Conta Zezinho que nasceu no miolo do nordeste, no coração do polígono das secas, região com precipitação pluviométrica de 700 a 900mm por ano, de 700 a 900 litros de água por metro quadrado por ano, enquanto na região amazônica vai de 2400 a 5000 litros por metro quadrado.
Devido as grandes ventanias, os potentes redemoinhos, a verticalidade causticante do sol, o solo poroso e o lençol freático muito profundo, a seiva da vida, a água, é mais valorizada do que ouro ou diamante em qualquer fase da vida e em todas as estações do ano.
Para se atingir a água nesta região, a profundidade de um poço artesiano vai de 380 a 1000 metros, um quilometro de chão abaixo, impossível para o homem do campo que só domina a enxada, a foice e o cavador, não existe água superficial.
Para a possibilidade e a existência de qualquer tipo de vida, são construídos pelos braços humanos e os lombos do animais de carga, barreiros ou pequenas poças d'água, que acumulam água nos períodos de chuvas, que acontece, por ano, de 04 a 05 meses, quando chove.
Como um prato de barro, com 30 a 60 metros de boca e dois de fundura ao atingir progressivamente o seu centro. O espelho d'água de um barreiro, com estas dimensões, permite que mais de 30% do precioso líquido evapore e seja consumido pelo incandescente sol, as lufadas dos ventos quentes e alguns besouros, os de carapassas queratinosas pretas, que sorvem a água da umidade do ar. Outros 30% do líquido armazenado, some no seu leito, sugado pelo poroso solo, mesmo compactado pelos cascos dos animais ou os braços dos homens com apiladores de madeira de 10 a 15 quilogramas, acunhados, verticalmente, num cabo roliço de canafista, jurema, umburana ou umbuzeiro, sobrando para os serranos menos de 40% para a manutenção da vida. Com este modo, a água vai ficando escassa e concentrada, até chegar ao ponto de lama, inadequada para o consumo.
Os barreiros são abastecidos pelas águas que correm nas estradas, chamadas de levadas, construídas pelo homem, muitos secam em menos de 06 meses. Nestas águas correm todos os tipos de materiais que se encontram no leito e no aceiro do caminho, pois nelas, encravadas no árido corpo da caatinga, trafegam os homens e todas as outras espécies de animais: os que rastejam, inclusive os jabutis do sertão, que não sabem nadar; os que pulam, os que mamam e os que voam; dos que nadam, apenas os sapos cururus e as rãs semelhantes aos que vivem nas zonas secas da Australia.
No seu leito bebem o sol, os ventos, a terra, os homens, os animais domésticos e os selvagens, todos no mesmo patamar e sem diferenciação de espécies, a razão é o respeito e a manutenção do equilíbrio da vida, quem mais bebe é o astro rei, o sol.
A qualidade da água não é boa, nela encontram-se todos os tipos de contaminações: estercos de gado pé duro, cavalos pangarés, muares, cães, gatos e dos xerófilos asininos, ovinos e caprinos; dejetos e corpos sem vidas de animais pequenos, como batráquios, repteis, pássaros, pequenos mamíferos e de insetos, pois é uma área a céu aberto e repleto de tudo que se encontram na estrada nas épocas chuvosas; períodos que funcionam como parques de diversão para a meninada nos raríssimos, reconfortantes e deliciosos banhos de chuva.
A água armazenada é de cor amarelo tangerina, amarelo barrento devido a alta concentração de ferro e dos dejetos trazidos pelas estradas e pelos ventos. Quem purifica este riquíssimo líquido, são os raios solares que viajam 150 milhões de quilometros, a uma velocidade de 300mil quilometros por segundo, durante 8,5 minutos.
Com o sol a pique e em queda vertical, os raios atingem o espelho d'agua com temperatura superior a 40 graus centígrados por um período de 04 a 06 horas, indo até o fundo lamacento eliminando mais de 99% dos fungos, parasitas e bactérias. Ao chegar ao pote, os mais estudados utilizam a Pedra Hume como purificante e precipitador da lama, clareando a água. Neste intervalo de tempo, a miragem cozinha o lombo de todo o sertão; o infinito do céu azulado, sem nenhuma nuvem, deixa passar a quente e energética claridade que castiga as costas dos resistentes homens do campo, dos barrigudos meninos e meninas, e das mulheres dos calcanhares rachados, pernas varicosas, partes pudendas dilatadas e buchos quebrados devido as seguidas gravidezes.
O sol resseca e retira o verde das copas dos vegetais da caatinga, pintando-as de cinza, principalmente dos umbuzeiros, gerando sombras que ficam ocupadas por todos os tipos de animais à procura de resfrescar os corpos, até mesmo os cascudos jabutis e as descascadas cobras, notadamente as cascavéis, que com os seus chocalhos no fim da calda afujetam os predadores e atraem as suas presas. Foi neste cenário que o menino Zezinho nasceu, se criou e conheceu o mundo.
Neste bioma e no seu ecossistema, tendo como amigos a natureza, os animais que mamam, as aves domésticas e os pássaros, alguns besouros, notadamente os mangangás, libélulas e borboletas que o Zezinho nasceu.
Pela manhã, ao acordar, tinha direito, individualmente, a 500 ml d'agua para lavar o rosto; à noite, ao deitar, no máximo 1500 ml para lavar os pés, geralmente compartilhados com os outros irmãos e mais 500 ml, individualmente, para enxaguá-los, banho apenas uma vez por semana, com no máximo 3000 ml. Quem lavava os lençõis e as redes, eram os puros e esterelizantes raios solares oriundos dos céus, e que queimavam os grossos panos estendidos nas cercas de varas ou arames farpados por duas ou três horas, eram importantes serem recolhidos para virarem comidas do animais, nodamente o gado pé duro ou os caprinos.
Assim foi forjado a resiliência do menino Zezinho e de todos os seus irmãos, quase xerófilos, que nasceram naquele abadonado cafundó, que viveram e sobreviveram às agruras naturais dos tempos e vivem hoje num mundo melhor, será que vivem!?.
Salvador, 08 de setembro de 2023
Iderval Reginaldo Tenório
Relato de um Serrana verdadeira
LEMBRANÇAS DOS MEUS PAIS -
(José Miguel e Dona Antônia)- A Serra onde nascemos.
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