


O GARBOSO CAVALO
Sertão do Ceará, 1915 .
Um almocreve de meia idade negociava nos cafundós e nos grotões
da esturricada Serra do Araripe, divisa do Ceará com Pernambuco.
Possuia uma parelha de animais, um belo equino, bom de marcha, e um
musculoso muar, bom de carga. Longas eram as distâncias e belos os
lugares percorridos na lida diária, o muar para as cargas, o equino
para os passeios.
O garboso cavalo
sempre nas festas, nos namoros, nas comemorações e nas grandes corridas,
era com orgulho que o belo animal desfilava naqueles sertões. Bem
tratado, bem alimentado, bom capim, boa alfafa, excelente milho e tortas
de caroços de algodão, era vida de rei.
Impecáveis
arreios e vistosos ornamentos, manta vermelha, sela macia, peitoral
ornado com estrela de metal, rédeas e alforjes de couro de
carneiro, rabicho trançado com fio de seda, boqueira e estribos polidos, e de
pura prata, vivia épocas de
glórias.
Orgulhava-se quando nas paragens recebia preços e
apreços, recebia avaliação, elogios e jamais o cavaleiro pendia para
negociação. Era um animal faceiro, elegante, orgulhoso e cheio de
brios, na sua garupa as mais belas donzelas e as mais macias das
nádegas. Era motivo de festas onde chegava com os seus passos, galopes e
trotes numa demonstração de força e virilidade, qualidades estas
que lhe credenciavam a cruzar semanalmente com uma bela égua ou uma
formosa e elegante asinina, assim era o pomposo e pabo cavalo cheio de
garbo.
O muar coitado, a subir ladeiras e a cortar
caminhos, dois a três sacos na pesada cangalha pregada no lombo,
cabresto de cordas de croá, rabicho de agave, duas puídas viseiras de
couro cru em cada lado da cabeça, obstruindo, tapando, abortando,
escurecendo e a impedir a visão lateral, no pescoço um pesado chocalho
para a sua identificação.
Nos fins de semana, durante o
dia, quatro cambitos para o carregamento de lenha e feixes de
canas, à noite dois caçuás para o transporte de frutas, garrafas e
diversas mercadorias na festas do lugarejo, era uma mercearia ambulante, o ganha pão do almocreve.
Como pastagem capim seco, relvas, palhas de milhos encontradas nos arredores e nos
monturos das casas. Não sabia se vivia para comer e trabalhar ou só
teria comida se trabalhasse.
Longas eram as conversas
entre os dois animais. O muar piado nas duas patas direitas, triste e
a lamentar, porém conformado por lhes sobrar a vida para o trabalho;
o outro, solto pelos terreiros, falante, garboso e risonho; ambos
confabulavam sobre as suas vidas, as injustiças e quão ingrata era a
vida para um deles, a diferença era exorbitante, era de fazer pena e foi
assim durante muitos anos, um sempre sorrindo e a gargalhar, o
outro... o outro só Deus para socorrer.
Como o tempo é o
pai, o aconselhador e o diluidor dos sofrimentos, e a esperança a
mãe de todos os animais, uma década se passou, os dois viventes
sempre a dialogar.
Com a falta das chuvas, foram
escasseando as vendas e aumentando as despesas, motivo mais do que
suficiente para o almocreve diminuisse os momentos de festas e de
alegrias. Primeiro se desfez dos belos arreios, diminuiu a compra de
alimentos especiais e como necessitava aumentar o volume das cargas
passou a utilizar os dois animais na lida diária, os passeios
recreativos do equino passaram a ser coisas do passado.
O
belo e orgulhoso equino passou a andar na vala comum, lado a lado com o
muar, a garbosa sela foi substituída por uma cangalha, um saco de cada lado
e o dono escanchado no meio. Desta vez contando os passos, pulando
grotas, subindo e descendo ladeiras. Na ida produtos da lavoura, na
volta especiarias para abastecer as bodegas da região: Querosene,
peixes salgados, açúcar, café e outros mantimentos, com o novo ofício
desapareceram as belas éguas, as formosas asininas e os saborosos
manjares. O equino passou a sobreviver nos grotões e nos monturos do
esturricado sertão.
O muar continuou a sua batalha,
agora como coadjuvante, apenas como complemento de cargas. Quando o
produto era pouco ficava a pastar, a perambular pelas capoeiras à
procura de uma relva mais hidratada, vivia a pensar na sua atual e
inútil vida. Costas batidas, boca mucha, dentes falhos, amarelados,
desgastados e com raias escuras. Bicheiras no lombo, espinhaço
pelado, cascos rachados e juntas calcificadas, sobrevivia a perambular
caatinga adentro. Como era do trabalho, se sentia um inútil e entediado
mergulhou no mundo da tristeza.
O velho equino fazia a vez do muar
nas feiras livres dos vilarejos serranos. Dois sacos, o dono escanchado
no meio da cangalha e o filho na garupa, subia e descia os penhascos
do Araripe, já não possuía belas boqueiras de prata.
O
rabicho de seda fora substituído por um de cordas a cortar a borda
anal. As cilhas, agora de couro cru, com suas grosseiras fivelas a
lhes causar mossas na barriga e a traumatizar os bagos aposentados. A
força era agora a sua maior virtude, força para não sofrer com as
pontiagudas esporas que tangenciavam os órgãos genitais, muitas vezes
ferindo-os quando desacertava os passos, fruto dos janeiros acumulados e
da perda da massa muscular.
A vida endureceu
para o faceiro e garboso animal, trouxe à memória os momentos de
bonança ao lado do zeloso patrão nos tempos das vacas gordas, das
chuvas, das farturas e dos grandes bailes. Olhava para os lados e não
mais enxergava os pomares verdejantes do caminho, pois os tapas olhos
laterais do muar, agora encontravam-se na sua cabeça, vedando os seus
olhos, limitando a visão.
O
velho cavalo não mais participava dos
acontecimentos e nem das quermeces, passou a ser um animal de cargas,
puramente para comer e para o trabalho, não tinha direito a pensar.
Seguia a dura e pétrea regra, obediência sem contestação, vivia silente
aos puxavancos do puído cabresto que lhe cortava as moídas narinas,
do rabicho que magoava o tronco da calda e a borda anal, das cilhas que
feriam a barriga, as virilhas e machucavam os inúteis bagos, o animal
vivenciava a mais espúria entidade criada pelo dominador, o mais baixo
golpe sofrido por um ser vivo, obedecer sem contestar, vivia a mais
degradante forma de vida, a escravidão.
Os três foram
minguando. O esquálido muar sem trabalho, esquecido, menosprezado,
deprimido e abandonado foi requisitado pelos asiáticos para a produção de charque. O
faceiro equino, agora não mais belo, sem a força da juventude, com a
estima em baixa caiu no ostracismo. Calda imóvel a proteger o fim dos
intestinos, esfíncter este que sofria compressões musculares
periódicas ao menor grito. Relinchos abafados, olhos sempre para o chão,
dentes desgastados, puídos e rentes às gengivas, musculatura
minguada, pele áspera e pelos ressecados. Sem força, sem brio e sem
pernas foi substituído por sangue novo, mergulhou na solidão. Não mais
requisitados ao trabalho se embrenhou nos carrascos, entrou em banzo e nunca mais soube
do seu paradeiro, sumiu.
O cavaleiro em crise e em
desacerto envelheceu. Sem os seus amigos e provedores animais, com a
chegada do progresso, dos bulidos das motocicletas e dos motores
mergulhou no esquecimento e na solidão da vida. Os dias
ficaram mais longos, a falta de afazeres lhe consumiram os brios e a
cidadania, caiu no esquecimento.
De resto, com o exodo e à procura da
sobrevivencia, os deseducados filhos, os sofridos netos e os demais
descendentes migraram para as cidades a fim de alimentar, como lenhas verdes, as grandes
metrópoles, ora na construção civil, ora na desconstrução da
cidadania e ora a forjar uma nação servil, sem rumo, sem
prumo e sem paradeiro. Em terras estranhas, estes abandonados brasileiros batalham, lutam e
sobrevivem apenas o presente. São seres vivos sem esperanças de futuro tais quais o sofrido almocre, o garboso equino e o incançável muar, muitos terminam mergulhandos nos mares dos desvios de condutas.
Iderval Reginaldo Tenório
22 de Setembro de 2025
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