentimento de repulsa ou reprovação, sendo algumas
vezes algo normal e tolerável.
Na Grécia Antiga, por exemplo, a prática
sexual envolvendo crianças era socialmente aceita ou até mesmo
estimulada do ponto de vista moral. Para eles a pederastia (o
envolvimento sexual entre um homem adulto e um adolescente) era vista
como crucial para a formação moral e política do jovem uma vez que este
receberia ensinamentos do homem mais velho à medida que o contato se
tornasse mais íntimo. Tal contato era formal, dependia do consentimento
dos pais do garoto e finalizava somente quando o jovem atingisse a
puberdade e desenvolvesse nele interesses sexuais próprios. Assim, ele
estaria pronto para participar da vida política grega (CESTARI, 2018).
Nesse contexto, cabe lembrar que, embora
houvesse a utilização de crianças como objetos sexuais, a conotação
negativa do abuso sexual infantil não esteve presente na sociedade
grega. Afinal, essa prática estava imbuída de conteúdo moral e político.
O historiador Grego Hans Licht, em sua obra Sexual life in ancient Greece (1931)
frisa, com razão, que interpretar as tradições culturais do passado
partindo da interpretação hodierna de abuso sexual é algo anacrônico e
incoerente, uma vez que foi somente no final do século XXI que a
semântica reprovativa do “abuso” se consolidou.
É durante a Idade Média que se inicia uma
mudança brusca quanto ao trato social dado à pedofilia, a qual passaria a
ser um ato condenável e reprovativo e, assim, perseguida por moralistas
da Igreja Católica. Isso ocorreu uma vez que tais práticas sexuais
adquiriram uma conotação exclusivamente sexual, tornando crianças e
adolescentes objetos de prazer e desejo. À vista disso, partindo da
influência doutrinária cristã, surgiram leis proibindo o sexo com
crianças e tipificando crimes desta natureza, uma vez que se compreendeu
que esses indivíduos eram inaptos a formar juízos corretos acerca da
sexualidade. Paralelamente, iniciou-se um intenso combate à sodomia uma
vez que, dentre suas diversas roupagens, incluía também o envolvimento
sexual com crianças.
Desde então, o tema da pedofilia foi
silenciado até o final do século XIX, época em que ele emergiu novamente
e ganhou, nos séculos subsequentes, atenção em diversos âmbitos sociais
como reflexo da expansão dos meios de comunicação. Nesse sentido, a
recorrente exposição pública das práticas pedofílicas fomentou o seu
estudo científico perpassando diversas óticas, tais como a jurídica,
médica e psiquiátrica, os quais contribuem para a sua melhor
compreensão. No entanto, apesar dessa exposição, o tema da pedofilia
ainda é cercado por tabus e crenças superficiais que dificultam o seu
tratamento e devem ser, portanto, mitigadas.
3 PEDOFILIA SOB A LUZ DA PSIQUIATRIA
A palavra pedofilia etimologicamente deriva do grego paidos que significa criança e philia,
atração ou amor, sendo definida como um amor ou atração sexual por
crianças. Somente no século XIX, mesma época do surgimento da
psiquiatria, é que este termo foi utilizado pela primeira vez através do
psiquiatra Richard von Kraft-Ebing. Antes disso, a pedofilia era
conhecida por perversão sexual. (WILLIAMS, 2012)
Segundo a psiquiatria, a pedofilia
consiste em um transtorno psiquiátrico pertencente ao universo das
parafilias que são caracterizadas por anseios, comportamentos ou
fantasias sexuais específicas, recorrentes e excessivas que envolvem
objetos e situações incomuns e trazem angústia ao indivíduo, que implica
dano ou risco de ano a outros (DSM-5, 2014). No entanto, alguns autores
afirmam que nem toda preferência por determinadas partes do corpo,
objetos ou acessórios implica necessariamente em uma parafilia. Para
isso, deve-se obedecer alguns aspectos tais como: opressão do desejo e
ausência de alternativas, ou seja, o parafílico prende-se a este desejo;
rigidez, significando que a excitação sexual só se atinge em
específicas situações estabelecidas pelo padrão da conduta parafília; e o
caráter compulsivo, isto é, necessidade imperiosa de repetição da
experiência por um período mínimo de 6 meses. (SERAFIM et. al, 2009).
Sob um aspecto mais técnico, o seu
diagnóstico é feito a partir de 3 critérios estabelecidos pelo Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR, pg 649),
sendo eles:
A. Ao longo de um período
mínimo de 6 meses, fantasias sexualmente excitantes, recorrentes e
intensas, impulsos sexuais ou comportamentos envolvendo atividade sexual
com uma (ou mais de uma) criança pré-púbere (geralmente com idade
inferior a 13 anos). B. As fantasias, impulsos sexuais ou comportamentos
causam sofrimentos clinicamente significativos ou prejuízo no
funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da
vida do indivíduo. C. O indivíduo tem no mínimo, 16 anos e é pelo menos 5
anos mais velho que a criança no Critério A. Nota para codificação: Não
incluir um indivíduo no final da adolescência envolvido em um
relacionamento sexual contínuo com uma criança de 12 ou 13 anos de
idade. Exclusivo (trad. DORNELLES, 2002, p. 543-544).
Ao ser diagnosticado, o sujeito pedofílico
será tratado mediante psicoterapia individual ou em grupo à longo prazo
e receberá medicamentos que inibem o desejo sexual. Os resultados do
tratamento variam, sendo os melhores provenientes da participação
voluntária. Neste caso, a pessoa treinará suas habilidades sociais e
também receberá tratamento para outros problemas, como o abuso de drogas
e depressão. No entanto, diante de toda repressão social, o tratamento é
procurado apenas depois da apreensão criminal, o qual isoladamente se
mostra ineficaz. Isso significa que o simples aprisionamento, ainda que
por um longo prazo, não inibe os desejos e fantasias dos pedófilos. Por
outro lado, pedófilos presos que forem submetidos e monitorados ao
tratamento de longo prazo, mediante uso de medicamentos, podem deixar de
praticar a atividade pedófila e ser reinseridos à sociedade.
Nota-se que no caso do pedófilo a
anormalidade consiste na atração sexual intensa e impulsiva por menores
pré-púberes, ou seja, crianças sexualmente imaturas. A pedofilia, no
entanto, não se manifesta igualmente em todos casos, sendo decorrente de
um contexto histórico e psíquico individual. Para tal, atribui-se a
dificuldade em traçar um perfil único do pedófilo, sendo imprescindível,
portanto, conhecer suas diversas nuances a fim de buscar o mais
adequado tratamento.
4 QUEM É O PEDÓFILO E COMO ELE ATUA?
A pedofilia não possui classe social, raça
ou gênero. Não há aspectos exclusivos e seguros que possam abranger
todas as peculiaridades do sujeito acometido por tal distúrbio, sendo
este dependente de vários fatores. À priori, cabe lembrar que nem todo
pedófilo irá agir em busca sua satisfação sexual, podendo reprimir seus
desejos sem que ninguém perceba.
Ao contrário do que muitos pensam, a
pedofilia se manifesta muitas vezes em homens mais velhos de classe
social elevada, aparência cuidadosa ou livres de qualquer repreensão
social. No entanto, independente do seu aspecto físico, os pedófilos são
considerados polimorfos (ou camaleões) pois se adaptam facilmente a
diversas circunstâncias. Ao tentar conquistar a confiança da sua vítima,
transmite uma imagem de simpatia e amor, misturando-se na sociedade sem
deixar vestígios.
Em linhas gerais, os sujeitos pedófilos
convivem ou moram em locais rodeados de crianças, como escolas, parques e
quadras, onde a variedade de escolha da vítima é maior. Há também
aqueles que se aproveitam da sua função profissional para aproximar-se
desses menores, como é o caso de padres, técnicos e professores. Nesses
casos, algumas vezes o pedófilo utiliza-se de nomes falsos para
dificultar a sua identificação. Ademais, costumam agir de forma
inovadora e dinâmica ao driblar situações e variar suas estratégias de
acordo com a criança e o ambiente.
Segundo Sanderson (2005), o sujeito
pedofílico tem preferências por crianças que são bem infantis, isto é,
totalmente inocentes e que não são muito conscientes do mundo que vivem,
haja vista que dificilmente notarão o abuso sexual sofrido. Para o
pedófilo, o prazer consiste em experimentar a sexualidade imatura da
criança o quanto antes possível.
A sua aproximação inicial é feita, muitas
vezes, de forma alegre e participativa, sempre disposto a realizar as
vontades da criança e utilizando-se de mensagens com duplo sentido, sem
que a vítima perceba, a fim de cativá-la. Em seguida, há um processo
gradativo, e imperceptível para a criança, de isolamento a qual será
distanciada dos seus amigos e familiares e passará mais tempo à sós com o
sujeito. No entanto, o pedófilo sempre se certifica em transmitir uma
sensação de segurança, embora ilusória, para que a criança deseje estar
sempre próxima. É por conta disso que muitas vezes a vítima sente-se
devedora da atenção recebida e tende a aceitar qualquer pedido do adulto
em questão.
Somado a isso, uma outra forma muito comum
de atuação é através da internet, pois ela é o instrumento hodierno
mais forte de comunicação para a prática de vários tipos de delitos e
transmite uma sensação de impunidade mediante a possibilidade do
anonimato, dificultando a sua localização. É neste espaço virtual onde
ocorre, principalmente, a pornografia infantil, cujo mercado movimenta
anualmente cerca de U$ 9 bilhões em todo mundo, segundo a Organização
das Nações Unidas (ONU).
Outrossim, diante dos recorrentes uso de
estereótipos, torna-se imprescindível destacar que nem todo abusador é
um pedófilo. Frequentemente muitos casos de abuso sexual de menores são
caracterizados erroneamente, em especial pela mídia, como pedofilia.
Segundo Casoy (2014), ao contrário dos pedófilos, molestadores de
crianças possuem várias motivações para seus crimes e nem sempre serão
de origem sexual, haja vista que não há uma preferência por menores
pré-púberes, podendo ser crianças de qualquer idade ou, até mesmo,
adultos. Para eles, a prática sexual com crianças é resultado de um
aproveitamento de oportunidades surgidas, sendo, portanto, abusadores
ocasionais. Além disso, abusadores costumam utilizar-se de meios
violentos ao passo que pedófilos geralmente são mais pacíficos e
estratégicos.
Nesse viés, embora seja impossível definir
uma causa precisa da pedofilia, alguns fatores são apontados como
desencadeadores de tal distúrbio. Especialistas indicam que ao serem
expostas a um ambiente familiar marcado por violência sexual, física e
psicológica, crianças podem desenvolver uma personalidade com aspectos
anormais, ficando assim, susceptível a tornar-se posteriormente um
pedófilo. Paralelamente a isso, é apontado também o aspecto causal
biológico a partir da relação desse fenômeno com os níveis elevados de
testosterona (hormônio masculino), responsável pelos desejos sexuais
(SILVIA, 2013). No entanto, apesar de válidos, tais fatores jamais podem
ser categóricos ou deterministas, haja vista a multiplicidade causal
proveniente da individualidade do sujeito.
5 PEDOFILIA NO ÂMBITO JURÍDICO
Foi somente na década de 90, após uma
incansável busca durante décadas, que o Brasil efetuou mudanças acerca
dos direitos das crianças e adolescentes, protegendo-as, especialmente,
dos abusos sexuais. No entanto, na década anterior, o país já havia
avançado no que tange a proteção dos direitos humanos em todas as
dimensões. Foi nesta época em que se criou a Constituição Federal
Brasileira de 1988 também conhecida como a “Constituição Cidadã”,
responsável por assegurar que é “dever da família, da sociedade e do
Estado proteger e cuidar do menor”.
No ano seguinte, em 1989, foi aprovada
também a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança que abriu
caminho para uma discussão entre vários países acerca do tema afim de
reafirmar compromissos entre si. Ela, portanto, foi responsável por
reconhecer a criança como um sujeito de direitos, obrigando os estados a
protegê-las de todas as formas de violência, seja ela física, mental ou
sexual. Assim, através dessas duas significativas criações, foi
possível elaborar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) por meio
da Lei nº 8.069, de 1990, configurando-se um marco histórico e jurídico
da proteção ao menor. Desde então, o ECA, através do Ministério Público,
Poder Judiciário, Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e o
Conselho Tutelar, vem assegurando direitos fundamentais que protegem o
público infanto-juvenil.
No entanto, apesar de todo esse avanço no
amparo aos menores, o respectivo Estatuto apresenta algumas falhas. O
autor Rodrigues (2008, p. 25) frisa, com razão, que os artigos do ECA
combate crimes relacionados apenas à pornografia infantil, ficando sob
responsabilidade do Código Penal (CP) a punição e o combate aos outros
crimes sexuais, o qual, mesmo incluindo situações decorrentes da
pedofilia, não possui no seu conteúdo uma realidade jurídica bem
tutelada ao tratar-se de crianças ou adolescentes.
Somado a isso, não existe previsão legal
específica no ordenamento jurídico brasileiro para a pedofilia, sendo os
seus atos incorporados, mediante analogias, aos crimes de atentado
violento ao pudor, prática de abuso sexual ou estupro de vulnerável.
Sendo este último o que mais se aproxima da pedofilia, mediante elencado
no artigo 217 do Código Penal:
Art. 217-A. Ter
conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma
pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento
para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode
oferecer resistência.
§ 2º (VETADO).
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
Apesar disso, insta realçar que em 2014,
houve uma edição na lei 8.072/90, por meio da lei 12.978, a qual passou a
considerar o abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes como
crimes hediondos e inafiançáveis, de forma que indiciados por tais
delitos não terão direito à liberdade ou anistia.
Em síntese, é preciso entender que a
pedofilia por si só, hodiernamente, não se constitui um crime, pois
assim como o sadismo ou fetichismo, são psicopatologias. Isso significa
que apenas será enquadrado criminalmente aquele que exteriorizar os seus
desejos sexuais pedofílicos mediante abuso sexual ou estupro, como
visto anteriormente. Em contrapartida, se o pedófilo não manifestar
nenhum sinal da sua patologia, não será punido. Sendo assim, o
tratamento jurídico-penal desses casos será determinada mediante um
laudo psiquiátrico, o qual confirmará se pedófilo será destinado ao
tratamento psiquiátricos por tempo indeterminado (artigo 98 do Código
Penal). É exatamente nesse contexto que surgem controvérsias quanto à
imputabilidade do pedófilo, uma vez que a linha que separa o normal do
patológico é tênue e deve ser analisada com cautela.
6 A (IN)IMPUTABILIDADE DO PEDÓFILO: DOENÇA OU CRIME?
No âmbito jurídico, um sujeito inimputável
é aquele que não possui condições suficientes de entender o caráter
ilícito do fato. Embora sejam isentos de pena, cumprirão medida de
segurança em hospital de custódia mediante tratamento
psiquiátrico. Nesse quesito, insere-se casos como menoridade penal,
embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior e
patologias psíquicas, mediante elencado no artigo 26 do Código Penal:
Art. 26 - É isento de
pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento.
Conforme preleciona Capez (2013, p. 307):
“a imputabilidade, como elemento integrante da culpabilidade, funda-se
na capacidade de entendimento do agente delituoso acerca da ilicitude do
fato praticado, assim como de se autodeterminar com o aludido
entendimento”. Logo, nota-se que a imputabilidade depende de um aspecto
volitivo, pois consiste em uma faculdade de controlar a sua própria
vontade, e um racional, já que requer uma capacidade de entendimento. Ou
seja, se faltar algum desses elementos, o indivíduo será considerado
imputável.
À priori, é preciso entender que somente a
execução do ato relacionado à doença mental não é suficiente para
enquadrar-se na inimputabilidade. Para isso, faz-se necessário um laudo
psiquiátrico que comprove a anomalia mental e sua decorrente
incapacidade de compreender o ato criminoso, conforme previsto no artigo
26 do direito penal:
CP - Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940
Art. 26 - É isento de
pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental
incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada pela Lei nº
7.209, de 11.7.1984)
- Redução de pena
Parágrafo único - A pena
pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de
perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou
retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do
fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (Redação dada
pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Ao contrário do que muitos entendem, a
pedofilia consiste em uma parafilia, sendo reconhecido pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) como uma doença responsável por desenvolver
desejos sexuais por menores pré-púberes. Como já foi exposto, não há uma
previsão legal que criminalize a pedofilia uma vez que é a
exteriorização da vontade de tal indivíduo que pode ser enquadrada em
crimes como estupro de vulnerável, assédio sexual ou propagação de
conteúdo pornográfico infantil. Nota-se, portanto, que nem todo pedófilo
é um criminoso.
Insta considerar que, apesar do seu
aspecto patológico, é questionável se o indivíduo em questão possui
consciência do ato ilícito praticado. De um lado, há pessoas que afirmam
a incapacidade do pedófilo, ao passo que do outro, a consideram
ilusória. À este último grupo pertence o professor Guilherme Nucci que,
em sua obra Crimes contra a dignidade sexual, ao referir-se à
imputabilidade penal, afirma que se deve focar particularmente nas
chamadas doenças da vontade e personalidade antissociais que não são
consideradas mentais, uma vez que não afetam a capacidade de
entendimento e vontade do agente e, por isso, não excluem a
culpabilidade. Nesse sentido, apesar do aspecto patológico, o pedófilo
deve responder pelos seus atos e sofrer o juízo punitivo, sem usufruir
de benefícios.
Todavia, diante da sua incapacidade de
oferecer tratamento adequado, fica claro que somente a punição
carcerária não irá conferir nenhum resultado eficaz ao pedófilo. É fato
que, para o Estado, a prisão será menos onerosa que um tratamento
psiquiátrico por tempo indeterminado. Assim, a nefasta consequência
disso é que os pedófilos serão tratados como criminosos comuns e,
posteriormente, serão devolvidos à sociedade na mesma condição de quando
cometeu o ato ilícito, tendendo, portanto, a reincidi-lo.
Desse modo, caso haja dúvida quanto à
capacidade de imputação jurídica de um indivíduo, far-se-á necessária
bastante cautela ao analisar o caso concreto, uma vez que alguns
pedófilos se aproveitam da sua condição para conseguir minimizar suas penas
mediante os benefícios da imputabilidade. Diferenciar os limites entre o
normal e o patológico não é uma tarefa fácil e, para isso, é mister um
critério técnico bastante preciso para identificar se o pedófilo é um
agente inimputável ou não. Entretanto, tal precisão ainda não foi
alcançada pela psiquiatria moderna, restando apenas o tratamento clínico
como medida mais segura e, gradativamente, eficaz.
7 CONCLUSÃO
Como foi visto, a pedofilia existiu desde
os primórdios da sociedade e foi considerada como uma prática aceitável
em diversas épocas e culturas. No entanto, com o passar dos séculos,
compreendeu-se que tal prática seria prejudicial à criança, adquirindo
assim uma nova roupagem reprovativa e condenatória. Nesse viés, ao
contrário do que é erroneamente propagado, a pedofilia em si
constitui-se uma patologia haja vista o seu aspecto específico,
recorrente e excessivo.
Por outro lado, rememora-se que, na
legislação brasileira, a pedofilia não é considerada um crime, uma vez
que está presente no íntimo do sujeito. Porém, quando esse desejo é
satisfeito por meio de um ato concreto que viola a liberdade sexual do
menor, se constituirá um crime passível de sanção. Logo, a legislação
não pune o pedófilo pelo que ele é, mas sim pelas suas atitudes.
Nesse sentido, bailando sob o tema chave
dessa discussão, ficou evidente a dificuldade ao definir o pedófilo como
um agente imputável, inimputável ou semi-imputável, haja vista a linha
tênue entre o que é normal e patológico. Para isso, a Psiquiatria
Forense auxilia o Direito Penal ao diagnosticar a capacidade mental dos agressores sexuais.
Todavia, apesar da existência ou não de
culpabilidade, é fato que o encarceramento por si só não se constitui
uma medida eficaz, uma vez que o pedófilo permanecerá na mesma condição
patológica, tendendo a reincidir seus atos. Desse modo, nota-se que tal
sujeito requer um tratamento clínico especial capaz de auxiliar no
controle dos seus desejos sexuais socialmente inaceitáveis e, assim, lhe
possibilitar a reinserção na sociedade.
Ademais, cabe realçar ainda que a
limitação do presente artigo consiste em analisar apenas uma parcela do
tema em questão. É evidente que o comportamento pedofílico gera
consequências que vão além do próprio sujeito, perpassando a vítima e
sua família bem como a família do pedófilo. No entanto, o fato de não
serem abordadas não implica na sua irrelevância para a compreensão da
pedofilia. Entender melhor o perfil pedofílico não só desmistifica
alguns tabus como também possibilita uma visão mais clara acerca desse
tema mundialmente vigente, a qual será crucial na busca por tratamentos
cada vez mais eficazes.
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