Nova doença e a velha senhora |
Está claro como a
epidemia da Covid-19 comprometeu o controle das doenças crônicas e das
endêmicas no Brasil e no mundo. O impacto sobre o câncer, exames
preventivos que deixaram de ser feitos, procedimentos diagnósticos e as
consequentes intervenções terapêuticas, sem dúvida trarão, a curto e
médio prazos, perdas de vidas evitáveis, em meio às milhares causadas
pela pandemia per se.
Dexametasona: OMS pede aumento da produção mundial do corticoide
Dentre as endêmicas, chama a atenção a tuberculose, ainda tão
prevalente no país, com um forte controle governamental, porém a
depender da participação ativa e adesão da sociedade, atingidas em cheio
nos últimos quatro meses. São muitas as evidências de que a efetividade
do controle depende não só da disponibilidade de bons medicamentos, mas
adequada organização de ações, recursos humanos qualificados e
tratamento humanizado.
Apesar dos avanços, com redução na incidência e na mortalidade, o
Brasil está entre os 22 países de maior carga de tuberculose no mundo,
com 70 mil casos novos e mais de 4 mil mortes anuais. Doença urbana,
ligada a condições de vida, sua redução no país nas últimas décadas tem
sido desigual. A redução anual, de cerca de 2,5%, é muito aquém da
esperada. Com a expectativa de erradicação nos próximos 50 anos, seria
necessária uma queda de 6% ao ano.
No mundo, três países do bloco dos BRICS — China, Índia e África do
Sul — concentram 50% dos casos. Se olharmos a vasta literatura que se
inspira na “velha senhora” como foi denominada, vemos que perdeu o
lirismo a velha tísica da iconografia de óperas e romances, que fez
passar partes de suas vidas em sanatórios artistas e poetas até a metade
do século passado.
Após a Segunda Guerra Mundial, surgiram os primeiros medicamentos,
iniciando pela estreptomicina, a que salvou o grande dramaturgo Nelson
Rodrigues, em seus muitos anos em sanatórios, até o advento da
rifampicina, no fim dos anos 60, ainda hoje protagonista no tratamento
da tuberculose.
Cinquenta anos após, vivemos um momentum, com a descoberta
de cerca de 20 novas moléculas e estudos clínicos para testar eficácia e
redução do tempo de tratamento. Estudos em diversas fases no mundo têm o
objetivo de reduzir o longo tempo de tratamento e aumentar a adesão dos
pacientes, com todos os fármacos orais. É alentador portanto, verificar
que, há poucos dias, ainda que com atraso em relação à aprovação pela
OMS, dois bactericidas potentes, bedaquilina e delamanide, foram
aprovados pela Conitec para incorporação ao programa brasileiro de
tuberculose.
Covid-19: Taxa de mortalidade entre os indígenas da Amazônia Legal é 150% maior do que a média nacional
O Brasil tem sido exemplo, desde normas para diagnóstico e tratamento
elaborados em conjunto pelo Ministério da Saúde e a comunidade
acadêmica, com participação da sociedade civil, sem conflito entre
medicina pública e privada. Merecem registro: o pioneirismo dos esquemas
de tratamento curtos, permitindo o fechamento de sanatórios e o regime
ambulatorial nos anos 80; o reconhecimento de grupos vulneráveis, em que
a incidência é centenas de vezes maior do que na população geral, como
indígenas, presidiários, pessoas com HIV e moradores de rua;
medicamentos formulados em comprimidos de dose fixa combinada, que reduz
os comprimidos diários; aquisição de insumos para diagnóstico rápido
molecular; criação de centros de referência para casos complexos; e um
banco de dados on-line, para vigilância epidemiológica; além de
iniciativas como a Frente Parlamentar contra a Tuberculose e aumento de
orçamento.
Neste cenário social e epidemiológico brasileiro, duramente atingido
pela pandemia, já seria, em condições ditas normais, inadmissível o
paradoxo de morrerem por ano 4 mil brasileiros de uma doença
diagnosticável, tratável, virtualmente curável e com tratamento
gratuito. A constatação de que 40% dos testes diagnósticos para
tuberculose deixaram de ser feitos nos últimos três meses, somada aos
mais de 50 mil mortos pela Covid-19, nos coloca um prognóstico sombrio e
a triste constatação de que ainda somos um país injusto e desigual.