O Fogo e a Caatinga
O homem , a Caatinga e o fogo
O Fogo comendo a Caatinga
A mente da Criança.
Incêndio na Chapada do Araripe de 1964
A caatinga ardia em chamas, o proprietário e alguns trabalhadores roçavam as ressecadas moitas de jiquiris, canafistas e outros arbustos do semi árido nordeste.
Do outro lado a sua esposa, acompanhada por mulheres e rapazolas, limpavam os aceiros contra laterais da velha estrada de chão batido. Retiravam garranchos, gravetos e capins desidratados , uma vez que a caatinga seca tem a mesma combustão da bucha ensopada com gasolina, quase semelhante à queima da pólvora.
As últimas
chuvas datavam de anos. Barreiros secos, animais esquálidos e as
asas brancas a procurarem outras plagas, apenas os pássaros mais resistentes
voavam contracenando com as miragens que vibravam tangenciando o duro, vermelho
e ressecado solo serrano.
O verde encontrava-se cinza, o sol queimava a pele, a cabeça, o coração, a
mente e a alma dos fortes homens do campo, era mais um período de seca,
sem água, de fome e de sofrimentos.
Anuns, carcarás, gaviões, teiús e cascavéis rodeavam as ilhas verdes ensombradas pelos umbuzeiros, cajueiros, facheiros, xique-xiques e mandacarus à procura de preás, saguins, calangos, pássaros , besouros , formigas e cupins para matar a fome.
As rajadas de ventos , muitas vezes em redemoinhos, levavam de eito tudo que encontravam pela frente. Penas, ciscos, folhas, ninhos de pássaros, restos de gafanhotos, argilas e estercos flutuavam de um lado para o outro como se a velha Chapada do Araripe estivesse a caducar ou pagando os seus pecados.
Num visível processo de desertificação, as lufadas dos ventos e o mormaço invadiam as desprotegidas capoeiras e consumiam sem piedade os últimos lampejos de vida.
Pássaros, insetos rasteiros , insetos alados e até mesmo os resistentes répteis eram triturados pelo sol causticante do meio dia.
O descampado da vegetação xerófila , os cabeças de frades, os rabos de raposas e os mandacarus mirins maltratados pelo escaldante calor, transformavam a caatinga num cinza transparente, expondo ao sol ardente os animais , os vegetais e os recursos naturais modificando o ecossistema.
O céu azul , sem nenhuma nuvem, propiciava a visibilidade do mais longínquo infinito. O astro rei, como se estivesse a metros, consumia com as suas labaredas a ressecada e moribunda carcaça da velha Serra do Araripe.
Zezinho viu, viveu , apagou fogo e sobreviveu. A mente da criança gravou dantesca cena.
O fogaréu vermelho a cuspir fumaça, os estalos dos gravetos finos e secos em chamas, as faiscantes fuligens carregadas pelos ventos salpicavam a troposfera a espalhar o incêndio para outras plagas.
Os homens com molambos molhados no rosto a proteger as ofegantes narinas e os olhos tracomatosos. Mulheres com panos e vassouras de galhos secos a varrerem as margens da estrada e adolescentes correndo em desespero aos gritos de guerras, com cabaças d'agua a matar a sede e ensopar os protetores molambos dos apagadores do fogo. O Zezinho encravado no coração do furdunço fumacento, à procura dos pais, fez parte deste tenebroso universo.
Foram momentos de medo, choro , de insignificância, de coragem e reflexão .
Foi mais um fato vivido e registrado na sua existência pueril. Mais uma lição da natureza e a certeza que o homem do campo, o homem sofrido do nordeste é forte , resistente e merece respeito.
O menino cresceu, lutou, estudou e envelheceu, porém, jamais deixou que a criança agreste que existe dentro de si sucumbisse e desaparecesse.
Entendeu que
os segredos da vida só sabe quem viveu, quem presenciou e sentiu.
Traz de lembranças algumas cicatrizes e dois pterígios , marcas registradas dos
sertões pernambucanos.
Zezinho fez e faz parte deste tenebroso universo. Ele viu, viveu e sobreviveu. O Zezinho é um
sobrevivente, como disse o Euclides da Cunha , é antes de tudo, um forte.
É um verdadeiro apagador de indêndios, é um sobrevivente.
Salvador, 18 de Março de 1986
Iderval Reginaldo Tenório
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