UM PAI E O ATEDIMENTO
DO
FILHO NUMA EMERGENCIA
Relato do médico Dr. Zezinho dos Anzóis
Era domingo,
chovia muito, a cidade estava deserta. A pediatria encontrava-se desativada,
recomendado cautela, dois eram os plantonistas de clínica médica.
Os pacientes eram atendidos alternadamente, depois da meia noite o movimento caia consideravelmente.
2:30h da madrugada, neste horário chegou um senhor de uns 40 anos de idade, trazia nos braços, envolto num grosso lençol, uma criança de 4 a 5 anos. Foi até a recepção, disse que o filho estava com febre e dor na garganta.
A recepcionista explicou que não se tratava de uma emergência, deveria procurar o serviço adequado, da mesma rede, que ficava noutro bairro e atendia estes casos, logo que o dia clareasse.
Humildemente, o senhor sentou numa cadeira defronte a televisão, que passava a noite ligada. Pensou, refletiu, voltou para a recepcionista, tentou explicar e sem sucesso.
Solicitou que lhe mostrasse quem eram os médicos, queria falar e pedir pelo o amor de Deus que atendessem o seu filho, foi apresentado ao profissional que deveria atender naquele horário.
O médico da vez, respondeu que aquele caso não configurava uma emergência, poderia muito bem esperar até o amanhecer e assim pensou:
"não sou pediatra e nem otorrino, amigdalite às 2:30h da manhã, era brincadeira, por que não levou o garoto durante o dia no ambulatório apropriado, resmungou para si, amigdalite às 2 e 30, é demais, mesmo porque às sete chegará o pediatra."
Dr.Zezinho ao ver a
cena e sentir naquele pai um semblante de diminuição, de inferioridade e de
desvalorização como cidadão, chamou o colega, solicitou que atendesse, foi
irredutível.
Não pensou duas vezes, mandou fazer a ficha, solicitou que colocasse o pai e o
filho no consultório, chamou o colega e frente a frente iniciou a consulta,
não uma consulta médico-clínico, mas uma consulta médico-social.
O pai revelou que morava na periferia, que saíra de casa às 06horas da manhã, trabalhava no polo petroquímico numa empresa terceirizada, chamada de Gata.
O transporte era uma casinha, de madeira, adaptada sobre a carroceria de um caminhão, não tinha alimentação, garantia de emprego e era o último a chegar em casa, no subúrbio ferroviário, depois de uma peregrinação por toda a cidade devido o despejo dos seus pares que moravam em pontos diversos.
Naquele
dia havia deixado a fábrica às 22 hora, rodara toda a cidade, era um dos últimos
a descer do caminhão, o fim da linha era no seu bairro, a sua casa ficava colada à garagem da empresa.
Ao chegar em casa, sem uma alimentação decente, sem banho e possuído pelo cansaço, foi avisado que o menino estava com febre e esperava o pai para levá-lo ao médico. Matou a sede, encostou a mochila e a marmita, embalou a criança e debaixo de chuva andou a pé três mil metros, pegou o trem suburbano que se conectava com o ultimo ônibus e depois de rodar 30 quilômetros atingiu o fim de linha, um turístico logradouro defronte a um grande Teatro. Desceu a pé um íngreme, enladeirado, longo e deserto percurso de mais de três mil metros, da grande praça ao longínquo serviço de urgência.
Na solidão do caminho, na escuridão da noite, sob o frio da úmida e torrencial chuva, arriscando as suas vidas, mergulhou na realidade.
Na cabeça um turbilhão de pensamentos, todos de baixa estima: pobre, não bonito, suburbano, pertencente a uma categoria sem valor, afro descente, cansado e sem se alimentar.
Foi tomado pelo desânimo, porém, tinha um filho, possuía um rei, possuía uma das razões que justificava viver, que justificava todo e qualquer sacrifício, aliás, levar o seu filho a um médico, não era sacrifício, era um prazer. Pensava no seu trabalho, na sua família, no seu pai, via e sentia naquela hora, naquele momento como era difícil a vida, como era dura, como era insignificante diante do mundo, ainda bem que existia o médico, este sim me compreendia, este sim era homem de coração bom, este sim atendia a todos os seres humanos, atendia em todos os momentos, notadamente nos momentos de necessidades, sempre alegre e sorridente, ainda bem que existia o médico, neste mundo só o médico, somente o médico era verdadeiramente humano. Pergutava para si, quem era ele para ser atendido, para receber a atenção daquela espécie de homem, homem estudado e importante, inclusive por ele ser um simples operário, era condição suficiente para não ser atendido, ainda assim, o médico atendia.
Atendia porque era humano, porque era bom, porque era gente, foi assim que veio pensando em todo o seu longo e difícil trajeto. Imaginava encontrar um amigo, um amigo que lhe escutasse, que lhe desse atenção, que lhe desse socorro, ainda bem que existe o médico.
Disse também que saiu preocupado como voltaria para casa, com que carro, com qual dinheiro? se perdesse o transporte como iria ao trabalho no outro dia? sem dormir, sem comer, sem condições de faltar e se fosse demitido? porém nada disso era mais importante do que aquele filho, nada tinha mais importância do que a saúde do seu filho.
O colega frente a frente, escutava silenciosamente aquele abnegado cidadão. Aquele depoimento era mais um desabafo, um desabafo social, um desabafo para a humanidade e para com ele mesmo, era um desabafo encravado no seu inconsciente, aprisionado no seu Eu, quem sabe para quem? talvez para com DEUS. O colega escutava calado, silencioso e com olhar perdido, o colega estava noutro mundo, encotrava-se bem distante, não sei onde, num lugar longínquo; cabisbaixo.
Repentinamente, com os olhos marejados, voz trêmula, rompeu o silêncio, abraçou o guerreiro pai e balbuciou:
"PAI, AH SE TODOS OS PAIS FOSSEM ASSIM! COMO SERIA DIFERENTE".
Pegou as rédeas do atendimento, arranjou energia não sei aonde, atendeu, conversou, riu, ofereceu o seu lanche noturno e o café da manhã para aquele pai exemplar. Alimentou a criança, pediu-me que passasse o plantão pela manhã e com a criança medicada, a bolsa cheia de amostras e muita disposição foi conhecer na periferia onde morava um homem, onde morava um cidadão, onde morava um verdadeiro pai e saíram os três na mesma condução, tendo o médico assistente como o condutor.
Ainda hoje, nos encontros da vida, Dr Zezinho escuta do nobre e gentil colega:
"Meu amigo, muito obrigado, a medicina não é só conhecimentos técnicos é muito mais. A medicina é o social, é o humanismo, é a ética, é o altruísmo, é a essência da cidadania, é uma das representantes fiel de Deus."
"Ser médico enfim, é ser um misto de tudo quanto é de bom, ser médico é
ser provedor, acolhedor e compreender os encontros e os desencontros do homem . Ser médico, na essência da vida, é apenas ser Médico. APENAS."
Iderval Reginaldo Tenório
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