quarta-feira, 18 de julho de 2012

A CALÇOLA DA TIA ZIZINHA

Prosa literária: A calçola de tia Zizinha

                                                             


                                         
                                                 

                       


                                                              

                               A calçola de tia Zizinha

           
Apesar de franzina, tia Zizinha era setentona valente, de semblante calmo, de voz firme, olhar seguro. Impunhava respeito. Nem só seus sobrinhos, mas todos a chamavam de Tia Zizinha. Era ela quem organizava as quermesses, as partidas de futebol, as torcidas organizadas e as festas do milho. Quando jovem, ganhou concursos de Rainha da Paróquia. Embora pequena, sequinha, fora um verdadeiro furacão, ou um vulcão em atividade.
Havia chegado dezembro de 1978, e a cidade se achava em chamas. A população, duplicada, devido à presença dos visitantes para a maior vaquejada da região. Cavalos em todos os recantos e baixios. Bois, espraiados pelos currais. Caminhões e caminhonetes enchiam as ruas de chão batido.  Carros de som martelando ouvidos, canções sertanejas aproximando os apaixonados, rodas gigantes, canoas, tiro ao alvo e muita comida regional. Tudo idealizado, organizado e executado por tia Zizinha.
O relógio marcava 12 horas, e a conversa rodeava a farta mesa do almoço. O papo solto campeava na imensa sala da amada tia. Eu, sempre tirado a conversador, iniciei uma discussão sobre a vida, sobre a grandeza do universo, sobre a importância do ser humano e o quanto de orgulho possui uma certa classe social, apesar da insignificância. Depois da longa prosa filosófica, em tom de deboche, falei para tia Zizinha:
- Tia, a senhora não vê, neste mundão de meu Deus, esses indivíduos que se dizem importantes, bonitos, orgulhosos, cheios de soberbas etc.? Eles e todos nós somos uns bostas, tia Zizinha. Somos uns merdas. Aliás, tia Zizinha, nós e bosta somos a mesma coisa: basta um mosquito, uma bactéria, um vírus, e lá estamos todos nós debaixo do chão. Veja tia, nós não somos nada. Basta um dia sem um banho, e lá está a inhaca.
Tia Zizinha parou, pensou e, de imediato, me falou:
- Nós não, meu filho. Me tire dessa. Vocês, sim. Vocês, que estudaram, se diplomaram, moraram na capital e são doutores, podem se considerar bostas. Podem se achar uns merdas, porque eu ainda sou um pum: um pumsilencioso, um pum sem odor, isto é, um pum fajuto, escondido e que não tem direito a voz. Pra você ver, nem zoada o coitado faz. Eu sou um projeto de bosta, ainda falta muito, e nem sei se um dia serei. Acho que sempre serei um prenúncio.
Após gostosas e efusivas gargalhadas retruquei:
- É, tia, eu não sei por que tanto orgulho, tanto orgulho besta, pois todo mundo do mundo tem por trás uma bunda: umas batidas, outras avantajadas, mas todos têm. Todos, todo mundo do mundo, tia, tem uma bunda.
A tia não contou conversa. Com o dedo em riste, abriu a boca e, em voz alta, advertiu-me: 
- E ainda por cima, meu filho, ainda por cima, furada. 
                                      *****
Agora, voltando à vaquejada. Estávamos num pôr do sol de domingo. Tia Zizinha, no comando da festa, de vestido vermelho-rodado, chicote de couro cru na mão direita, chapéu de massa na esquerda, e de bota. Era uma verdadeira amazonas. Ao redor, via-se a pista limpa, rapazolas pendurados nos mourões da cerca de madeira, moças de minissaias saboreando maçã do amor, velhos e crianças nas arquibancadas de tábuas agrestes. As cancelas e os portões fechados. Tudo pronto para a abertura do evento.
Sob os aplausos da plateia, entra tia Zizinha. Sozinha, descontraída e envaidecida com as salvas de palmas. Era a toda poderosa, a rainha da festa. Ali estava a Tia Zizinha em carne, osso e outros predicados. A plateia gritava em coro e sincronizada: “Tia Zizinha!”. Aquele ato poderia se chamar de dia de glória, de labuta, de dedicação. De coroação.
De repente, não se sabe de onde, surgiu um boi preto, de mais de metro de largura. De ancas largas, pontudo, bem pontudo, com um aro de cobre nas narinas, cinta de couro apertada no seu vazio, olhos avermelhados, bufando que só maria-fumaça. Com os cascos, queria furar o chão. As patadas sobre o solo e o poeirão que subia chamaram à atenção do público. O animal não contou conversas nem gritaria: partiu pra cima de tia Zizinha.
Imediatamente, a tia procurou os portões. Todos lacrados. Ela não titubeou: com seus finos gravetos, quis fazer bonito. Levantou os braços, mostrou o belo chapéu de massa e rodou o chicote de couro cru sobre a cabeça. Quis parecer que tudo fora programado, que aquilo fazia parte do espetáculo. Correu para um lado, pulou para o outro. Gritou como vaqueiro: “Vai boi mandingueiro, boi marruá, boi bufão”. Procurava enganar o valente bizão. Assim, conseguiu chegar até a cerca. Mas chegou tarde: sentiu, na sua traseira, uma cravinetada dupla, ou um impulso veloz, compacto, agudo e muito forte nos atrofiados glúteos. Os chifres lhes acertaram em cheio, decolando como um teco-teco. A manobra lhe arrancou a saia, as anáguas e a combinação. De quebra, trouxe, como troféu, a sua vermelha calçola de brim, fundo duplo de forro grosso e acinturada com cordões de rede.
Com a setentona jogada contra a cerca, e as saias lhes cobrindo as enfurecidas narinas, além da vista vedada pela calçola, o boi ficou acuado. Perdeu o rumo. Rodava como um peão, à procura da presa. O povo gritava, e o boi ficou perdido, desorientado.
Apesar do ataque, o boi perdeu a batalha. Tia Zizinha levantou garbosamente o machucado corpo. Ao sacudir a poeira, não teve outra escolha: desfilou só de califon e com as vestes de cima três dedos abaixo dos seus dois murchos maracujás. Com a traseira batida e dois vergalhões vermelhos indo até as costas, a tia corria elegantemente para escapar do esbaforido boi.
Foi o espetáculo do ano. A plateia foi ao chão: os gritos ensurdecedores contagiaram os presentes. Um delírio. E a tia Zizinha chegou ao estrelato, ao dia de glória e de inglória. Entretanto, daquele dia em diante, nunca mais a tia organizou festas. Passou a detestar vaquejadas e, como vingança, comprou o boi bufão, realizando o maior churrasco aberto de minha terra. E lá não compareceu.
                                           
                                 Iderval Tenório



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de alfredopessoa13  1 ano atrás  606 exibições



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João Batista do Vale nasceu em Pedreiras MA em 11 de Outubro de 1934. Desde pequeno 

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