A calçola de tia Zizinha
EM DOIS ATOS
I
Tia Zizinha
Apesar de franzina, Dona Zizinha era uma setentona
valente. Semblante calmo, voz firme e olhar seguro, empunhava
respeito. Nem só os seus sobrinhos, mas todos a chamavam de
Tia Zizinha. Era quem organizava as quermesses, as partidas de
futebol, as lapinhas, as gincanas, as torcidas organizadas e as festas do
milho.
Quando jovem, ganhou diversos concursos de Rainha
da Paróquia. Embora pequena e sequinha era um verdadeiro furacão ou
um vulcão em erupção.
Dezembro de 1969, a cidade encontrava-se em chamas, população duplicada devido a presença dos visitantes para a maior vaquejada da região. Cavalos espalhados em todos os recantos, bois nos currais, caminhões, caminhonetes, carros de boi e carroças enchiam as ruas e os bosques. Carros de som martelando os ouvidos com canções sertanejas aproximando os apaixonados. Rodas gigantes, canoas, tiro ao alvo e muita comida regional completavam o cenário do grande parque de exposição, tudo idealizado, organizado e executado por tia Zizinha.
O relógio marcava 12 horas, a conversa rodeava a farta mesa do almoço, o papo solto campeava na imensa sala da amada tia. Zezinho, sempre tirado a conversador, iniciou uma discussão sobre a vida, a grandeza do universo, a importância do ser humano e o quanto de orgulho possuem certas classes sociais, apesar da insignificância do ser humano diante da complexidade, dos segredos, das incertezas e dos mistérios da vida.
Depois de longa prosa filosófica, campesina, folclórica, genética e cultural, em tom de deboche, Zezinho falou para a tia Zizinha:
- Tia, a senhora não vê neste mundão de meu Deus, esses indivíduos que se dizem importantes, bonitos, orgulhosos, cheios de soberbas etc e etc.? eles e todos nós somos uns bostas, somos uns merdas Tia Zizinha, uns merdas. Aliás tia Zizinha, nós e bosta somos a mesma coisa, basta um mosquito, uma bactéria, um vírus e lá estamos debaixo do chão. Nós não somos nada, basta um dia sem um banho, e lá está a inhaca.
Tia Zizinha parou, pensou, matutou e de imediato falou para todos em voz alta:
- Nós não, meu filho, me tire dessa corriola, vocês sim. Vocês que estudaram, se diplomaram, moram e moraram na capital e são doutores, juÍzes e professores podem se considerar bostas, podem se achar uns merdas, porque eu sou um mero pum.
Um pum silencioso, sem odor, frouxo e abafado, isto é, um pum fajuto, escondido e que não tem direito a voz. Pra você ver, nem zoada o coitado faz. Eu, seu pai, sua mãe e os seus tios somos uns projetos de bosta, ainda falta muito, e nem sei se um dia seremos bosta, acho que daqui para frente, seremos sempre prenúncios de bosta. Bosta com formato, odor e cor de bosta meu filho, só na próxima geração.
Após gostosas e efusivas gargalhadas, Zezinho retrucou :
- É tia, eu não sei por que tanto orgulho, tanto orgulho besta, pois todo mundo, do mundo, tem por trás uma bunda. Umas batidas, outras avantajadas, umas duras e outras moles, mas todos têm, todos Tia Zizinha, todos os viventes do mundo, têm uma bunda colada atrás.
Pensou que havia falado tudo, achava que era o sabichão e tinha dado o tiro de misericórdia no acalorado papo. A tia não contou conversa, com o dedo em riste, olhos arregalados e em tom de advertência, abriu a boca e em voz alta, exclamou a todos que estavam na sala:
- E ainda por cima, meu filho, ainda por cima Zezinho, furaaadas!
Este é o perfil da minha velha tia Zizinha. Tem espostas na ponta da língua e para todas as perguntas.
II
A vaquejada
Pôr do sol de domingo, Tia Zizinha no comando da festa.
Vestido vermelho-rodado, chicote de couro cru na mão direita, chapéu de massa na esquerda e uma bota, cano longo, que beirava o joelho, era uma verdadeira amazonas. Pista limpa, rapazolas pendurados nos mourões da cerca de madeira, moças de minissaias saboreando maçãs do amor, velhos e crianças nas arquibancadas de tábuas agrestes. As cancelas e os portões fechados, tudo pronto para a abertura do evento.
Sob os aplausos da plateia, entra na pista a tia Zizinha. Sozinha, descontraída e envaidecida. Com as salvas de palmas era a toda poderosa, a rainha da festa. Ali estava a Tia Zizinha em carne, osso e outros predicados. A plateia gritava em coro e sincronizada:
“Tia Zizinha! Tia Zizinha!” várias vezes e sempre mais alto. Aquele ato poderia se chamar de, o dia da glória, da labuta, da dedicação, dia da coroação. Tia Zizinha era mais do que uma Rainha, era a imperatriz do sertão.
De repente, inesperadamente, não se sabe de onde, surgiu um boi preto de mais de metro de largura por dois de altura. Ancas largas, chifres em arcos, grandes, pretos e pontiagudos, aro de cobre nas narinas e cinta de couro apertada no vazio. Olhos avermelhados, narinas bufando que só uma maria-fumaça e cascos a furar o chão. As fortes patadas sobre o solo geravam um poeirão que chamava a atenção do público. O animal não contou conversa, nem gritaria e nem tempo ruim, partiu enlouquecido e desembestado pra cima de tia Zizinha.
Imediatamente, a tia procurou os portões, todos lacrados, procurou um abrigo, não achou. Encontrava-se no meio da pista: ela, Deus e o boi bufão. A amazonas não titubeou e com seus finos gravetos, quis fazer bonito. Levantou os braços, mostrou o belo chapéu de massa e rodou o chicote de couro cru sobre a cabeça, quis parecer que tudo fora programado, que aquilo fazia parte do espetáculo. Correu para um lado, pulou para o outro, gritou como vaqueiro: “Vai boi mandingueiro, boi marruá, boi bufão”. Procurava enganar o feroz bizão e mostrar valentia para os espectadores. Conseguiu chegar até a cerca, mas, chegou tarde, sentiu na sua traseira uma cravinetada dupla, com impulso veloz, compacto, agudo e muito forte nos atrofiados glúteos. Os chifres lhes acertaram em cheio, a tia decolou como um teco-teco sem biruta, a manobra lhe arrancou a saia, as anáguas e a combinação, de quebra, trouxe como troféu a sua vermelha calçola de brim, fundo duplo de forro grosso, acinturada com cordões de rede, embebida de suor, restos de urina e do odor ocre das partes pudendas, lavadas com economia de água e pouco sabão.
Com a setentona jogada contra a cerca, as saias lhes cobrindo as enfurecidas narinas, além das vistas vedadas pela enxarcada calçola, o boi ficou acuado, perdeu o rumo e o prumo, rodava como um peão à procura da presa, o povo pulava e gritava o ensurdecedor refrão : “ Tia Zizinha, Tia Zizinha”. O boi atordoado ficou perdido e desorientado, o boi pirou, surtou, o boi endoideceu e rodava como uma cobra cega . Com a grossa e umedecida calçola só enxergava pelas laterais, o boi endoidou.
Apesar do ataque o boi perdeu a batalha. A Tia Zizinha levantou garbosamente o machucado corpo, sacudiu a poeira, não teve outra escolha, desfilou só de califon e com as vestes de cima, três dedos abaixo dos seus dois murchos maracujás. Com a traseira batida e dois vergalhões vermelhos indo até as costas, a tia corria elegantemente para escapar do esbaforido boi.
Foi o
espetáculo do ano, a plateia foi ao chão. Os gritos ensurdecedores contagiaram
os presentes, a plateia foi ao delírio e a tia Zizinha chegou
ao estrelato, ao dia de glória.
Os narradores com
os microfones em punho, muitos ficaram roucos de tanta emoção, foi o maior
espetáculo da terra. Nos folhetins a manchete :
A CALÇOLA VERMELHA DE TIA
ZIZINHA E O BOI QUE PERDEU O RUMO.
Daquele dia em diante, a tia transfomou-se na maior estrela do sertão. Passou a frequentar as vaquejadas da ragião como celebridade. Quando o boi virou carne e realizado o maior churrasco aberto de minha terra. A Tia Zizinha, como troféu, recebeu a cabeça empalhada do boi BUFÃO e que hoje orna a sua sala.
Em todo o Cariri cearense e em toda a Chapada do Araripe, tia Zizinha passou a ser a maior celebridade e a mais requisitada mestra de cerimônia. Tia Zizinha morreu no pódio aos 101 anos, seis meses, doze dias e seis horas, como a Rainha das Vaquejadas.
Salvador, 18 de Março de 2023
Iderval Reginaldo Tenório
Um comentário:
Muitíssimo bom! Kkkkkkkkkll vou rir até 2030! Kkkkkkkkkkl Sandrinha
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