STF restabelece norma do CFM que restringe tratamento hormonal e bloqueio puberal para adolescentes e crianças trans
Ministro Flávio Dino acatou pedido do Conselho e reconheceu que a competência para julgar o tema é da Suprema Corte, e não da primeira instância, que havia suspendido a resolução
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O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino acatou um pedido do Conselho Federal de Medicina (CFM) e restabeleceu, nesta quinta-feira, a resolução publicada em abril que restringe o acesso ao tratamento hormonal e bloqueio puberal para crianças e adolescentes trans no Brasil. O magistrado reconheceu que a competência para julgar o tema é da Suprema Corte, e não da primeira instância, que havia suspendido a norma em julho.
Na época, uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF) pediu a suspensão após o procurador regional dos Direitos do Cidadão no Acre, Lucas Costa Almeida Dias, classificar a norma como um “retrocesso social e jurídico” que “desconsidera evidências científicas e agrava a vulnerabilidade” da população trans.
O juiz Jair Araújo Facundes, da Justiça Federal do Acre, acatou o pedido do MPF e mencionou, entre outros pontos, a alegação de falta de participação de diversas especialidades médicas e não médicas na elaboração do texto e incoerências em relação às evidências usadas pelo CFM.
O Conselho, no entanto, defendeu que a norma “representa um marco técnico e ético na abordagem do tema no Brasil, alinhando-se a diretrizes adotadas em países com sólido desenvolvimento científico, como Estados Unidos, Inglaterra e Suécia” e disse que iria recorrer no Supremo.
Em setembro, o CFM deu entrada com uma reclamação constitucional no STF alegando que o juiz de primeira instância não teria competência para suspender a norma por ser “um ato normativo de alcance geral, cuja análise de constitucionalidade cabe exclusivamente à Suprema Corte”, explica em nota.
Além disso, o Conselho lembrou que já há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF, protocolada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e pelo Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), pedindo a nulidade da norma, que ainda não foi analisada.
Dino concordou que o tema é de competência do STF, por envolver a constitucionalidade ou não da resolução, e que, por isso, o juiz do Acre não poderia ter suspendido a norma.
“A medida adequada é restabelecer a competência do STF, sustando os efeitos da decisão reclamada (a suspensão do juiz) até que o exame concentrado seja realizado pelo foro constitucionalmente competente”, escreve o ministro na decisão.
O magistrado restabeleceu integralmente a norma do CFM até o julgamento final da reclamação constitucional pela 1ª turma da Corte agendado para o próximo dia 17, ou até a análise da ADI que pede a nulidade da norma, distribuída ao ministro Cristiano Zanin.
Para o presidente do Conselho, José Hiran Gallo, a decisão de Dino é “uma vitória para a saúde da população brasileira e mais segurança para os nossos jovens”. Raphael Câmara, conselheiro do CFM e relator da resolução, defendeu que o texto “apenas define critérios éticos e técnicos baseados na precaução médica e na proteção de jovens em fase de desenvolvimento”.
Segundo o CFM, paralelamente, o Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, também se manifestou dentro do processo da ADI pelo não conhecimento da ação devido a “falhas formais na impugnação do conjunto normativo aplicável ao tema”.
Entenda a resolução
A resolução, publicada em abril, revisou alguns critérios para atendimento a pessoas trans no Brasil. Em relação à hormonioterapia, que envolve o uso de testosterona e estrogênio para induzir características biológicas do gênero com a qual a pessoa trans se identifica, a norma antiga, de 2019, autorizava a partir dos 16 anos. A nova restringiu para apenas maiores de 18.
Outra mudança foi a proibição do bloqueio puberal. A estratégia, reversível, é utilizada para interromper a produção de hormônios sexuais em crianças e adolescentes trans e impedir o desenvolvimento de características físicas do sexo de nascimento até que esses jovens tenham idade suficiente para dar início à transição de gênero.
A resolução anterior autorizava a prática a partir do início da puberdade exclusivamente em caráter experimental dentro de protocolos rígidos de pesquisa em hospitais universitários e/ou de referência para o Sistema Único de Saúde (SUS). A nova, porém, proibiu até mesmo dentro de estudos.
Outro ponto trazido pela resolução de abril do CFM foi a elevação da idade mínima para a realização de procedimentos cirúrgicos com potencial efeito esterilizador de 18 para 21 anos. São eles a neovulvovaginoplastia (criação de uma vagina com retirada de testículos para mulheres trans) e a histerectomia e ooforectomia bilateral (remoção do útero e dos ovários para homens trans).
Logo após a publicação da norma, uma carta assinada por cinco entidades médicas, entre elas a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e a Associação Brasileira de Obstetrícia e Ginecologia da Infância e Adolescência (SOGIA-BR) teceu críticas, rebateu argumentos usados pelo CFM e pediu a retomada da norma antiga.
Já em um artigo publicado na Nature Medicine, pesquisadores do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual da Universidade de São Paulo (USP) afirmou que o cuidado à população trans está “sob ataque” e que restrições ignoram “padrões científicos e éticos”, “distorcem as evidências” e “desconsideram diretrizes clínicas internacionais”.
Nesta semana, membros do CFM também publicaram um artigo na Nature Medicine em que contestaram as críticas e defenderam que há uma baixa qualidade das evidências científicas sobre a eficácia e segurança do uso de bloqueadores de puberdade e da terapia hormonal em adolescentes.
“O princípio da precaução, neste contexto, não é um instrumento de restrição ideológica, mas uma norma de prudência amplamente aplicada em políticas públicas de saúde quando os riscos futuros são incertos”, diz o texto assinado pelo presidente da autarquia, José Hiran Gallo, pelo vice-corregedor, Francisco Cardoso, e pelos relatores da resolução, Raphael Câmara e Bruno Leandro de Souza.
Os pesquisadores da USP, por outro lado, defendem que o cuidado de afirmação de gênero entre os jovens é sim respaldado por um corpo crescente de evidências. Eles citam um trabalho americano de 2022, publicado na Jama Network Open, que mostrou que jovens trans em terapia hormonal tinham 73% menos chances de apresentar ideação suicida em comparação com aqueles que não recebiam o tratamento.
Em relação a possíveis riscos e à taxa de arrependimento pós-transição, pontos também mencionados pelo CFM, a carta das entidades médicas afirma que “estudos recentes mostram que a redução da densidade mineral óssea durante os anos de bloqueio puberal é recuperada após a suspensão da medicação”. Além disso, que embora trabalhos de fato encontrem resultados heterogêneos sobre taxa de arrependimento, os mais rigorosos apontam percentuais baixos.
Um deles, que analisou o cenário na Holanda, primeiro país a introduzir um protocolo de tratamento para crianças e adolescentes com disforia de gênero, acompanhou 720 indivíduos que iniciaram a terapia com bloqueio hormonal antes dos 18 ao longo de aproximadamente duas décadas. Os resultados mostraram que 704 (98%) continuavam após 20 anos, ou seja, não haviam interrompido a transição.
Publicado no The Lancet Child & Adolescent Health, em 2022, o trabalho também destacou que não é possível afirmar que os outros 2% tenham abandonado o tratamento por arrependimento, já que pessoas transgênero podem simplesmente não desejar mais usar hormônios nem realizar intervenções cirúrgicas. O estudo foi o maior até hoje a investigar a continuação do tratamento em pessoas trans que o iniciaram ainda na adolescência.
No artigo da Nature, os pesquisadores da USP citam que o grupo tratou 79 adolescentes trans com bloqueadores de puberdade e que os efeitos adversos foram raros. “Apenas um paciente manifestou desejo de desistir da transição, sem arrependimento. Esses resultados estão alinhados com padrões internacionais, que indicam taxas de desistência abaixo de 2% quando os protocolos de avaliação são seguidos adequadamente”, escreveram os autores.
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