DEPOIMENTO DE UMA
CIDADÃ.
“ O COVID19 ARRASOU A MINHA FAMÍLIA”
Éramos
quatro, pai, mãe, eu e o meu irmão caçula, ele estava com 34 anos de idade.
Pai
havia caído e quebrado o cólon do fêmur, estava internado na ortopedia de um hospital
geral em processo de fisioterapia e alta hospitalar. A minha mãe , como o meu pai,
é idosa, cardiopata, hipertensa, diabética e com dificuldades
na locomoção.
Eu
trabalho num grande banco como serviços gerais, sou funcionária de uma
terceirizada, o meu irmão é vigilante de um hospital público de emergência , é funcionário de uma empresa
terceirizada, nas horas vagas é entregador de comida pronta, nesta ele apenas presta serviços , não tem carteira assinada , não recolhe para o FGTS e ganha por cada
entrega, ele possui uma motocicleta.
Veio
esta história da China, uma doença nova, ninguém acreditava e nem falava em
casa sobre esta doença, mesmo porque a
família estava desgarrada, pai no hospital, mãe em casa, meu irmão
sempre na rua a trabalhar, o mesmo tem dois filhos para criar, é separado da esposa, do que ganha, oficialmente, já vem descontado a
parte da Ex-esposa e dos meninos, mal dorme em casa, uma ou
duas vezes por semana , ele dá muitos serões no serviço,
eu frequento o culto da minha igreja três vezes por semana, devido a carestia do transporte vou direto do trabalho para o templo .
Apesar
de pai está com 72 anos, ninguém dormia com ele no hospital mesmo tendo este
direito, minha mãe nunca foi visitá-lo, eu o visitava à tarde e o meu irmão duas vezes por semana saia do trabalho e lhe
fazia visitas noturnas , ficava até as onze horas da noite, pois os coletivos ficavam
difíceis depois da meia noite, aqui no bairro o perigo corre solto durante o dia e à noite as portas são fechadas antes das dez.
Certo
dia o meu irmão apresentou tosse, febre, dor na garganta, de cabeça e espirros
com odor fétido, mesmo trabalhando na emergência de um grande hospital os
médicos não puderam lhe atender, foi orientado procurar uma UPA ,
foi em mais de três, por último fizeram uns exames , uma semana depois saíram os resultados, COVID19 positivo, a esta altura toda a família estava com medo , uma
vez que ele passou uma semana fazendo
exames , mesmo fraco e doente continuou entregando comida nos endereços
que solicitavam, visitou pai duas vezes, mas não dormia no hospital ,
todos lá de casa apresentaram febre e tosse, com muito sacrifício foram
colhidos sangue para os exames , inclusive os da doença do meu irmão , todos
deram COVID19 positivo, só não os seus
filhos e a sua Ex-esposa , pois só se veem no inicio de cada mês, neste dia o meu irmão além de ver os
filhos leva a parte das crianças que ganha na entrega das
comidas, esta parte é em dinheiro, depende do esforço dele, diz ele que este trabalho é cansativo , perigoso , sem valor e sem um pingo de respeito , já foi assaltado três ou quatro vezes, o pior : apesar de trabalhar com restaurantes não tem direito a alimentação.
Neste
mês, nem os filhos e nem a Ex-esposa viram o meu irmão, ele piorou, foi
levado para uma UTI e lá faleceu aos 34anos de idade, não teve enterro
familiar, o hospital realizou tudo, a urna foi lacrada e saiu direto para o
cemitério público, depois disso nem os vizinhos vão visitar a minha mãe.
Pai
continua no hospital, mãe isolada e eu depois de vinte dias tenho que
comparecer ao trabalho das 08 as 12hs, o meu novo exame COVID19 deu negativo, o meu coordenador informou que a fase perigosa de
contágio já passou, mesmo assim os colegas só falam comigo de longe, , disse também que pode ter cortes na empresa, geralmente a corda rompe no lado mais pobre, no lado dos necessitados, no lado dos mais fracos, se eu for demitida não sei como sobreviver, sou assalariada, tenho poucos estudos, venho da lavoura, sou de Quixeramobim, lá do Ceará.
A
família foi totalmente desmontada, pai no hospital, mãe doente em casa,
os filhos sem a pensão , eu muito triste, com medo, arrasada
e sem esperança .
O
COVID19 acabou com a nossa família, hoje estamos desgarrados no tempo e
no espaço, nem o endereço dos irmãos de pai no Ceará nós temos, faz mais de trinta anos que nós moramos aqui na Capital.
Sem
família nada somos, para as outras pessoas o meu irmão é mais um número a
fazer parte da estatística , mais um caso de óbito pelo COVID19, porém para os
parentes foi uma parte da vida de cada um que se foi para nunca mais
voltar, foi um trauma , foram várias vidas prejudicadas pela morte do meu
irmão, a família ficou sem uma das suas pilastras, foi uma vida que se foi, os
seus filhos e os meus pais pensam que ele viajou e ainda vai voltar, o mais novo está com três anos e o mais velho com cinco, mais tarde eles
entenderão o que aconteceu, se a minha souber poderá até cair para trás e morrer do coração, todos acham que foi uma injustiça, pois com a sua
morte todos estamos abandonados , sem rumo, sem norte e sem prumo , só chamando por Deus, quem mais sofre sou eu. Pai , mãe e os seus filhos só saberão depois e a sua ex-esposa lamenta a falta do dinheiro, como alimentar os seus filhos, o COVID19 acabou com a nossa família.
Salvador, 02 de Maio de 2020
Iderval Reginaldo Tenório