sexta-feira, 17 de setembro de 2021

O povo dizimado por pistoleiros que está no centro de julgamento histórico no STF

 



Laklãnõ-Xokleng: O povo dizimado por pistoleiros que está no centro de julgamento histórico no STF

Laklãnõ-Xokleng: Bugreiros com mulheres e crianças presas após matança de indígenas

A luz do dia rompia aquela madrugada em abril de 1904, quando cerca de dez bugreiros, como eram chamados os matadores de indígenas no Vale do Itajaí, avançaram sobre um acampamento do povo Laklãnõ-Xokleng perto de Aquidaban, atual município de Apiúna, em Santa Catarina. Segundo o "Jornal Novidades", de Itajaí, em sua edição de 4 de junho daquele ano, "havia perto de 230 almas, a maior parte mulheres e crianças". Os pistoleiros surpreenderam os indígenas enquanto eles dormiam e, depois de inutilizar seus arcos, começaram a disparar sem fazer pausa. Ninguém ficou vivo na comunidade.

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"O pavor e a consternação produzidas pelo assalto foi tal que os bugres (termo racista usado na época para se referir a indígenas) nem pensaram em defender-se", conta o jornal, no trecho reproduzido pelo livro "Índios e brancos no Sul do Brasil: A dramática experiência dos Xokleng" (1973), do antropólogo Silvio Coelho dos Santos. "A unica coisa que fizeram foi procurar abrigar com o proprio corpo a vida das mulheres e crianças (...) Os inimigos não pouparam vida nenhuma. Depois de terem iniciado sua obra com balas, a finalizaram com facas. Nem se comoveram com os gemidos e gritos das crianças agarradas ao corpo prostado das mães".

- A história desse massacre terrível é contada de geração em geração no nosso povo - diz Brasílio Priprá, de 63 anos, líder dos Laklãnõ-Xokleng, que hoje habitam o Território Indígena (TI) Ibirama-Laklãnô, ao longo dos rios Hercílio e Plate. - Vivemos na região Sul há 5 mil anos, ocupando uma área de milhões de hectares. Mas, com a chegada dos colonos europeus, o Estado assumiu o compromisso de nos eliminar. Eles achavam que a gente atrapalhava o progresso. Mas resistimos, sobrevivemos apesar de nosso território ter sido reduzido e muito invadido mesmo após a demarcação, já no século XX.

Laklãnõ-Xokleng: Indígenas entre colonos alemães

Quem cruza a BR-116 no trecho de Santa Catarina não imagina o tanto de sangue indígena derramado na região. A partir do século XIX, aquele se tornou um território disputado entre os povos da floresta e colonos assentados ao longo do Caminho das Tropas, como era chamado o corredor entre São Paulo e Rio Grande do Sul aberto no século XVIII e que antecedeu a atual rodovia. Mas a expulsão e a matança da etnia Laklãnõ-Xokleng, que vivia de caçar antas e colher pinhões no planalto serrano, não apagaram sua ligação com a terra. Cerca de 150 anos após a chegada dos migrantes, são os remanescentes daquela etnia que reivindicam no Supremo Tribunal Federal (STF) a garantia de seu território.

Líder indígena ameaçado por defender território no STF

Num julgamento a ser retomado nesta quarta-feira, a Corte decidirá se a TI Ibirama-LaKlãnõ, onde vivem os Xokleng, os Kaingang e os Guarani, deve ou não incorporar áreas já reconhecidas pelo governo federal como parte da terra indígena, mas que são reivindicadas pelo executivo catarinense e por produtores rurais. A ação movida pelo governo estadual se baseia na polêmica tese do marco temporal para alegar que os Xokleng não têm direito à área em disputa porque não estavam ali em 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, cujo Artigo 231 garante a esses povos o direto sobre suas áreas tradicionais. Se prevalecer esse argumento, o marco temporal servirá para todos os processos de demarcação de terras.

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- O marco temporal ignora a violência e a pressão que forçaram nosso povo a se deslocar do território original - diz Priprá, que vem sendo ameaçado por defender os interesses de sua etnia na Justiça. - Eu estava em Brasília acompanhando o julgamento, semana passada, quando me ligaram para avisar que uma família ouviu um homem me ameaçar de morte. Vou ter que me abrigar em alguma parte do Brasil até as coisas se acalmarem. Mas não vamos desistir dos nossos direitos.

Laklãnõ-Xokleng: Manifestação diante do STF, em Brasília, na semana passada

Para defensores da causa indígena, a tese do marco temporal oficializa a violência da qual foram vítimas os povos do país que não estavam nos seus territórios em 1988 porque tinham sido expulsos. Os Lakãnõ-Xokleng são exemplo disso. A etnia foi dizimada por mercenários a mando de autoridades públicas, fazendeiros e comerciantes que firmaram assentamento na região a partir do século XIX. Cidades como Lages e Blumenau cresceram a partir dessa ocupação. Hoje, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), restam cerca de 2 mil indivíduos da etnia, cuja padrão de vida foi totalmente transformado pelos conflitos.

Bugreiros arrancavam orelhas dos indígenas mortos

Estudos arqueológicos sugerem que indígenas ocupam o Sul do Brasil há pelo menos 4 mil anos, quando a Europa ainda entrava na Idade do Bronze. Sua área cobria de Porto Alegre a Curitiba. De acordo com "A dramática experiência Xokleng", de Silvio Coelho dos Santos, as disputas começaram a se intensificar na segunda metade do século XIX, à medida que mais colonos ocupavam as margens do Caminho das Tropas e suprimiam o território dos antigos habitantes. O livro de Santos reproduz correspondências entre autoridades dialogando sobre o envio de recursos públicos para combater os "silvícolas", que não aceitavam passivamente a invasão. Como todo povo indígena, os Laklãnõ-Xokleng têm uma ligação social e espiritual com sua terra. Há diversos relatos de ataques dos "selvagens" a fazendas da região.

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Foi aí que surgiram os "bugreiros", mercenários contratados por governos locais ou fazendeiros para matar os Xoklengs, cujas orelhas eram arrancadas como prova do número de vítimas. Entre esses assassinos, nenhum era mais cruel que o pequeno criador de gado Martinho Marcelino de Jesus, o Martim Brugreiro. Nascido em 1876, ele era jovem quando começou a atender a pedidos para caçar indígenas na mata como se fossem animais. Comandou várias expedições com dezenas de homens, que, segundo descrições, agiam sempre da mesma maneira.

Laklãnõ-Xokleng: Indígenas e colonos alemães em Blumenau, 1929

"Surpreendem os índios quando entregues ao sono. Não levam cães. Seguem a picada dos índios, descobrem os ranchos e, sem conversarem, aguardam. É quando o dia está para nascer que dão o assalto. O primeiro cuidado é cortar as cordas dos arcos. Depois, praticam o morticínio. Compreende-se que os índios, acordados a tiros e facão, nem procuram defender-se, e toda heroicidade dos assaltantes consiste em cortar carne inerme de homens acordados de surpresa. Depois, dividem-se os despojos, entre eles os troféus de combate e as crianças apresadas".

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O parágrafo acima está num relatório escrito no início do século XX por Eduardo Hoerhann. Sobrinho-neto do Duque de Caxias, ele era funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão federal criado em 1910, após o XVI Congresso de Americanistas, em Viena, onde o Brasil ficou sob pressão internacional para proteger seus povos originários. Hoerhann tinha só 18 anos quando foi enviado do Rio a Santa Catarina para lidar com a situação no Vale do Itajaí. Em 1914, ele conduziu o primeiro contato pacífico entre o homem branco e os Laklãnõ-Xokleng.

- No Congresso de Americanistas, as denúncias sobre o genocídio indígena que vinha ocorrendo motivaram a criação do SPI. Em 1914, os Laklãnõ-Xokleng já haviam sido tão reduzidos pela matança sistemática que eles se viram obrigados a fazer o contato para sobreviver - explica o antropólogo Alexandro Machado Namem, professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e autor do livro "Os botocudo no Vale do Itajaí" (2020). - Foi um período trágico da História do Brasil.

Laklãnõ-Xokleng: Localização do Território Indígena Ibirama, em Santa Catarina

Uma terra indígena invadida por colonos, madeireiros e uma barragem

Depois do contato, foi instalado no Vale do Itajaí o Posto Indígena Duque de Caxias, o que contribuiu para o fim das matanças. Uma outra forma de opressão, porém, teve início. Em seu livro, Namem conta que a TI Ibirama foi criada em 1926, com pouco mais de 20 mil hectares, tamanho ínfimo perto da vastidão que eram as terras Laklãnõ-Xokleng no passado. Em 1965, o governo federal homologou o território com uma dimensão ainda menor: 14 mil hectares. Ainda assim, a partir dessa década, houve muitas invasões por colonos e madeireiras, o que levou à extração predatória de árvores nobres e de palmito, hoje praticamente extinto na região.

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O pior ainda estava por vir. Em 1975, o governo federal declarou parte da reserva como área de utilidade pública para construir um complexo de  barragens para contenção de enchentes, com objetivo de proteger municípios próximos. Como estávamos em meio a uma ditadura militar, não havia margem nenhuma para contestação. As obras, concluídas na década de 1980, causaram enorme impacto na vida dos Laklãnõ-Xokleng, que ficaram ser ter onde plantar ou morar e foram obrigados a se deslocar dentro do território.

- O governo construiu o lago de contenção da barragem norte dentro da reserva, sem que houvesse consulta da população indígena - critica Namem. - Aquilo agravou muito a situação de um povo que já vinha sofrendo com invasões por décadas. 

Marcha das Mulheres Indígenas contra o marco temporal, em Brasília

Nos anos 90, os próprios indígenas começaram um processo de retomada das terras invadidas que culminou com um grupo de trabalho que, após muita análise, concluiu que o território Laklãnõ-Xokleng tem, na verdade, 37 mil hectares. A partir de então, ficou claro que a própria criação da reserva, em 1926, com 20 mil hectares, foi a primeira expropriação realizada pelo governo contra seus habitantes originários. Em 1999, a Funai reconheceu, após muito "vai e volta", os 37 mil hectares da TI Ibirama, demarcada com essa dimensão pelo governo federal em 2003, o que gerou novas contestações judiciais da parte de agricultores e do próprio governo estadual. Na prática, então, o STF precisa decidir se reserva dos Xokleng tem apenas os 14 mil hectares demarcados em 1965 ou os 37 mil definidos pela pesquisa posterior.

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Ao longo do século XX, o Estado deixou de patrocinar matanças de Xoklengs, ainda que tenha continuado a negar o direito desse povo a suas terras. Mas isso não significa que nunca mais houve assassinatos. Em 1954, o indígena Brasílio Priprá foi ao Rio denunciar invasões das terras e crueldades cometidas por Eduardo Hoerhann, o funcionário do SPI que conduzira o contato pacífico em 1914. Chefe do Posto Duque de Caxias, instalado na reserva, ele era acusado de violentar mulheres Xokleng e obrigar moradores do território a trabalhar para ele sem remuneração. Ao voltar do Rio, Priprá foi assassinado por capangas de Hoerhann, que chegou a ficar preso depois daquele crime. Nascido três anos depois, o Brasílio Priprá que hoje lidera os Xokleng recebeu seu nome daquele indígena morto.

- Eu seria o irmão dele, então recebi seu nome como homenagem - conta Priprá, que está de novo em Brasília para acompanhar o julgamento da ação no STF. - Resistimos até hoje e não vamos parar de lutar, mesmo com todas as ameaças que continuamos a sofrer. 

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