A INTERIONA , UMA GUERREIRA
Adolfo Ricart(SOBRAMES)
CAPÍTULO I
PERDIDA NUMA METRÓPOLE
Dormiu
sob as marquises por duas semanas, chegara do interior sem lenço e sem
documentos, sem eira e nem beira, não possuía um naco de carne, faltavam-lhes
músculos, faltavam-lhes brilhos na face, cabelos castanhos enfubazados e quebrados de tantos pentes com azougue, pele
porosa, gordurosa e revelando finas cicatrizes provenientes da lida diária no
campo, o sol causticante consumia a sua juventude e queimava as suas retinas , o mormaço secava a sua pele e mumificava a seca carcaça , no campo vivia sob a égide dos fenômenos da natureza e na selva de pedras duas semanas no relento, duas
semanas comendo não se sabe o que, não tinha acesso nem ao pão que o diabo amassou que para a sobrevivência
até este seria bem vindo.
No
desespero porém com esperanças, que para esta guerreira nunca morrerá, bate pela vigésima vez noutra porta, batedor de metal cabeça de
leão desgastado pelo tempo , era cobre
ou bronze amarelo, produzia um som alto e estridente que ocupava todo o espaço do
longo e escuro corredor até chegar à desarrumada sala, o trinco da robusta fechadura
, de ferro preto, era atado a um longo cadarço que dava até a sala e lá era destravado pela robusta matrona dona da
pensão, a pesada e verde porta é destravada das seculares caixas de madeiras de
lei e dos grossos alisares de vinhático, do fundo da casa aos gritos
surge uma voz em taboca rachada.
___Pode
entrar.
Sem ouvir
uma única palavra a senhora sentada numa cadeira de balanço logo entendeu o
motivo da visita, não agiu com compaixão, estava precisando de mais um
serviçal.
___ Não
tenha medo, se não sabe lavar, passar ou cozinhar servirá para serviços
diversos, o dia começa às seis da manhã e só termina quando o último hóspede
deixar a sala da televisão.
Cabisbaixa,
introspecta, olhar para o futuro, com as palavras atritadas e pensativa a garota
responde.
___Aceito
sim senhora, aceito sim, onde fica o meu quarto?
___Que
quarto? Nos fundos onde se guarda as tralhas arma-se uma rede, bate-se a porta
e só se abre às cinco da manhã, banho tomado, inhaca fora e logo-logo ajudando
a Maria na lida do café, só se come após recolher a mesa depois do último
hóspede.
Sem titubear e pela necessidade , uma vez que a fome não tem consciência, a menina sem perder tempo confirmou automaticamente, intestinalmente a vontade de ficar , não dormiria mais no relento..
___Aceito
sim senhora, aceito sim, já posso começar?
A velha e futura patroa pede atenção, voz ríspida, fácie em casca de laranja, mumificada
, dedo em riste e de olhos arregalados vociferando detalha.
___Outra
coisa, roupas limpas e bem comportadas, também com este corpo pode até
assombrar a hospedaria; toma este sabão, dá uma geral, desgrenha esta moita da
cabeça, esta juba ressecada e veste este
conjunto, foi da última que despedi na semana passada , emprenhou e mandei de
volta para os pais, por isso tome cuidado e nada de trela com os vadios da rua.
Passa
para a desvalida dois conjuntos de roupas velhas, puidas, surradas, número maior
do que o seu manequim e exige pressa.
Neste dia
após o banho a interiorana mata a fome e não deixa um único naco de pão para a
farinha de rosca, da sopa rapou até o tacho e foi assim durante o primeiro mês
quando começou a perder o medo da cidade grande, acostumou-se com o rabugento
jeito da patroa, tomou coragem e lhe dirigiu a palavra.
___Dona
Gertrudes daria para a senhora me arrumar um sabonete, não precisa ser do bom,
basta que seja cheiroso e eu queria também um pente com os dentes mais
afastados para não danificar os meus já ressecados cabelos.
A velha
retrucou na mesma hora com um olhar reprovador, com uma mão na cintura e a
outra a gesticular foi dura com a
neófita aprendiz, desdenhando do seu atrevimento a reempreendeu.
___Sabonete?
pente grosso? Olha menina vai trabalhar que é melhor, para onde tu vais com
esta arrumação? Para onde tu vais? Tu não tens parentes aqui na cidade,
namorado não arranjas, para que diabo esta invenção? cuida do teu serviço e
pronto, faz uma touca, cobre estes cabelos e sabão de côco não falta nesta
casa, o que vou arrumar é um desodorante para acabar com esta inhaca dos sovacos
e este odor de tigre.
A menina
não insistiu, também não procurou se desviar do bom caminho, juntava as sobras
dos sabonetes e dos shampos usados pelos hóspedes, colava um ao outro e tomava banho
com diversas essências, do seu pente arrancou-lhe os dentes pulando um,
arrancado outro, pulando e arrancando, com este engenho penteava os
encaracolados e finos fios que já tomavam jeito .
Com a
farta alimentação, evidente sobras, a menina foi ganhando umas carnes, a
ausência causticante do sol, banhos diários e com noites bem dormidas a menina foi sendo recuperada, revelou-se que por detrás das cicatrizes
definitivas causadas pelos finos arranhões
mostrava uma delicada pele ainda preservada, de bom trouxe os belos dentes enfileirados que após
trinta dias de escovação passaram a causar inveja, são os mistérios da vida.
A garota
foi vista por dona Gertrudes, a menina tomava jeito de gente, mostrava-se
preocupada com o trabalho e não apresentava nenhuma amofinação, tinha jeito
para as coisas, desenvolvia bem, tinha
futuro..
___Menina,
vou te vestir com roupas mais compostas, vi que já aprendestes a fazer o café e
pôr a mesa pela manhã, o que também me impressiona é a tua rapidez nos serviços
e sem reclamar, mas sempre reivindicando, me diga uma coisa, tu estudastes até
que ano?
___Fiz o
primário dona Gertrudes, fiz o primário, não aprendi mais devido a distância da
escola e porque na roça é comum as crianças deixarem a escola na época das plantações, nas
limpas e nas colheitas, primeiro o enche-se o bucho para matar a fome , come-se de
tudo, até xingó assado é banquete no meu interior, depois a educação, depois o
conhecimento cultural, como na minha região só existia o primário tomei
rumo à capital para completar os meus estudos, deixei a minha família chorosa,
pai morreu antes dos cinquenta, no interior os homens bebem muito e é bebida quente, até alcool de posto de gasolina eles bebem, morrem cedo, mãe vive cuidando da roça, prometi a mãe que um dia ela iria se
orgulhar de mim, um dia ela iria receber o meu retrato vestida de uma formatura,
vestida numa beca preta, que vai vai, é a minha meta.
A velha
não botou fé, não levou a sério o diálogo com a nova empregada, mesmo assim a
promoveu e pela honestidade demonstrada além do café entregou os quartos
para arrumação.
A menina
passou a acordar mais cedo, a cozinheira não morava na hospedaria, quando
chegava tudo já estava pronto, quintal lavado e varrido, feijão catado e de
molho, carnes cortadas e temperadas, a mesa posta e algumas novas guloseimas a
enriquecer a mesa da tradicional pensão.
Os
hóspedes cada dia mais satisfeitos, principalmente com a organização dos seus
quartos, com a limpeza dos sanitários e com a impecável honestidade da
funcionária, muitas vezes facilitavam, moedas sobre as mesas, cédulas dentro
dos livros com as pontas à mostra e mesmo assim nada a reclamar, a moça foi
ganhando confiança e com ela pequenos agrados: roupas, sapatos e produtos
de beleza , contudo o que de mais gostava era quando recebia livros e revistas, aos poucos foi se revelando.
Passado
seis meses já circulava na sala da televisão com muito respeito, vezes para
servir um suco, uma água, para socorrer alguns com dor de cabeça servindo um
analgésico e até mesmo participando de conversas após os telejornais, a esta
altura mês de janeiro já procurara vaga numa escola pública para completar os
seus estudos, não conseguiu devido a idade e entrou numa escola de aceleração,
concluiu em 18 meses de estudo os três anos do colegial.
Dona
Gertrudes já se orgulhava da sua caipira, já acreditava nas suas
palavras e podia deslumbrar um futuro melhor, nenhuma desavença com os
hóspedes, nenhuma notícia que arranhasse a sua reputação como mulher, não dava
atenção às tentações dos moradores , exigia reciprocidade no respeito, do
trabalho para a escola e deste para o trabalho, tudo nos conformes , a
honestidade e o trabalho eram as suas marcas prediletas, a velha patroa vivia e dormia em paz, inclusive era a predileta para acompanhar dona Gertrudes em consultas médicas e tirar algumas duvidas de como utilizar os medicamentos , a menina era atenciosa.
CAPÍTULO II
O PRIMEIRO VÔO PARA O FUTURO
___Dona
Gertrudes preciso falar com a senhora, fui convidada para cuidar de um ancião,
mora num bairro nobre, mora com a filha mais velha e só trabalharei até às 17
horas, poderei estudar à noite e terei carteira assinada, o que a senhora
acha?
A velha
não gostou, como perder uma funcionária de tão boa índole, uma funcionaria de
tão bom perfil, tão cheia de força de vontade? Como perder? Quis botar
gosto ruim, mas o senso de responsabilidade falou mais alto, não só apoiou como
também deu alguns conselhos e uma pequena ajuda financeira, passou a ser uma
orientadora, a partir daquele dia saía mais um cidadão da informalidade, dona Gertrudes fez o papel de mãe, abriu as suas portas , até chorou na sua partida.
A menina
sinalizou e foi ao encontro do novo emprego, uma mansão abandonada
em um bairro nobre, nela morava um viúvo na sétima década da vida, sofrera
injúrias na saúde e necessitava de ajuda para os afazeres primários, casa fria
e escura, o limo caia pelos muros e os móveis encruados mostravam sinais de
saudosismo, quase tudo era feito de madeira, do piso ao teto.
____Meu
pai é um velho muito culto, é professor aposentado, tem muito ciúmes dos seus
livros, tenha muito cuidado, não esqueça dos seus remédios, de sua alimentação
e de sua higiene, chegarei mais cedo, só recebe visitas em alguns domingos quando os filhos casados lhe visitam.
Esta era
a ladainha diária, o velho era um sujeito de posses materiais e de pouca
renda, vivia de alguns aluguéis e de uma pequena aposentadoria, por isso morava
com uma filha solteira , uma funcionária antiga da Universidade onde lecionava
até a aposentadoria , vivia neste casarão quase que abandonado, mal cuidado, frio , escuro e sem
manutenção, uma prisão, um calabouço, um ergástulo , vivia enclausurado , apesar das
posses não existia renda, como professor ganhava pouco , quando tinha saúde possuía
outras rendas, depois de aposentado até os amigos sumiram.
A menina
trabalhava até às 17 horas, conversava muito com o ancião, aprendia o que não
existia nos livros, o trabalho era um verdadeiro aprendizado, recolhia-se
ao seu aposento e à noite frequentava novos cursos preparativos para o
futuro, o trabalho passou a ser uma diversão, uma elegria, passou a ser uma grande oportunidade de educação, o professor era um poço de sabedoria e queria servir, queria ser útil como nos velhos tempos de cátedras, era uma reserva cultural hibernada à espera de tempos melhores, a solidão atrofiara a sagacidade da vida.
O seu
quarto ficava nos fundos, era um quarto pequeno, mas era só seu, tinha um
pequeno banheiro, ficava colado à cozinha e a área de serviço dava para os
fundos da rua, avistava os carros enfileirados e outros lado a lado, não era um
quarto descente para a casa que morava, mas era um quarto só seu, para uma
orelha seca já era uma vitória, era assim mesmo, era assim, os aposentos dos serviçais
mesmo nas grandes mansões são minúsculos,
apertados, são feitos para mostrar a distância entre as classes sociais num
país sem escola, sem educação de boa qualidade para todos, "filho de gato
gatinho é e filho de peixe peixinho é", era assim que se vivia em épocas pretéritas , quando na verdade filho de gato numa espécie que raciocina, a do homo sapiens, pode evoluir para leão, é o cérebro quem comanda.
A menina
vivia como merecia, o sol não mais queimava a sua pele, as roupas soltas e
finas a lhes mostrar o perfil , busto escultural , macio e brilhoso, os
peitos não necessitavam de apetrechos para sustentá-los, cintura fina, nádegas
duras e levantadas , pernas torneadas com toda a beleza da mocidade, panturrilhas
de causar inveja e pés delicados , a garota no passado era maltratada.
Cuidou do
ancião até o dia em que o mesmo olhando para os belos seios da pequena quis
massageá-los, a menina mostrou a sua delicadeza,
a reação foi com urbanismo, porém dura,
enérgica , com destreza , maestria e civilidade, o velho foi chamado à atenção, de imediato , humanamente e por enteder o isolamento , comunicou à patroa
sobre o ocorrido , com a voz segura e equilibrada falou:.
___Dona
Glória me desculpe, mas não posso mais trabalhar nesta casa, seu pai já
está recuperado, corado, com bom raciocínio e não mais precisa de uma ajudante,
ele precisa de uma cuidadora mais idosa, apenas para companhia, seguirei o meu
caminho, sempre lhes farei uma visita, o seu pai é um homem sábio e ainda tem vigor pela vida, é um grande professor e ainda está vivo.
CAPÍTULO III
O SEGUNDO VÔO
Dona
Glória de tudo fez para amenizar a situação, sem sucesso, a bela menina partiu
para o mercado, jornal à mão, dedo ao telefone e logo se encontrava sentada na
sala à espera do futuro patrão.
Cabelos
penteados, blusa branca , blazer e saia quadriculada, sapatos pretos de salto
médio, os olhos bateram com os olhos de
um jovem senhor que adentrou a sala.
A moça
pensou: "quem seria aquele moço? Quem seria? o mesmo
sumiu e só quatro horas depois foi revelado a sua identidade, tratava-se
do seu futuro empregador.
___Nunca
trabalhei neste tipo de serviço, só trabalhei em casa de família, se ficar
estou realizando o meu sonho, comunicarei primeiro à minha mãe, ela ficará
orgulhosa de mim, será a porta de entrada para uma nova vida, farei de tudo
para dá certo, farei de tudo.
O jovem
empregador sentiu no olhar da donzela um futuro promissor, sentiu que aquele
encontro seria um elo importante nas duas vidas, aquele emprego apesar de
simples seria o ponta pé inicial para uma bela e independente carreira, seria o
inicio do orgulho profissional esperado por sua cuidadosa e humilde mãe
que de longe rogava a Deus por dias melhores.
___Menina
o emprego é seu, começa amanhã e faça tudo para aprender, são três meses de
experiência, depois contrato definitivo, lembre-se também que não deverá
encará-lo como emprego para o resto da vida, trata-se de mais uma etapa , como
mais uma etapa da sua vitoriosa trajetória, porém enquanto aqui permanecer tem
que ser com muita competência e responsabilidade.
A menina
tomou conta do ambiente, rápida, dinâmica, amiga, interessada, limpa e
inteligente, tinha muita identidade com o jovem patrão, fez curso, fez preparo
para o vestibular, passou a ser enxergada e a enxergar o padrão como fazendo
parte de sua vida, difícil o relacionamento, mesmo assim conseguiram conviver
por um bom tempo, dias felizes, de alegrias, até quando numa cilada premeditada se
despede do emprego não se desligando do jovem senhor, continuou os
seus estudos e procurou novos rumos, encontrou um novo relacionamento e
honrosamente se afastou definitivamente do seu primeiro emprego formal , começou
uma nova e longa aventura, ingressou na
Escola Superior colando grau 04 anos depois , sempre se superando.
Com a
enxurrada constante de conhecimentos foi perdendo o elã pelo novo companheiro
que parou no tempo , no espaço, os pensamentos mesquinhos e arcaicos o afastou da
guerreira , esta sentimentalmente foi se
isolando, se desinteressando até o
afastamento dos corpos, de pele e do diálogo.
CAPÍTULO IV
O TERCEIRO VÔO
Parte sozinha para novas conquistas e voa para outras plagas à procura de
melhores dias, sempre foi e sempre será assim a luta dos vitoriosos, uma gaivota
de futuro jamais se conformará com as sobras de peixes descartados pelos
pescadores, cada abocanhada de alimentos tem que ter o gosto do suor do seu
rosto .
Da
sua boca sempre se escuta: "O
CEU É O LIMITE ".
A depender da sua força, da sua garra, da sua
vontade num futuro não muito distante o seu sonho com certeza será realizado.
A vida já é uma conquista.
Adolfo
Ricart
Iderval
Reginaldo Tenório 2001
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