A jovem ugandense Phiona Mutesi (Madina Nalwanga) leva uma vida dura. Trabalhando desde pequena, não tem dinheiro para estudar, e muitas vezes passa fome junto da mãe e dos irmãos. Órfã de pai – a Disney continua obcecada por órfãos –, ela não possui perspectivas de melhora. Até descobrir o xadrez, esporte para o qual demonstra um talento impressionante. Rainha de Katwe decide mostrar a trajetória de ascensão de Phiona em meio às adversidades.
A diretora Mira Nair realiza uma típica fábula de superação, com todos os ingredientes necessários ao subgênero. Cada vitória de Phiona no xadrez é intercalada com um novo drama familiar (doenças, acidentes) para causar uma espécie de montanha russa emocional no espectador, entre o constante choro e riso, a esperança e a decepção. A música sentimental se alterna com ritmos alegres, as cores quentes das roupas e acessórios se sucedem às cores frias nos momentos trágicos. Os símbolos, assim como o destino de Phiona, são previsíveis.
O aspecto mais questionável de Rainha de Katwe é o fato de que a empatia com a protagonista não se estende aos ugandenses ao redor. Sim, ela é uma enxadrista capaz de se tornar uma das melhores do mundo. Entretanto, o roteiro pretende vender esse sonho atípico como algo ao alcance de qualquer um: basta tentar, basta se esforçar, basta nunca desistir. A garota obtém sucesso através da persistência, mas o que dizer dos milhares de adolescentes que tentam tanto quanto ela, mas nunca conseguem? Que argumento lógico sustentaria a trajetória de Phiona como probabilidade, diante do fracasso dos colegas ao redor?
O filme, como de costume nas produções familiares da Disney, tende à idealização, sem perceber que a exceção apenas confirma a regra: é muito difícil para uma criança ascender socialmente no cenário retratado. Mas o xadrez é usado como exemplo máximo da doce meritocracia: assim como, no tabuleiro, um peão pode resistir a diversos ataques até se tornar uma rainha, Phiona também pode esquivar as dificuldades e se sobrepor aos outros. A metáfora é óbvia, porém condizente com o didatismo infantil do roteiro. Além disso, o projeto carrega a ingenuidade, ou talvez ousadia, de sugerir que o xadrez possa ser uma modalidade acessível e desejada em toda a Uganda, pela metáfora de superação.
Felizmente, essa miséria cor-de-rosa torna-se mais verossímil graças ao elenco. Lupita Nyong’o está ótima como a mãe da protagonista, assim como David Oyelowo, transbordando ternura em cada cena. Estamos num mundo grosseiramente maniqueísta – os pobres são bons selvagens, os ricos são asquerosos – mas os atores fazem o possível para conferir complexidade aos personagens. A novata Madina Nalwanga também é uma escolha muito apropriada, dotada de um olhar duro capaz de atenuar o sofrimento de sua trajetória.
O roteiro melhora bastante quando, na segunda metade da trama, acena para a possibilidade de o sucesso subir à cabeça da enxadrista. Entre as várias lições ensinadas pelo filme – a persistência, o amor à família, o desapego aos bens materiais etc. – encontra-se também a importância da humildade. Rainha de Katwe constitui um manual de grandes virtudes, aplicadas a uma realidade convenientemente distante da norte-americana. É uma catequese tão eficaz quanto desprovida de sutileza.
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