sábado, 19 de dezembro de 2020

Roberto Silva & Caetano Veloso - Juracy

Roberto Silva deu voz a sucessos de bambas como Wilson Batista, Geraldo Pereira, Nelson Cavaquinho e foi admirado por Paulinho da Viola e Zeca Pagodinho
Foto: Fernando Rômulo/Divulgação

Todo reinado precisa de um príncipe. No Brasil, terra do samba, o escolhido foi Roberto Silva. Nascido há um século, ele recebeu o título de “Príncipe do Samba” diretamente das mãos de Carlos José, locutor da Rádio Tupi, no Rio de Janeiro, no começo da década de 1940, quando dava os primeiros passos na carreira, iniciada em sua cidade natal.

Filho de dinastia nobre, herdeiro direto da linhagem de Ciro Monteiro e Orlando Silva, o cantor aprendeu desde cedo a desdobrar o ritmo e salientar a intenção dos versos em falas bem costuradas e repiques na medida exata para sua voz. Admirado por Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho e Caetano Veloso, Roberto morreu em 2012, aos 92 anos. Em 2008, ele reviveu seu grande sucesso, “Falsa Baiana”, em um dueto com Roberta Sá.

Do morro do Cantagalo, Roberto partiu ainda jovem, aos 18 anos, para as estações de rádio que alcançavam todo o país e, em 1961, teve a ousadia de lançar “Jornal da Morte”, crônica musical de Miguel Gustavo, que dizia: “Tresloucada, seminua/ Jogou-se do oitavo andar/ Porque o noivo não comprava/ Maconha pra ela fumar”. Integrante da histórica série de quatro LP’s “Descendo o Morro” (1958-1961), a música foi censurada.

No ano 2000, o grupo Nação Zumbi a regravou. Abaixo, selecionamos 10 sucessos de Roberto Silva, que o crítico e comentarista esportivo Alberto Helena Júnior assim definiu: “Discreto, um tanto sisudo, sua voz desliza numa implausível frequência entre a síncope maliciosa de Ciro Monteiro e o romântico veludo de Orlando Silva”.

“Seu Libório” (1935) – Alberto Ribeiro e Braguinha

Nascido no bairro da Cidade Nova, no Rio de Janeiro, Alberto Ribeiro iniciou a carreira compondo músicas para o bloco carnavalesco “Só de Tanga”, do qual participava. Formado em medicina e especializado em homeopatia, ele conheceu, em 1935, João de Barro, o Braguinha, arquiteto que também tinha pretensões musicais. Juntos, eles musicaram o filme “Alô, Alô, Brasil”. Já como parceiros inseparáveis, compuseram, no mesmo ano “Seu Libório”, choro bem-humorado que seria lançado pelo cantor Vassourinha (1923-1942) em 1941. A letra, maliciosa, conta a história de Seu Libório, protagonista da canção que tem três vizinhas. Com a morte precoce de Vassourinha, aos 19 anos, a música foi resgatada por Roberto Silva em 1958 e ganhou a sua versão definitiva.

“A Mulher Que Eu Gosto” (1941) – Wilson Batista e Ciro de Souza

Ao lado de Ciro Monteiro, Roberto Silva foi um dos sucessores do estilo de cantar samba sincopado, com rica divisão rítmica, lançada anteriormente por Luís Barbosa e Vassourinha, embora seu fraseado lembrasse o de Orlando Silva, seu cantor e modelo preferido. Por conta disso, um dos compositores mais regravados por Roberto Silva foi, justamente, o sambista Wilson Batista, de quem deu voz a sucessos como “Mãe Solteira”, “Emília”, “O Bonde São Januário”, “Oh! Seu Oscar”, “Preconceito”, entre outros. Em 1985, com a cantora Joyce, dedicou um álbum inteiro a Wilson, intitulado “Wilson Batista: O Samba Foi Sua Glória”. Na esteira dessa admiração, deu a sua versão para a “A Mulher Que Eu Gosto”, em 1958, samba lançado por Ciro Monteiro no ano de 1941.

“Emília” (1942) – Wilson Batista e Haroldo Lobo

No afamado Café Nice, Wilson Batista conheceu Erasmo Silva, com quem arquitetou um conjunto com as presenças de Lauro Paiva ao piano e de Roberto Moreno na percussão. Com a desfeita do grupo, permaneceram somente os dois primeiros, que passaram a se intitular “Dupla Verde e Amarelo”, participando, inclusive, de espetáculos na Argentina, Porto Alegre e com apresentações frequentes em São Paulo. Tempos depois, Wilson Batista escreveu com Haroldo Lobo uma música que versava sobre união desejosa de soberania. Um oportuno “café preparado” simbolizava a perfeição exaltada. Lançada por Vassourinha em 1942, foi regravada por Roberto Silva, com sucesso semelhante. Se encontrasse “Emília”, Wilson, certamente, cairia de amor a seus pés.

“Falsa Baiana” (1944) – Geraldo Pereira

Geraldo Pereira já perseguia o sucesso há algum tempo quando seu samba estourou na praça, em 1944. O começo da história data de um carnaval em que Geraldo estava no Café Nice, um dos seus pontos prediletos, e viu adentrar o recinto a esposa do compositor Roberto Martins, toda fantasiada de baiana e com uma desanimação de dar dó, ao que ouviu a fala do marido: “Olha aí a falsa baiana”. Prontamente, Geraldo começou a matutar em sua cabeça o novo samba sincopado. Ao cantá-lo para Roberto Paiva embolando as letras, já alto depois de umas e outras, recebeu um não do cantor, que se surpreendeu positivamente ao ouvir a música na voz de Ciro Monteiro ecoar nas rádios. A baiana de Geraldo Pereira deixou a mocidade louca! A música foi regravada na década de 70 por nomes como Gal Costa e Roberto Silva, repetindo o êxito que a consagrou.

“Pisei num Despacho” (1947) – Geraldo Pereira e Elpídio Viana

Geraldo Pereira deixou o morro de Mangueira depois de conflitos com seu irmão Mané, importante e temido na região por acumular os cargos de dono de tenda e funcionário da Central do Brasil, o que lhe garantia alto poderio econômico. Antes de deixar o morro, ele conheceu Cartola e Carlos Cachaça, que fundaram posteriormente a escola de samba mais famosa do local, e teve aulas de violão com Aluísio Dias e Alfredo Português, padrasto de Nelson Sargento. No ano de 1947, ele já desfrutava de certa imponência no meio do samba por conta de gravações recentes que obtiveram alta cota no gosto popular. Nesse mesmo ano, lançou outra delas, que versava sobre os infortúnios de um sujeito que atribuía tudo isso ao fato de ter “pisado num despacho”. Geraldo falava na música sobre a gafieira, um dos ritmos que o ajudaram a inventar o “samba de teleco-teco.” A música foi lançada por Ciro Monteiro e recebeu regravações primorosas de Roberto Silva, Jackson do Pandeiro e Zeca Pagodinho.

“Normélia” (1949) – Norberto Martins e Raimundo Olavo

Aos 18 anos, Roberto Silva tentou a sorte no meio artístico pela primeira vez, quando estreou no programa “Canta Moçada”, da Rádio Guanabara, no Rio. Dois anos depois, graças à ajuda dos compositores Evaldo Rui e Haroldo Barbosa, passou pelas rádios Mauá e Nacional, na época a principal emissora do país. Nessa época, teve a oportunidade de gravar o seu primeiro disco de 78 rotações, com “O Errado Sou Eu” no lado A e “Ele É Esquisito” no lado B. A convite de Paulo Gracindo, passou a integrar o elenco da Rádio Tupi e estourou de vez. Primeiro, com “Mandei Fazer um Patuá”, de Norberto Martins e Raimundo Olavo e, depois, com “Normélia”, da mesma dupla, onde, de acordo com o jornalista Alberto Helena Júnior, o músico “brinca com as modulações no estilo que seria sua marca inconfundível”.

“Exaltação a Tiradentes” (1949) – Mano Décio da Viola, Estanislau Silva e Penteado

“Exaltação a Tiradentes” nasceu de um sonho do sambista Mano Décio da Viola, que agregou, aos versos recebidos durante a noite, outros propostos por Estanislau Silva e Penteado. Antes da consagração, Décio e Silas de Oliveira haviam oferecido três sambas com o mesmo tema para a Escola de Samba do Império Serrano. Passada a frustração, a música foi cantada na avenida em 1949, mas só chegou ao disco em 1955, na gravação de Roberto Silva. Outros intérpretes não menos tarimbados a registraram posteriormente, dentre os quais Jorge Goulart com seu vozeirão e a irrepreensível Elis Regina, além de Maria Creuza, Cauby Peixoto e Mestre Marçal. Pioneiro, como o seu inspirador, é considerado o primeiro samba-enredo a ultrapassar os limites carnavalescos.

“Degraus da Vida” (1950) – Nelson Cavaquinho, César Brasil e Antonio Braga

A boemia e o samba foram uma opção de vida do compositor Nelson Cavaquinho, que tirou da boca do pai doente a inspiração para compor “Degraus da Vida”, ao ouvi-lo dizer: “Sei que estou no último quartel da vida.” Nelson trocou a palavra “quartel” por “degrau”, e teve a música chorosa lançada por Roberto Silva, em 1950, e relançada pelo mesmo Roberto em 1961, com igual êxito. A parceria ainda rendeu a Nelson Cavaquinho cerca de cem mil réis, ao incluir os nomes dos desconhecidos César Brasil e Antonio Braga na autoria da canção, como forma de acertar suas contas com os “parceiros”. É que Nelson subia regularmente os degraus do hotel de César, que nunca escreveu um verso ou tocou uma nota musical na vida.

“Notícia” (1955) – Nelson Cavaquinho, Alcides Caminha e Norival Bahia

Nelson Cavaquinho era uma figura complexa, capaz de criar sambas de contenção religiosa em meio a pileques e orgia. “Notícia”, por exemplo é mais uma parceria sua com o obscuro Carlos Zéfiro, que assina sob o pseudônimo Alcides Caminha, além de Norival Bahia. Para quem não liga o nome à pessoa, Carlos Zéfiro é o autor de quadrinhos eróticos que, entre as décadas de 1950 e 1970, ficaram conhecidas como “catecismo”. Em 1996, Zéfiro ilustrou o encarte do álbum “Barulhinho Bom: Uma Viagem Musical”, de Marisa Monte. A música “Notícia”, lançada por Roberto Silva em 1955 e regravada por Nelson Cavaquinho em 1977, no disco intitulado “Os Quatro Grandes do Samba”, que ele dividiu com Guilherme de Brito, Candeia e Elton Medeiros, traz à tona as entranhas de um relacionamento entremeado por traições e amadurecimento.

“Escurinho” (1955) – Geraldo Pereira

A última música de Geraldo Pereira, lançada em 1955, na voz do “padrinho” – assim ele o chamava – Ciro Monteiro, representa em síntese o universo primordial do compositor, com a batida descompassada e, a princípio mal compreendida, que ele confraternizou com o samba e a bossa nova. Naquele ano, rezaria a lenda propagada, entre outros, pelo próprio autor do ato, Geraldo seria abatido com um soco pelo capoeirista pernambucano João Francisco dos Santos, o Madame Satã, morrendo aos 37 anos. No entanto, há quem discorde dessa afirmação, e diga que a causa da morte foram os problemas intestinais que Geraldo sempre carregou, agravados pela bebida e pelo soco. Sobre isso, não há pareceres definitivos nem que estabeleçam o fim de todas as dúvidas, mas o legado de Geraldo Pereira, esse sim, é inquestionável, basta uma ouvida de canto de orelha em “Escurinho” – companheiro da “Escurinha”, também criada por ele – gravado com maestria por Roberto Silva, somente para uma pequena ideia do que se costuma falar a respeito do inventivo compositor, tanto desordeiro quanto talentoso.

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