O ESPECIALISTA
Zezinho, um hospital de urgência e o especialista.
Coisas do Hospital Central Roberto Santos
Conta Zezinho, um mero cirurgião de plantão, que ao passar pela ortopedia, viu deitado na maca um senhor de meia idade em busca da sua saúde. Apesar de sereno e calmo, estava com fácie de sofrimento, perplexo e desconfiado.
Encontrava-se rodeado por ortopedistas, residentes, internos, clínicos, auxiliares de enfermagens e um serviçal da limpeza, estava visivelmente assombrado e os profissionais a confabular: o que deveria ser feito?
Zezinho
solenemente se aproximou, olhou para todos e pediu permissão para
entrar na conferência, foi permitido, fez a socrática pergunta.
___O que está acontecendo doutores? Que reunião é esta?
___Este senhor luxou o ombro direito e estamos aqui tentando resolver o caso.
Foi a resposta de um dos residente de ortopedia, reforçado por um dos ortopedistas.
Atlas de anatomia óssea aberto, desenhos múltiplos discutidos por toda a equipe, residentes
empolgados, benzodiazepínico nos músculos, técnicas aplicadas e todas as manobras
sem resultados.
Zezinho entrou e indagou se poderia contribuir, logo recebeu um sim.
Perguntou pelo seu nome, falou que o
cabra era macho, não era como esses frouxos da capital, era sim um homem
de respeito e que o Brasil precisa. Certificou-se da causa da
luxação e conferiu o diagnóstico,
uma luxação verdadeira do ombro direito.
O paciente tomou afeição pelo cirurgião, pareciam até conterrâneos e da mesma região, egressos da caatinga nordestina. Após 10 minutos de papo, parecia que já eram conhecidos de longas datas, pareciam primos a recordar os belos dias do passado.
Zezinho fez
uma explanação da vida que levou na
lida no campo, nas laçadas de bois, nas amarras de feixes de lenha para
carregar nas costas ou nos quatro cambitos encaixados nas cangalhas
nas costas dos jumentos, no carregamento de sacos nos lombos dos muares,
dos
banhos de rios, das corridas de cavalos e nas pegas de bezerros bravos
nos braços. Falou das quedas, dos arranca unhas nas capoeiras dos
sertões e da lida com o gado pé duro, gado de orelha curta, gado criado
na
caatinga, muitos quase xerófilos, guiados por pequenos cavalos
pangarés. O homem se entusiasmou, sentiu que estava de frente de um
carregador de mandioca nos caçuás em busca dos aviamentos de farinha,
lembrou de sua infância nos cafundós dos áridos sertões.
O
braço luxara pela manhã dois dias atrás quando jogou o laço na pega de
uma
vaca, no puxão que deu, a força foi tanta que a cabeça do úmero saiu
de sua cavidade, não foi a primeira vez , frisou o abnegado cidadão.
Zezinho pediu licença aos ortopedistas para aplicar a velha manobra aprendida
no saudoso Hospital de Urgência da Bahia- o tradicional Hospital Getúlio Vargas, a maior
escola de urgência do estado, como muito orgulho o HGE, recebeu a aprovação de todos.
Explicou ao paciente a manobra que faria, aceito de imediado, então com voz
firme ordenou:
___Fique reto e deitado na maca, estique os braços colado ao corpo, vou
puxar o braço
direito afastando do seu corpo até a sua colocação na cavidade, como já
expliquei, pode doer um pouco, mas peço para agüentar, cabras do
nosso tipo não abre nem para boi bravo e bufão, imagine pra uma bobagem
desta, vou
mandar os meninos segurar a maca e outro segurará o seu tórax.
O médico tirou o seu inseparável e único dokside branco, salpicado de
mertiolate e gotas de sangue, descalçou a meia surrada e elevou a
perna direita. Artelhos à mostra, dedão maior do pé, o hálux, na axila
direita do paciente, sem dificuldades localizou a cabeça do
úmero e a cavidade glenoidal da escápula.
O
odor ocre, de peixe ardido do seu pé infiltrou-se nas narinas do
enfermo. O Zezinho pendurou-se esticando o braço direito do paciente
como se fosse uma
corda, os músculos foram relaxando, relaxando até o ponto máximo de
afastamento permitido pelo paciente, com uma manobra plácida, certeira e
serena, uma
manobra centenária, empurrou com o dedão a hemisférica cabeça do húmero
na cavidade da omoplata e
lá estava a luxação resolvida.
O paciente não contou conversas, levantou, abriu os braços, fez diversas manobras, já
sem dor e um sorriso de gratidão abriu o bocão e falou em voz alta:
____É doutô, graças a Deus o senhor chegou na hora, foi Deus quem lhe mandou, pois estes homens
iam me matar, já chega os de Candeias, Mata de São João e os de Camaçari que quase arrancam o meu
braço, ando a dois dias e sem solução, obrigado doutor, obrigado.
E em voz alta exclamou:
AINDA BEM QUE CHEGOU O ESPECIALISTA.
Foi uma tremenda gargalhada.
Tem horas que a tática fala mais alto.
Iderval
Reginaldo Tenório
1986
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