terça-feira, 12 de abril de 2022

Carta do menino Zezinho aos seus professores do curso fundamental

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 Carta do menino Zezinho aos seus professores do curso fundamental

Queridos professores nasci na roça , tenho 14 anos de idade e  a minha primeira escola foi no campo .  Os meus professores , além dos meus pais, foram os fenômenos da natureza . Os meus colegas foram os insetos, as aves, os repteis , os animais do sítio dos meus pais e da redondeza.  Esqueci  de dizer que além de colegas todos também eram professores. 

Brinquei muito com as formigas,  tanajuras, libélulas,   gafanhotos e as borboletas,  levei muitas carreiras das galinhas chocas, das cadelas paridas, das cobras,  das abelhas e de bodes pais de chiqueiro.

Sei que os senhores não vão acreditar, nenhum deles sabiam ler, escrever ou contar, até mesmo os meus pais  não tinham boa leitura. Acho que os senhores vão estranhar, pois foi graças a todos eles que percebi a grandeza da vida, da natureza e da cidadania.

Os fenômenos  da natureza  me ensinaram a importância  de cada um e que  cada ser merece respeito. Ficou claro que todos possuem primordial participação na formação de um cidadão, fator preponderante para se viver  em sociedade com interatividade e harmonia.

Os animais classificados como irracionais , brutos, simples   e sem conhecimentos filosóficos me ensinaram a importância da vida, do bem estar e como me comportar diante da natureza. Me ensinaram como  viver em sociedade e de como conviver  harmoniosamente  com as diferenças e as diversidades, tanto dos seres animados como os inanimados, precisamente  os morros, as águas, o sol, a lua, as  estrelas, as chuvas, o fogo, as florestas, os ventos, as capoeiras e tudo quanto  emana da terra,  inclusive ela própria.

Ao entrar nesta escola imaginava encontrar um ambiente livre ,  que deixasse o meu cérebro voar como um pássaro e fizesse brotar miríades de perguntas sobre a complexidade da vida e do universo . 

Imaginava que a escola dos humanos  me orientasse a concatenar as minhas ideias, mostrasse novos caminhos e como desenvolver  novos pensamentos.

Imaginava que nesta escola  iria encontrar  muitos orientadores ,  tais quais os meus amigos de infância,    que  sem  saberem falar, contar ou escrever me orientaram  para a vida. 

Tinha eu, nesta minha cabeça, que cada colega  passasse  alguns conhecimentos  e num contínuo compartilhamento fôssemos somando,  e no coletivo melhorando a capacidade de viver em comunidades.

Juro aos senhores  que ao saber que existiam  diversas disciplinas como a língua pátria, a aritmética, a história  e  outras,    iria  compreender  as suas  importâncias, a necessidade de me aprofundar e entender a participação de cada uma na vida do cidadão ou cidadã.

Acreditava que, muitas vezes sozinho ou em equipe,  iria procurar maneiras de explorá-las para o bem da humanidade. Voaria, como um alado livre, por todos os recantos procurando respostas  para as interrogações da vida. Porém, o que encontrei foi uma prisão, uma verdadeira gaiola, um engessamento, tendo que seguir literalmente demandas do imaginário humano.  Clausura esta  que me fará  desaprender  o ato de voar, de cantar, da liberdade e de discernir  o que é bom ou ruim para vida. 

Lembro que  todos os engaiolados possuem donos e eles os levarão para onde quiser. Os prisioneiros em todos os vieses não são donos de si.

Aqui com todas as invenções  do homem e  o intuito de colocar o cidadão no topo das pirâmides ou pelos menos encontrar um lugar ao sol, neste mundo desigual,  me fazem   refletir  sobre o futuro da humanidade. 

Tenho a impressão que o modelo desta escola contribuirá e muito para a exclusão no ensino e criará mais degraus na estratificação social, distanciando mais ainda  a base do cume, pois existem diferenças nos conteúdos escolares. Enquanto maior o poder aquisitivo melhor o ensino.  

Este  tipo de escola  faz com que cada  um aprenda  a ser um desagregador, um concorrente ou um eterno advsersário .  Irá despertar,  no Eu  de cada um,  a propriedade de ser o melhor, o mais competente, um eterno ganhador  e o número um  em tudo, mesmo que tenha  que puxar o tapete do próximo. 

Não tenho cerimônia  de falar para os senhores  que, com este modelo  o mundo a cada dia ficará mais desigual. É assim que se constroem as famigeradas pirâmides  sociais  em todas as demandas da vida.

Caros professores, peço encarecidamente  que apenas  mostrem o melhor caminho para a vida, que apontem a melhor maneira de utilizar o cérebro, pois a de racionar todos são capazes .  Com   estas ferramentas  cada um destes seres humanos,  em formação, saberá encontrar a verdadeira importância da vida. Tenham certeza que cada um continuará o aprendizado continuo sem se afastar dos princípios sociais, filosóficos, éticos e  de como participar de um mundo mais justo , gozando   da  plena cidadania.

Meus abnegados professores, peço encarecidamente  que deixem as crianças  raciocinarem e se desenvolverem. Saibam   que cada uma tem e vem de um mundo diferente, todos estão cheios de conhecimentos pertinentes ao nível social e da convivência com aquilo que lhes rodeiam  .  Está no compartilhamento de suas vivências e ideias  a chave  para um mundo mais equânime. Sempre escutei e ainda escuto que cada cabeça é um mundo.

Deixem as crianças criarem, pensarem, se comunicarem e contribuírem para encontrar  muitas respostas para o bem desta civilização.

Sei que este modelo não é culpa dos professores, faz parte da conjuntura e da vontade política.  Cabe aos senhores  apenas executarem  a grade curricular num pequeno espaço de tempo, num ambiente muitas vezes inadaquado, sem segurança , sem uma remuneração condizente e a valorização pertinente à tão bela função

Mestres , não falei mais porque ainda sou rude, capiau e quase um animal do campo, quase um analfabeto nas coisas da vida. Acredito que ao entrar no curso do ensino médio darei continuidade  a esta simples missiva. 

.                                    Brasil,  18 de Março de 1968

Assina :Zezinho

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2 comentários:

lairtonrh37@gmail.com disse...

Ao analisar o texto, o que me chamou atenção foi o ano 1968, ano de ouro, de tranquilidade, principalmente aqui na minha Juazeiro. Aulas tranquilas, professores amigáveis que até hj sinto saudades e não me recordo o fato de precisar "raciocinar", simplesmente tinhamos os conteúdos de história, português... em seguida a prova e o tempo passava tranquilamente, pq a coisa fluía naturalmente e a situação na época não exigia e nem cobrava pesadamente. Será que esse tempo era bom ou ruim? o efeito de não raciocinar foi prejudicial? Vejamos um ponto a meu vê: um kichute dava pra usar em média 3 anos e qdo ficava branco agente pintava de preto e rodava mais muitos quilômetros quilometros. Voltando ao texto de 1968 ele é bem atualizado para os dias de hj, o cérebro dos alunos trabalha numa velocidade desgovernada por motivo de muitas informações bombardeando-o a cada segundo. Com certeza os professores e a vida, e os governantes, e o sistema trabalham para bloquear esses raciocínios. Pra quê? Acredito que seja para interesses próprios. E o prejudicado somos todos nós. Agora sim, precisamos, mais do que nunca, raciocinar.

iderval.blogspot.com disse...

Abraços e parabéns pela análise.