quarta-feira, 20 de setembro de 2023

1964, Incêndio na Chapada do Araripe.

 

O Fogo e a Caatinga Blog do Mardem: Itapajé: Queimadas ameaçam a saúde da população e a  integridade da rede elétrica, antenas de rádio e TV

CAATINGA> Incêndios devastam vegetação nativa no Ceará; queimadas não param  crescer - CENTRO-SUL | CENTRO-SUL - Diário do Nordeste 

O homem, a Caatinga e o fogo

Com recorde de queimadas, governo gasta só 18% do orçamento contra incêndio 

O Fogo comendo a Caatinga

Crianças vivem as memórias e o medo dos incêndios no Pantanal

         1964, Incêndio na Chapada do Araripe.   


A caatinga ardia em chamas, o chefe   e  alguns trabalhadores roçavam as ressecadas moitas  de jiquiris e outros    arbustos do semi árido nordeste. 

Do outro lado,   mulheres e rapazolas, coordenados por  sua esposa,  limpavam os aceiros contra laterais da velha estrada carroçal e de chão batido. Retiravam garranchos,  gravetos e  capins desidratados , uma vez que  a caatinga, seca,  tem a mesma combustão da bucha ensopada com gasolina, quase semelhante à queima da pólvora. 

As últimas chuvas datavam de mais de dois  anos atrás.  Barreiros secos,  animais esquálidos e as Asas Brancas a procurarem outras plagas.  Apenas os pássaros e os répteis  mais resistentes  contracenavam com as trêmulas miragens a lamberem o duro, vermelho e ressecado  solo  serrano. 

O verde encontrava-se cinza, o sol queimava a pele, a cabeça, o coração, a mente e a alma dos fortes homens do campo, era mais um período de seca,  sem água,  de fome e de sofrimentos.

Anuns,   carcarás, gaviões e cascavéis à   procura de preás, saguins, calangos, pássaros, besouros, formigas e cupins,  para matar a fome  rodeavam as ilhas verdes  sombreadas  pelos umbuzeiros, cajueiros, facheiros, xique-xiques e mandacarus.

As rajadas de ventos quentes, muitas vezes em redemoinhos, levavam de eito o que encontravam pela frente. Carregavam  penas, ciscos,  folhas, ninhos de pássaros,  restos de gafanhotos, argilas, estercos e tudo  que se encotravam no seu caminho, como se o tempo e a velha Chapada do Araripe estivessem a caducar ou, injustamente, pagando  os seus  pecados.

Num visível processo de desertificação,  as lufadas de ventos  e o mormaço invadiam as indefesas capoeiras, a consumir, impiedosamente, os últimos lampejos de vida.

Pássaros, insetos rasteiros, insetos  alados e até mesmo alguns  répteis eram triturados pelo sol causticante  do meio dia.

A vegetação xerófila, os cabeças de frades, os rabos de raposas e os mandacarus, maltratados pelo escaldante calor,  transformavam a caatinga num cinza transparente, expondo ao sol ardente    os  animais, os vegetais e os recursos naturais,  modificando   o ecossistema.

O céu azul, sem nenhuma nuvem, propiciava a visibilidade do mais longínquo infinito.  O astro rei, o sol,  como se estivesse a metros, consumia  com as suas  labaredas a ressecada e moribunda carcaça da velha Chapada do Araripe.  

Zezinho viu, viveu, apagou fogo e sobreviveu.  A  mente da criança gravou  as dantescas cenas.

O fogaréu vermelho, os estalos dos gravetos  em chamas, indiscriminadamente, cuspiam fumaça, enquanto as faiscantes e incandescentes  fuligens, carregadas pelos ventos, salpicavam a troposfera a espalhar fagulhas  para outras plagas.

Homens, com molambos molhados no rosto,  a proteger as ofegantes narinas e os olhos tracomatosos, movimentam-se  em desespero.  Mulheres com panos e vassouras, de galhos secos, cuidadosamente a varrerem as margens da estrada.  Adolescentes, com cabaças d'agua a matar a sede e  ensopar os molambos  dos apagadores do fogo,  corriam aflitos e  aos gritos com os nervos à flor da pele.   O Zezinho, encravado no coração do furdunço fumacento,  à procura dos pais,  fazia parte do tenebroso cenário, foram momentos de medo, choro, insignificância,  coragem e de reflexão

Foi mais um episódio vivido e registrado na sua existência pueril, mais uma lição da natureza e a certeza que o homem do campo, o homem sofrido do nordeste é forte, resistente e merece respeito.

O menino cresceu, lutou, estudou e envelheceu, porém jamais deixou que a criança agreste, que existe dentro de si, sucumbisse e desaparecesse do seu cotidiano.

Entendeu que os segredos da vida, só sabe  quem viveu, quem presenciou e sentiu.  Traz de lembranças algumas cicatrizes e dois pterígios, frutos dos impedernidos raios solares,   marcas registradas dos povos dos  sertões nordestinos.

 Zezinho fez e faz parte deste tenebroso  universo.  Ele viu, viveu e sobreviveu,  Zezinho é um sobrevivente.  

Como disse o Euclides da Cunha, em "Os Sertões": " O nordestino  é antes de tudo, um forte". 

       É um verdadeiro apagador de incêndios, é um sobrevivente.

Salvador, 18 de Março de 1986

Iderval Reginaldo Tenório

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