Histórias que minha mãe contava, ano 1964.
O nordeste saia de uma seca 1963/1964. O
abandono do Estado era geral. O voto de cabresto era a regra. Esta
história ela contou em 2004, aos 90 anos.
O FORJAMENTO DE UM HOMEM
Contava minha mãe, que numa delegacia encontrava-se preso um jovem de 18 anos de
idade e levava surras diariamente. Diziam os seus algozes, que eram sovas
corretivas e necessárias para aqueles que se apoderam do que é dos outros.
Certa manhã, o menino
chamou o delegado, suplicando, pediu a presença de seus pais, principalmente da
sua mãe.
O delegado,
após relutâncias, resolveu atendê-lo. Providenciou e fez chegar até o presidiário
os seus genitores.
Chegaram,
foram ao delegado e depois adentraram à
cela do infeliz adolescente. A mãe, com um puído lenço na cabeça e um
saco com algumas maçãs, o pai com um boné surrado, que ainda se via a
insignia de um veterano político. Em respeito aos pais, o delegado
informou que se retiraria. O
diálogo era familiar.
Num
rompante incompreensível, o jovem falou para o delegado
que aquela atitude não era a desejada. Inclusive, queria que
convocasse todos os soldados para presenciar aquela visita. Quando todos
os seus algozes encontravam-se na sala, o presidiário começou o seu
relato
Sentado, voz trêmula e baixa, olhos marejados e moralmente abatido,
lamentou a sua situação, o seu estado educacional, a sua personalidade e os
conceitos sedimentados em sua mente, todos aprendidos e praticados durante a convivência com os pais.
De repente, mais do que de repente,
levantou-se, arregalou os grandes olhos, trancou a cara e com o dedo em riste,
apontado para os pais, vociferou:
"velhos moleques, safados,
descarados, desonestos e irresponsáveis
vejam como me encontro hoje"
O delegado fez menção de intervir. Achou muita agressividade para com os seus pais. O jovem retrucou:
"não,
seu delegado; não, senhores
soldados. Eu preciso falar, eu preciso dizer algumas coisas. Vejam o
filho que botaram no mundo e como criaram, vejam como me encontro:
preso
como se fosse um bicho selvagem, alheio à socialização e à cidadania".
Fez uma pausa e continuou:
"velhos levianos, o que
faziam quando eu chegava em casa com carrinhos e brinquedos não comprados pelos
senhores, objetos que os senhores nem sabiam de onde vinham. O que faziam quando
eu saía, dizia que ia estudar e os senhores nunca, nunca foram até a minha
escola. Não sabiam onde eu estudava, desconheciam as minhas notas e nunca foram conversar
com os professores. Aliás, nunca se sentaram para
me orientar?"
Parou, respirou e com o olhar distante deu continuidade ao seu relato. Desta vez mais compenetrado:
"aos 14 anos, seu delegado, quando não dormia em
casa dizia que dormia na casa dos amigos e os dois nunca questionaram quem
eram, onde moravam, o que faziam e quem eram os seus pais.
Comecei a trazer
para casa bicicletas, relógios, brincos, roupas bonitas e até produtos alimentícios. Eles aceitavam, ficavam satisfeitos e não
perguntavam como eram adquiridos. Assistiam tudo quanto era
porcaria na televisão, achavam correto e exemplar: filmes de assaltos, roubos,
sexos, pilantragens e falcatruas. Votavam em homens reconhecidamente desonestos, corruptos e mentirosos. Homens
desmascarados pela mídia e aplaudiam".
O menino
parava para respirar e pausadamente continuava o seu relato, um relato verídico e consciênte:
"quantas vezes chegavam os cobradores, os dois escondiam-se nos fundos e mandava eu falar:
diga que não estamos, que fomos trabalhar, que não sabe a hora que
chegaremos".
O delagdo ofereceu água para todos e o menino disparou a falar:
"seu
delegado, eu nunca esqueço de um fato muito vergonhoso e deprimente.
Um dia
cheguei em casa, já estava com 14 anos de idade. Minha mãe me disse,
pule
o muro de seu Idelfonso, o vizinho do 44, pegue uma galinha. O meu pai
completou que eu deveria ter muito cuidado. Que colocasse uma mão no
bico e a outra nas asas para não fazer zoada. Que fosse cauteloso nesta
conduta. Tirei as sandálias, coloquei uma num braço e a outra no outro,
pelas correias de borracha. Pulei o muro. Como se fosse um gato,
sorrateiramente, peguei a
galinha, uma mão no bico e a outra nas asas para não perturbar as
outras e nem seu Idelfonso, como me ensinou o professor meu pai.
Voltei para casa. Minha mãe e meu pai já estavam com a água no fogo para pelar a
galinha. Pelaram, botaram as penas num
saco e mandaram jogar lá do outro lado da rua, lá embaixo, bem longe, para que
não houvesse nenhuma desconfiança por parte do vizinho. Comemos e no
outro dia seu Idelfonso, inocentemente, foi até a minha casa. Estava eu, meu pai e minha mãe. Senhor Idelfonso
indagou se haviam visto uma galinha voar para o seu quintal e eles, de imediato, na bucha foram logo
dizendo que nem de galinha eles gostavam. Aqui, há muito tempo que não se vê uma galinha. Fiquei
impressionado com tamanha mentira, fiquei de boca aberta e achava que era
certo".
O
menino, com esta afirmativa, petrificou todos os componentes da sala.
Todos ficaram cabisbaixos. Recomposto, olhos nos olhos do delegado, o
menino dirigiu suas palavras:
"seu
delegado, eu mereço apanhar, eu mereço surras e mais surras, pois
naquela
época se os meus pais tivessem boas atitudes, me corrigido, me dado umas
boas correções, até mesmo corretivas surras, surras sem raivas, surras
merecidas e se falassem a verdade, tenho
certeza que não seria o indivíduo que sou.
Hoje
sou um moleque, um sem futuro, ninguém me respeita, um marginal. Hoje
não compreendo o que é ética, vivo à margem, faço parte da escória da
sociedade. Seu delegado, pode bater. Eu mereço. Aos senhores velhos desequilibrados vou
perdoar, porém sumam de minhas vistas, desapareçam, puxem de minha vida, velhos
irresponsáveis."
O
delgado e os soldados, após este relato, foram abaixando a cabeça,
diminuindo de tamanho, atônitos e pálidos levaram os lenços até os
olhos,
enxugaram os prantos, alguns foram saindo e o delegado em voz trêmula
disse:
"soldados, o homem tem cura, não é tão desequilibrado como se pensava, o garoto
tem jeito, não foi bem orientado, o problema foi no seio familiar. Menino, a
partir de hoje terás pai, mãe, irmãos e família. Terás um lar."
Esta história minha mãe contava para
justificar os tratamentos duros que muitos pais dão a seus filhos, notadamente nos grotões nordestinos na formação
de um homem de bem, principalmente no seio
familiar e no forjamento de um homem para a sociedade.
Contava que era para os pais não ficassem traumatizados pelos
ditames modernos, pelos conceitos psicológicos impostos aos pais e que muitas vezes
são insuficientes, proporcionando desvio de comportamento, conduta e ética.
Enfatizava minha mãe que primeiro o diálogo, depois o diálogo, continuar com o diálogo e por derradeiro o
diálogo. Na sua ausência, o amor dos genitores e corretivos mais duros, isentos de raivosidades.
Um dia os filhos agradecerão, e como agradecerão.
Antonia Reginaldo da Silva
Nascida em Palmeira dos Índios nas Alagoas em 1914
Falecida em Juazeiro do Norte, Ceará em 2013.
Para todos os familiares continua viva
Salvador, 05 de julho de 2023
por/Iderval Reginaldo Tenório
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