Na
década de 1930, a ditadura do Estado Novo oficializou, num decreto, que
o país deveria ter um tipo de escola para a elite chegar ao ensino
superior e outra, focada no ensino profissionalizante, para a massa.
Antes disso, ainda no século XIX, “os escravos e os pretos africanos,
libertos ou livres” não poderiam nem frequentar as salas de aula. Esses
são apenas dois exemplos de 200 anos de exclusões na educação
brasileira. Elas construíram uma forte cultura de desigualdades,
reproduzidas até hoje, analisa Antônio Gois, jornalista especializado em
educação que lançou nesta semana “O ponto a que chegamos”. No livro, o
colunista do GLOBO interpreta atrasos e avanços nas salas de aula do
país desde a Independência.
— Várias ideias sobre o passado da
educação no Brasil que estão no senso comum são equivocadas. E elas
seguem influenciando políticas públicas do presente. A incompreensão do
passado dificulta o diagnóstico da educação no país de agora— afirma
Gois.
O principal deles é o mito da escola de qualidade no
passado. O ensino público de outrora, mostra Gois, era uma máquina de
exclusão. Dados das décadas de 1940 a 1960, por exemplo, revelam que, de
cada mil estudantes matriculados no primeiro ano do ensino fundamental,
menos da metade seguia para o segundo.
— O período em que mais
avançamos foi o da redemocratização, após a ditadura militar. Apesar de
todos os problemas, melhoramos significativamente o financiamento, o
acesso e a qualidade da educação no Brasil. Em 1985, 14% dos jovens
estavam no ensino médio. Em 2020, chegamos a 75% — diz Gois, lembrando
que o aprendizado também cresceu — Detectamos neste período ganhos de
qualidade, mas insuficientes e só nos anos iniciais. Ao se comparar o
Brasil com outros países, estamos atrasados.
O Brasil chega ao
Bicentenário gastando uma proporção do PIB (4,3%) com educação similar
ao investimento de países desenvolvidos. Mas o PIB per capita ainda é
muito abaixo (37%) da média dos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Universalização
O país
conseguiu universalizar o ensino fundamental. Mas ainda precisa atrair
os jovens para o ensino médio e aumentar taxas de matrícula em creches e
na pré-escola. A aprendizagem cresceu no começo da década passada,
oscilou em avaliações recentes e foi duramente abalada após a pandemia
(confira os desafios abaixo).
— Algumas redes conseguiram se
recuperar em determinados indicadores, como as de Pernambuco, Ceará e a
de Teresina. A boa notícia é que somos capazes de romper com o atraso do
passado. O ruim é olhar para estados como o Rio e o Rio Grande do Sul,
superados pela falta de política pública constante — diz o colunista.
Os
próximos anos chegarão com desafios enormes. Além da crise a ser
desatada, causada especialmente pela pandemia e agravada pela falta de
coordenação central à interrupção das aulas, projeta-se um 2023 apertado
financeiramente.
— Esperamos que o próximo governo recupere pelo
menos o investimento federal que, além de parar de crescer, regrediu, em
alguns casos. E de um MEC disposto a dialogar com estados e municípios
na construção conjunta de políticas — afirma.
Herança maldita
As
dificuldades vêm de longe. A Coroa portuguesa só regulamentou a
instrução primária no reino e nas colônias em 1772. Na Prússia (motor da
unificação alemã), por exemplo, já em 1612, toda criança de 6 a 12 anos
tinha de ser matriculada em escolas.
O avanço a passos de
tartaruga no Brasil Colônia e Império afetou a democratização do ensino
no país. Em 1900, o Brasil tinha apenas 10% de crianças de 5 a 14 anos
na escola. Os portugueses, 19%. Os EUA já tinham 94% e muitos
latino-americanos estavam à frente de brasileiros e portugueses.
A
primeira Constituição republicana, em 1891, foi omissa em relação ao
papel do governo central, atribuindo aos estados a formulação de
políticas públicas para o setor. E duas ditaduras foram os períodos,
demonstra Antonio Gois, de maiores retrocessos:
— No Estado Novo, o
ensino secundário era exclusivamente para as elites e o
profissionalizante para a massa. Na ditadura militar, priorizou-se o
superior, com o ensino básico avançando muito menos do que deveria.
Financiamento e qualidade
Com
baixos resultados no Pisa e gasto do PIB similar a países mais ricos, o
Brasil tem sofrido com o diagnóstico de que gasta o suficiente, mas de
forma ineficiente, o que não é necessariamente verdade. “É possível
identificar programas nitidamente ineficientes e outros bastante
eficazes”, escreve Gois no livro. Já Catarina Santos, especialista em
educação da Universidade de Brasília, defende que o Brasil ainda gasta
pouco por aluno e as demandas são altas: “Muitos estudantes dependem do
que a escola tem para desenvolvimento, alimentação e proteção, tudo
isso”.
Analfabetismo
Momento que define toda a trajetória
escolar dos estudantes, a alfabetização vive uma enorme crise por ser a
etapa escolar com os maiores prejuízos durante o ensino remoto. Para
isso, diz o especialista em educação Gregório Grisa, é fundamental
reformular as formações continuadas “com foco em metodologias
chanceladas por boas práticas”. Além disso, ele avalia que é o Brasil
precisa remodelar os processos pedagógicos vividos já na pré-escola (de 4
a 5 anos), que é um momento de pré-alfabetização, “introduzindo um
conjunto de atividades lúdicas que garantam conhecimento prévio para que
elas possam se alfabetizar”, explica o especialista.
Professores
Duas
das três variáveis mais importantes para explicar o sucesso de alguns
países no Pisa são a atratividade da carreira docente e uma formação de
qualidade dos professores, aponta a consultoria internacional McKinsey.
“Precisamos investir em mais e melhor formação de professores. Não para
implementar teorias específicas, mas para que os professores ajudem na
construção de novas políticas públicas”, aponta Catarina Santos. “Também
é fundamental melhorar a remuneração e as condições para que eles se
dediquem exclusivamente a uma escola”.
Desigualdades
Legado
de décadas de exclusões, as desigualdades na educação são até hoje
reproduzidas no país. E até despercebidamente, avalia Gois. Segundo o
especialista, uma prática comum nas redes públicas é a de o professor
mais experiente ter o privilégio de escolher onde vai dar aula.
“Pensando na equidade, o sistema deveria alocar esse profissionais nas
escolas que mais precisam. Para que, assim, os alunos com mais
dificuldades tenham o melhor professor daquela rede”, analisa o autor.