Última entrevista de Carlos Drummond de Andrade
Em 1987, Carlos Drummond de Andrade foi tema de escola de samba, mas sua vida nunca esteve tão distante de um carnaval. No inverno daquele ano, o poeta enterrou no Cemitério São João Batista a pessoa que mais amava no mundo. A metástase finalmente venceu a filha Maria Julieta. Abatido, não pôde percorrer a alameda que levava ao túmulo. Ele se sentia injustiçado – achava que era ela quem deveria fechar seus olhos.
Só doze dias separaram Carlos de Julieta no fim. Ataque do coração. Foi para o hospital levado às pressas. Lá, o neto acalmava o avô e dizia que logo ele estaria de volta à Rua Conselheiro Laffayete. Carlos riu e deu uma banana. Morreu pouco antes das nove horas da noite de uma segunda burocrática e foi carregado para junto da filha no mesmo cemitério, no Rio de Janeiro. Assim como ele próprio anunciara para a atriz Cacilda Becker, a morte emendou a gramática. Morreram Carlos Drummond de Andrade. Eram muitas faces dentro de um poeta só. VICTOR VIEIRA
Entrevista concedida a Luiz Fernando Emediato, em julho/agosto de 1987, publicada no Estado de S. Paulo dois dias antes de sua morte.
Emediato – O senhor tem boas recordações da sua Infância?
Drummond – Eu tenho, sim. Eu vivia em um meio rural em que criança gozava de grande liberdade. O cenário era vasto, e tanto a cidade quanto os arredores, o campo, nos davam uma grande liberdade.
O senhor teve uma infância feliz?
Drummond – Não sei se pode chamar de feliz a infância, porque há sempre aqueles traumas da falta de entendimento com os adultos, o mistério da vida que a gente não decifra. Eu acho que uma criança pode ser tão feliz ou tão infeliz quanto um adulto.
Qual sua recordação infantil mais marcante?
Drummond – O cometa Halley. É a lembrança mais profunda, pois realmente foi deslumbrante. Eu tinha sete anos. Eu não estava esperando aquilo, não estava preparado, vivia na rotina, brincando…
O senhor brincava de quê?
Drummond – De plantar bananeira, aquele brinquedo de montar no outro e sair correndo… Como é que chamava aquilo? Pular carniça. E de gata parida. Você sabe o que é gata parida?
Não.
Drummond – A gente sentava num banco, cinco ou seis sujeitos se espremiam, para ver quem caía do banco primeiro. Era bom, era gostoso. Naquele tempo não tinha gelo, eletricidade, cinema, automóvel. Mas a gente vivia muito bem e não sentia falta de nada. Hoje, se a televisão for suspensa, a criança morre de desgosto.
O senhor lembra quando viu o gelo pela primeira vez?
Drummond – Minha experiência com o sorvete foi trágica. Não sabia como tomar sorvete e meu irmão, que já era mais civilizado do que eu, tomou com a maior galhardia. Eu, não; eu metia o dente no sorvete e sentia aquela dor horrorosa (risos). E aquela humilhação, porque meu irmão não queria que eu demonstrasse que não sabia tomar sorvete, e eu repelia o sorvete, e ele falava: “Toma, desgraçado!” (risos).
O senhor tem alguma lembrança amarga da infância?
Drummond – A incompreensão. Éramos seis irmãos e havia dificuldade de se entender, entre todos. Só o meu irmão mais velho, depois de mim, é que era meu companheiro. Eu era fraco, fraquinho, e ele tomava a minha defesa, mas quando acabava aquilo ele baixava em cima de mim também. Era uma guerra.
E as namoradinhas?
Drummond – Eu tive várias namoradas. Mas o namoro no meu tempo era à distância. Uma menina morava num sobrado, no segundo andar, e eu namorava da rua, da esquina, olhando assim pra ela. Um sorriso era um prêmio, uma gratificação enorme. Não havia contato pessoal. Depois, quando jovem, em Belo Horizonte, eu sentia muito a dificuldade de aproximação com as moças. Era proibido olhar para as mulheres. Na praça da Liberdade, você conhece bem, as moças andavam pra baixo e pra cima, e os rapazes ficavam olhando. Mas era só isso. Elas iam acompanhadas ou da mãe ou de um irmão, e o irmão usava bengala, que era um instrumento muito poderoso, que impedia que a gente tentasse qualquer liberdade maior – um beijo, por exemplo. Quem é que podia beijar uma moça? Era um problema dificílimo.
Consta que o senhor foi expulso de um colégio. É verdade?
Drummond – Eu estudei dois anos no colégio dos Jesuítas, em Friburgo, e era considerado um dos melhores alunos da classe, mas descobriram um dia que eu era um elemento nocivo.
Nocivo, por quê?
Drummond – Talvez fosse uma tentativa de manifestar independência de espírito. Eu fui expulso de uma maneira muito arbitrária, sem direito de defesa. Fizeram uma reunião pública e, de surpresa, o próprio padre reitor declarou-me indigno, diante de todos, de permanecer naquele estabelecimento. “Ajunte suas coisas e saia da sala”, disse ele. Eu tinha catorze, ou quinze anos. Foi terrível. Fui confinado num quarto, não podia nem dormir com os outros, e tive de sair de madrugada, sem me despedir de ninguém.
Isso marcou muito o senhor, parece.
Drummond – Foi terrível. Tomei o trem com moral baixíssimo. Havia no trem uma viúva toda de preto, com duas meninas também de preto, e uma delas olhou para mim e sorriu. Esqueci completamente a minha desgraça e fiquei namorando a garota, mas elas desceram numa estação e meu moral voltou abaixo do zero, até chegar a Belo Horizonte.
Como o senhor explicou essa história para o seu pai?
Drummond – O jesuíta é muito falso, muito hipócrita. Neste particular foram generosos comigo, não disseram a verdade a meu pai. Apenas aconselharam que, por motivos outros, me transferisse de escola.
Mas o senhor contou a verdade para seu pai?
Drummond – Não. Meu pai era um homem muito reto, mas sei lá se ia aprovar ou não…
Ele era fazendeiro em Minas?
Drummond – Sim. Era considerado um homem muito rico, porque todo mundo era pobre no interior de Minas. Então, qualquer pessoa que tivesse um palmo de terra era um afortunado.
Como era seu relacionamento com ele?
Drummond – Não foi fácil, não. Meu pai foi incumbido pela sociedade doméstico-conjugal de ser o juiz, o justiceiro. Minha mãe era aquela doçura e, quando via que estávamos nos comportando mal, apelava para meu pai, que tomava a atitude do homem que castigava. Mas a gente nunca aprendia. Só muito mais tarde entendi que ele era obrigado a fazer aquilo. Custei a compreender isto.
Que tipo de castigo ele dava para os filhos?
Drummond – Prendia no quarto, cortava sobremesa… De vez em quando dava uns tapas. Uma vez achei que ele ia me bater e levantei a mão para não apanhar na cara e ele ficou estarrecido, pensou que eu ia bater nele. Meu irmão, que era meio safado, então gritou: “Você é um parricida”. Eu respeitava muito meu pai. Tenho muita saudade dele, muita saudade mesmo.
E a sua adolescência, como foi?
Drummond – Tumultuada. Depois da expulsão do colégio jesuíta fui morar em pensão, em Belo Horizonte. Tive a sorte de encontrar os melhores amigos da minha vida.
Faziam multa farra?
Drummond – Tomávamos cerveja no Bar do Ponto. Você lembra do Bar do Ponto?
Não.
Drummond – Sim, não é do seu tempo. Eu sou uma múmia, bem! (risos) O Bar do Ponto não existe mais. Quando sobrava algum dinheiro a gente esticava na zona, na Rua Guaicurus, tinha lá um restaurante onde a gente ceava um famoso bife a cavalo. A maior delícia.
O senhor se lembra de sua primeira experiência sexual ali na Rua Guaicurus?
Drummond – Não guardei não. Isso nem vale a pena contar… Mas não foi na rua Guaicurus. Mas, sabe, não é assim tão interessante, todo mundo tem lá um dia a sua primeira vez e fica meio espantado, descobre o mundo.
O senhor bebia muito?
Drummond – Não, só uma cerveja. E Martini… E o Madeira leve, uma espécie de vinho do Porto.
E droga, havia?
Drummond – Havia a cocaína. Eu experimentei uma vez e não achei graça nenhuma, não senti nada. Era falsificada, uma espécie de bicarbonato. O que a gente apreciava muito era o éter. E também o lança-perfume, mas só no carnaval. Eu gostava muito de uma frase sobre droga que dizia assim: “A cigarra gelada do éter”. De fato, dava uma sensação de cigarra cantando. Zunia. Lançava o lança-perfume no próprio lenço e eu sentia aquela vibração, aquela fúria.
É verdade que naquela época, anos 1920, em Belo Horizonte, o senhor e o Pedro Nava tocaram fogo numa casa?
Drummond – É verdade. Metemos fogo num varal de roupas dentro da casa de umas moças, as Vivacquas, e o fogo se alastrou. E então eu disse ao Nava: “Vamos desistir dessa bobagem”. Demos a volta, apertamos a campainha. As moças queriam saltar. Ajudamos a apagar o fogo, como heróis. Um guarda-civil tinha visto tudo, e no outro dia fomos chamados à delegacia, mas o delegado era casado com uma parenta minha e eles abafaram a história. Surgiu a versão de que tínhamos tocado fogo na casa para vermos as moças de camisola, quando elas fugissem. Foi pura farra, sem nenhuma intenção.
Diz a história que o senhor também tocou fogo num bonde. O senhor por acaso era um incendiário?
Drummond – É, talvez eu tivesse essa vocação, sem perceber. Mas o caso do bonde foi um simples protesto de estudantes. Tinham aumentado o preço dos ingressos do cinema para 2 mil réis, e aquilo foi considerado um escândalo. Não podíamos aceitar. Decidimos então atacar os bondes. Afastamos o motorneiro – não sei como conseguimos força para isso – e tocamos fogo nele. Até um pedaço do bonde eu consegui levar para casa, como um troféu (risos). A vida em Belo Horizonte era uma mesmice.
Parece que sua adolescência foi muito divertida. Metendo fogo em casas, se divertindo com a polícia…
Drummond – Foi divertida, sim. Ao mesmo tempo havia a preocupação literária. Todos nós escrevíamos. Nós nos reuníamos toda noite, cada um mostrava seu trabalho, e os outros criticavam com muita serenidade, com muita objetividade. O Milton Campos, o João Alphonsus, o Nava…
O senhor teve na juventude alguma paixão desmedida, além da Greta Garbo, sobre quem escreveu uma crônica?
Drummond – Você está explorando muito a minha vida, e ela é muito pouco interessante.
Vamos falar de literatura, então.
Mas o senhor não acha que sua obra pode ter sido determinada pelo que aconteceu na sua infância, na sua adolescência e, depois, na sua maturidade, essa carga toda de experiência de vida?
Drummond – A minha obra literária foi determinada pela circunstância de eu ser mineiro. Mineiro do interior de Minas, uma região de mineração, onde a dificuldade de comunicação era maior do que em outras zonas do Estado. Nós vivíamos ilhados. Éramos fechados por necessidade e por contingência
O senhor acha então que Minas é um lugar especial?
Drummond – Você é mineiro, não é? Minas foi um lugar especial. Hoje não é.
O senhor foi autodidata, não é? Isso por acaso o limitou em alguma coisa?
Drummond – É. eu fiz maus cursos. Tenho apenas o terceiro ano ginasial. Estudei Farmácia numa escola livre. Eu não tenho uma formação cultural básica, não é?, que possa ser caracterizada como de um escritor de nível médio. Um escritor consciente de seu ofício deveria ter uma formação cultural bastante boa, como de conhecimento de literaturas estrangeiras. A minha formação foi mais francesa.
Será que sua poesia teria sido diferente se o senhor tivesse tido uma formação cultural e filosófica mais profunda?
Drummond – Não sei. Uma grande parte da cultura que a pessoa absorve para uma carreira literária é para não ser consumida, é só para servir de pano de fundo. Na realidade, a gente obedece a um impulso interior, à capacidade de imaginação que nós temos. Porque, se fôssemos nos prender àquilo que lemos ou aprendemos, não escreveríamos nada. Todas as obras-primas já foram escritas. O contemporâneo não conta, a meu ver.
O senhor consegue explicar essa emoção que o leva a escrever intuitivamente?
Drummond – Eu sou inteiramente partidário da ideia da inspiração. Seja banal, antiquado, mas sem inspiração não se faz nem se escreve nada. A pessoa adquire a técnica de se comunicar e tem facilidade, como eu tenho, de escrever coisas. Mas aquela coisa profunda que vem das entranhas da gente, isto é inspiração.
Que é que o senhor sente no fundo do coração quando está criando?
Drummond – Quando estou criando um poema eu sinto uma certa exaltação física, um certo ardor (Pausa). Não, não exageremos; também não é um estado de transe, de levitação. Mas sinto uma espécie de emoção particular que me impele a escrever. E isso me surge até em horas imprevistas, diante de um espetáculo, de uma criança dormindo na rua, um cachorro mexendo com o rabo, uma moça. Qualquer destas coisas pode provocar na gente um estado poético. Ao lado disso, há o lado crítico, depois.
Os seus escritos têm dois lados: um é humorado, alegre, lúdico. O outro é amargo. Qual dos dois é o verdadeiro?
Drummond – Eu acho que o mais sincero é o lado amargo, não é? Eu sou uma pessoa inteiramente pessimista, cética. Não acredito em nenhum valor de ordem política, filosófica, social ou religiosa. Acho a vida uma experiência que tem de ser vivida, mas que se esgota e termina, acabou, não tem nada.
Vale a pena viver, apesar disso?
Drummond – Claro, porque deram a você essa oportunidade.
Ou viver é só uma fatalidade?
Drummond – É, porque você não pediu, você foi chamado. Então é uma fatalidade neste sentido. Então procure viver o menos desagradavelmente possível.
O senhor acredita em Deus?
Drummond – Não.
Só isso? Não?!
Drummond – Sou rigorosamente agnóstico. Uma pessoa que não pode afirmar a inexistência de Deus, da mesma maneira que não pode afirmar a existência. Não tenho, na minha capacidade intelectual, condições para afirmar que Deus existe. E, a não ser os teólogos, duvido que alguém mais tenha capacidade para isso. Mas eu passo muito bem sem Deus. Não me dá remorso e foi uma conquista da minha vida, a qual agradeço em parte aos meus queridos jesuítas. Porque eles é que começaram a fazer desabar em mim a ideia de Deus como um Todo-Poderoso que regula a vida e a morte das pessoas. Mas respeito profundamente qualquer forma de religião.
E a morte, Drummond?
Drummond – Eu estou encarando, não é? Outro dia um amigo meu perguntou a outro: “Você pensa na morte?”. E ele respondeu: “Não penso em outra coisa”.
O senhor brinca muito com a ideia da morte?
Drummond – Desde menino que eu penso na morte. Sabe, eu queria ser cremado, mas não existe crematório no Rio, a Santa Casa, que vive do negócio de vender túmulos, impede a criação de crematórios. Quis ser então cremado em São Paulo, quando morrer, mas dá tanto trabalho, é preciso levar uma testemunha, uma burocracia. Não quero chatear ninguém, então comprei um túmulo no cemitério São João Batista, aqui no Rio. Tenho lá uma situação privilegiada, porque o meu túmulo está no alto do morro. No mesmo nível do mausoléu da Academia Brasileira de Letras. Então é de igual para igual (risos). Mas, sabe, eu tenho pena das pessoas que vão me sepultar, porque para chegar ao meu túmulo é preciso subir uma escadinha estreita. Não vai ser fácil. Mas não tenho culpa, foi o lugar que encontrei para comprar, não tinha outro.
O senhor é feliz?
Drummond – Não sei. Não sei. Eu não sei o que é ser feliz. Eu vivo, e vivo em paz com meus semelhantes.
O que é a esperança, para o senhor?
Drummond – Um fio muito fino, ao qual eu me agarro para não morrer desesperado.
Um de seus poemas, “José”, é um poema desesperado, mas no final ele não se mata, ou seja: o senhor escreve coisas amargas, mas às vezes deixa uma abertura, uma ponta de esperança.
Drummond – Sim, ele não se mata. Ele marcha, ele anda.
O que o senhor acha do suicídio?
Drummond – Uma solução heroica. De uma grandeza moral enorme. A não ser, claro, quando o suicida é doente, que se mata porque está privado do raciocínio.
E a política? Como o senhor entrou na vida política?
Drummond – Entrei na política em 1945. Eu tinha sido chefe de gabinete de ministro no governo Vargas, mas não era político. Em 1945 eu simpatizava com o Partido Comunista e, durante três meses, meu nome apareceu no expediente do jornal do partido. A experiência não me deixou saudades, saí de lá com o rabo entre as pernas.
Por quê?
Drummond – Éramos diretores do jornal e nenhum de nós dirigia coisa nenhuma. O jornal censurava as coisas mais absurdas. Até informações. Fiquei desencantado com o partido. Não quis mais saber de comunismo.
Como é que o senhor se define hoje, ideologicamente?
Drummond – Eu não sou nada, nada. Eu seria um eleitor em potencial do Partido Socialista Brasileiro. Mas não sou mais eleitor, desisti de me recadastrar.
O senhor não vai votar este ano, então?
Drummond – Não, não vou. Estou desencantado com isso. Tenho uma longa experiência de desencanto político. Em 1910, eu tinha sete anos de idade e o marechal Hermes da Fonseca foi eleito presidente da República com 400 mil votos redondos. Nem um a mais, nem um a menos. Por sua vez, o chefe da campanha civilista mandou telegramas para todos os diretórios civilistas nos Estados recomendando que aumentassem a votação nas notícias aos jornais. Houve fraudes dos dois lados.
O senhor votou em Jânio Quadros para presidente?
Drummond – Votei. E depois disso você acha que eu ainda vou votar em mais alguém?
O senhor apoiou o movimento de 1964?
Drummond – Não apoiei, não. Eu fui contra João Goulart, achei que a derrubada dele foi salutar. Mas uma semana depois já haviam praticado tais desmandos que não pude apoiar. Posso ter pecado por omissão por não ter denunciado logo, mas não apoiei.
O que é o que o senhor pensa da situação política no Brasil hoje?
Drummond – Não vou votar. Minha reação de desencanto explica tudo, não é?
E a República do escritor José Sarney?
Drummond – Não vejo nada, não. Eu acho que o Plano Cruzado foi uma boa ideia, vamos ser justos, uma ideia bem-intencionada. Mas estamos sem carne, não é? O congelamento não resolve. Estamos numa sociedade capitalista em que o motivo principal do trabalho é o lucro. O boi não tem opinião, coitado. Aliás, nessa história de congelamento, eu tenho muita simpatia é pelo boi, que está vivendo mais alguns meses no pasto.
O que é que o senhor sente quando vê, pelos jornais ou pela TV, que o Congresso está vazio?
Drummond – Eu acho terrível. E a gente não pode falar contra o Executivo, porque tem que falar mais mal ainda do Legislativo. O empreguismo, o clientelismo, o filhotismo, a falta de responsabilidade…
Um artista, um intelectual tem opiniões que pesam muito na sociedade. O senhor acha que…
Drummond – O que mais podemos fazer é conservar nossa dignidade. Não participando daquilo que nos pareça errado ou nocivo ao bem comum. A obrigação do escritor e do artista é fazer a melhor literatura, a melhor arte. Interpretar bem o sentido das coisas, o mistério da alma humana, o mistério das relações sociais. Não vejo como o artista pode influenciar na sociedade brasileira. Ele acaba sendo cantado pelos poderosos e prestando serviços a eles.
E a Constituinte?
Drummond – Eu gostaria muito que ela fosse realmente uma Constituinte. Mas vejo pouca probabilidade de se formar um grupo realmente poderoso e consciente, que sejam bons patriotas, para que possam fazer uma boa Constituição. Eu olho com certo susto a Constituinte. Uma coisa que acho muito importante é definir o papel das Forças Armadas. Não podem tutelar o regime democrático. Mas é difícil conseguir isso.
O senhor disse há pouco que, se votasse, votaria no Partido Socialista. O senhor acredita que exista socialismo real em algum país do mundo?
Drummond – O regime socialista a meu ver não é praticado nos países que se dizem socialistas. A não ser talvez na Escandinávia, onde há, realmente, um começo.
O senhor já foi convidado para visitar Cuba, como outros intelectuais que lá estiveram e até escreveram livros a respeito?
Drummond – Nunca fui, não. Aliás, uma vez eu estava posto em sossego, cerca de meia-noite, e me telefonou o Chico Buarque de Holanda, pessoa que admiro muito, mas com quem não tenho nem contato. Gosto da música dele. Telefonou e disse: “Preciso conversar com você”. Eu disse: “A esta hora da noite? Meu Deus, aconteceu um drama, para o Chico me procurar!”. Mas disse. “Pois não, venha”. Apareceu em companhia de um cidadão moreno, magro. Era já meia-noite e meia. O cidadão falou meio enrolado, era o embaixador da Nicarágua no Brasil, que tinha lido uma crônica minha no jornal e achava que eu estava mal informado sobre o país dele. Ah, tenha paciência! Eu tenho noção do que escrevo, compreendeu? Não sou partidário dos Estados Unidos, longe disso, acho a agressão à Nicarágua uma coisa estúpida. Mas não se pode negar que a Nicarágua é uma ditadura. Eles fecharam o La Prensa, onde tenho amigos, o poeta Pablo, Antonio Cuadra. E então falei para o Chico: “Tenha paciência!”.
E o embaixador? Ouviu e foi embora?
Drummond – Era delicado, como todo embaixador.
O senhor tem um poema, “Favelário Nacional”, em que diz que é difícil ser irmão das pessoas, ser solidário.
Drummond – Eu acho muito difícil. Fomos criados para sermos irmãos de nossos irmãos, e mesmo assim olhe lá. Somos irmãos de nossos irmãos e de nossos amigos – os demais são sócios, indiferentes ou inimigos, competidores. Se eu quiser ser irmão de um favelado, eu acho que ele me cospe na cara.
O senhor tem escrito muito hoje em dia?
Drummond – Pouco, muito pouco.
O que é pouco para o senhor?
Drummond – No mês passado eu fiz vinte poemas curtos focalizando aspectos da vida de Manuel Bandeira.
Tem algum livro inédito de poesia?
Drummond – Tenho matéria para um livro, mas não pretendi publicar até agora. Quer ver? (Busca uma pasta com poemas cuidadosamente organizados, tira um, mostra.) Este aqui, “Quadros em Exposição”, eu fiz inspirado em grandes pinturas clássicas. Não vou à Europa, fiz olhando as cópias.
E seus poemas eróticos?
Drummond – Passaram da moda, não pretendo publicar.
O senhor lê a poesia que se faz hoje no Brasil?
Drummond – Eu acho muito ruim.
E o movimento concretista?
Drummond – Uma bobagem.
A poesia práxis também?
Drummond – É. Outra bobagem.
O senhor não vê valor nesses movimentos?
Drummond – O que há hoje no Brasil é uma diluição da poesia brasileira em termos até chatíssimos, porque todo mundo agora faz poesia, e ninguém faz poesia. É uma coisa incrível. O mal disto vem do Modernismo. O Modernismo rompeu, inovou, criou, deu novas formulações estéticas, mas ao mesmo tempo permitiu que todo mundo que não sabe escrever escrevesse. O pessoal não tem a menor noção de ritmo, de criação verbal, e faz versos. Todos os dias agora aparecem antologias, e então aparecem duzentos poetas.
E a poesia da Bruna Lombardi?
Drummond – Ainda agora estou gostando muito do trabalho dela na televisão.
Bem, acho que estamos no fim. O senhor quer dizer mais alguma coisa?
Drummond – Eu não. Não quero dizer nada. Você me arrancou uma porção de coisas que eu não devia dizer. Por minha iniciativa, eu não digo nada a ninguém, sabe
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