O
mais temido nome do sertão, respeitado entre coronéis, bandoleiros e
jagunços, interpretado como bandido, justiceiro ou até mesmo herói,
sentou-se à mesa para comer um simples café com cuscuz.
O desjejum antecedeu uma das imagens mais icônicas
produzidas na história do cangaço. No dia 17 de dezembro de 1928, depois
de encher o bucho, Virgulino Ferreira, o Lampião, enfileirou seu
reduzido bando e exigiu uma fotografia que, desde o definitivo clique,
já nascia tão clássica quanto trágica.
Próximos
da Igreja de Santa Tereza D’Ávila, no povoado de Vila do Pombal, então
com cerca de 700 habitantes, os oito cangaceiros apoiaram seus rifles no
chão e posaram sérios para a imagem. Quem bateu a chapa foi Alcides
Fraga, rico e renomado alfaiate do povoado e maestro da conceituada
filarmônica XV de Outubro.
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Os
oito odiados fotografados em Ribeira do Pombal: Lampião, Ezequiel
(irmão de Lampião), Moderno, Luís Pedro, Antônio de Engrácia, Jurema,
Mergulhão e Corisco (Foto feita por Alcides Fraga e restaurada por Rubens Antonio) |
Finalizado
o registro, Fraga percebeu que estava em maus lençóis. Lampião exigiu o
retrato. Cheio de dedos, o maestro argumentou que precisaria de, no
mínimo, uma semana para enviar os negativos até Salvador e recebê-los de
volta. O cangaceiro vaidoso não arredou. Disse que, dentro de três
dias, enviaria um intermediário para buscar a revelação. Não queria
desculpas e, sim, a fotografia.
Aflito,
Fraga recorreu aos seus contatos diretos. Conseguiu um químico da
região que elaborou uma mistura improvisada fixando a estampa em papel
e, de quebra, garantindo o pescoço do fotógrafo preservado, no devido
lugar.
“Quem teve acesso à fotografia original percebe que
ela tem muitos problemas de definição, mesmo para a época que foi feita.
Isso porque a revelação foi de maneira rústica e apressada, porque
Fraga não estava preocupado com a qualidade, mas, sim, em salvar sua
própria vida”, diz Rubens Antonio, escritor e pesquisador do cangaço.
Foi ele o responsável pela restauração da imagem icônica, que ilustra
esta reportagem.
Entre os volantes e o cangaço
Passado este percalço, a vida do maestro desafinaria por completo dali
em diante. Nunca se soube exatamente como, mas uma cópia daquela mesma
imagem foi parar nas capas dos jornais, noticiando algo que há muito
tempo já corria como rumor pelos quatro cantos da Bahia.
“Aquela
imagem é a primeira e única que se tem notícia de uma fotografia de
Lampião na Bahia. Alcides foi muito habilidoso em enquadrar a igreja de
Santa Tereza D’Ávila, porque, pra quem conhece a região, não tem dúvidas
que a foto tenha sido feita em Pombal", diz Robério Santos, pesquisador do tema e dono do canal no youtube O Cangaço na Literatura.
"Antes
disso, já circulavam muitas notícias que o bando de Lampião estava no
estado, mas nenhuma delas era comprovada ou mesmo verdadeira. Ali, de
fato, se pode confirmar a chegada do mais perigoso cangaceiro que se
tinha notícia na época”, complementa.
Os jornais fizeram intenso rebuliço criticando as
forças policiais volantes que deixavam Lampião andar livremente pelas
veredas do norte, sem prendê-lo. Desaprovaram também o intendente (uma
espécie de prefeito, à época) de Pombal, Paulo Cardoso de Oliveira
Brito, por ter aberto as portas do seu sobrado e até oferecido um
reforçado café da manhã para o bando. Até o padre Zacarias Mato Grosso,
cicerone da visita, caiu em desgraça na pena implacável dos
editorialistas.
“Depois
dessa pressão, as forças policiais, então, foram atrás de Alcides para
saber onde Lampião estava. O coitado disse que não conhecia o cangaceiro
e só tinha feito a imagem porque era o único que tinha uma máquina
fotográfica ali disponível. Os policiais não acreditaram muito e o
colocaram na mira deles a partir daquele momento”, pontua Rubens Antonio.
Para
o azar do maestro, a coisa toda ainda desandaria por completo. Em
janeiro do ano seguinte, os policiais encontraram a rota dos cangaceiros
e partiram no encalço da trupe. Um dos lugares-tenentes de Virgulino, o
cangaceiro Mergulhão, morreria neste combate, no povoado de Abóboras.
Lampião jurou vingança! E ficou possesso ao saber do burburinho que
tinha sido encontrado após supostas informações passadas pelo fotógrafo
de Pombal.
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Alcides Fraga, o homem que fotografou Lampião, e sua esposa Rita de Cassia Cunha Fraga (Foto: Acervo pessoal) |
“Agora
imagine a situação de Alcides Fraga? Estava na mira dos policiais
volantes e jurado de morte por ninguém mais, ninguém menos, que Lampião.
Isso sem ter ajudado nem um lado e nem o outro. Ele fez, então, a única
coisa sensata que poderia. Pegou tudo que tinha e partiu embora com a
esposa. Era um homem com uma boa condição social e respeitado em Pombal,
mas abandonou tudo para sobreviver”, afirma Rubens.
Alcides Fraga passou a levar uma vida errante.
Migrava de cidade em cidade esperando a poeira baixar para poder,
definitivamente, voltar para casa. Neste ponto, a história se ramifica
em muitas versões. Uns dizem que ele nunca mais regressou à vila,
perdendo a esposa e se entregando completamente ao álcool. Perderia toda
a fortuna e levaria a família à falência.
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Recortes dos jornais noticiando a passagem de Lampião pelo norte da Bahia |
Outros
afirmam que o maestro, sim, conseguiu voltar para casa, após driblar o
cangaceiro rancoroso, àquela altura com outras preocupações prementes na
reorganização do seu bando. Há, porém, um consenso entrelaçando estas
duas narrativas: o maestro jamais teria sido capturado, impedindo a
consumação da vingança.
Cidade hospitaleira
O
historiador Oleone Coelho Fontes, autor do livro “Lampião na Bahia”,
enxerga na imagem feita em Pombal um recorte ilustrativo da nova etapa
na vida do cangaceiro dali em diante.
“Em 1926, Lampião vai sofrer uma das mais
importantes derrotas da sua trajetória, em Mossoró, no Rio Grande do
Norte. A partir dali, ele reorganiza suas forças e passa a adotar bandos
menores. Antes, eram 150, 100 homens seguindo ele. Depois dessa
derrota, passa a se organizar em grupos menores e subgrupos. Na foto de
Alcides, dá pra ver que ele é seguido apenas por sete cabras, alguns
muito famosos, como seu irmão Ezequiel, Mergulhão, Arvoredo e Corisco. A
chegada dele na Bahia representa este novo momento”, analisa.
Para os moradores do povoado ficaria a fama de um
lugar hospitaleiro. Anos depois, a vila cresceria tanto até se tornar a
cidade de Ribeira do Pombal, no norte da Bahia, emancipada em 1933.
“Eu
costumo brincar que o povo pombalense é tão acolhedor que até o bando
de Lampião, que tocava o terror em todo sertão, foi bem recebido aqui.
Esse é um traço nosso, do nosso jeito de ser. O próprio Lampião teria
ficado encantado com essa recepção. Meu avô mesmo, na época tinha 11
anos, me contava que pediu a bênção a Lampião e ele deu uma moeda em
troca”, diz Osvaldo Rocha, ex-secretário de cultura da cidade.
O
lugar onde os cangaceiros posaram hoje é a fonte luminosa da Avenida
Getúlio Vargas, principal via da cidade. Rocha conta que, durante os
anos 1970 e 1980, os moradores questionaram a própria recepção calorosa
oferecida pelos antepassados.
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Local onde os cangaceiros posaram para a foto hoje é uma fonte luminosa, na Avenida Getúlio Vargas, em Ribeira do Pombal (Foto: Reprodução/Google Street View) |
“Durante
muito tempo, os moradores mais novos questionaram se foi certo receber
os cangaceiros de forma tão hospitaleira. Afinal, eram foras da lei que
cometerem crimes terríveis. Meu próprio avô, que pediu a bênção a
Lampião quando criança, depois passou a defender aquilo como um erro.
Mas é difícil julgar”, diz.
Este embate polêmico cancelou um projeto de
construção de oito estátuas, cada uma representando um dos cangaceiros,
enfileiradas no exato local onde a foto de Alcides foi batida. A ideia
era explorar o potencial turístico da icônica imagem.
Por enquanto, o que permanece mesmo intacta, e garante o retorno dos visitantes, é a hospitalidade do povo pombalense.