Demétrio Magnoli
A nota infame do PT que
descreveu a “eleição” de Daniel Ortega como “grande manifestação popular e
democrática” foi retirada do site para não provocar ruídos eleitorais no
Brasil. Mas ela expressa a posição do partido — e o desprezo de dois
ex-presidentes, Lula e Dilma, ao sistema democrático.
“Por que
Angela Merkel pode estar no poder por 16 anos e Ortega não?”, indagou Lula em
entrevista ao jornal El País, reativando um paralelismo cínico que mobiliza
desde sempre. Diante da resposta singela da entrevistadora — “ela não
encarcerava os opositores”—, o candidato favorito a 2022 simulou recuar, apenas
para insistir na falácia de fundo: “Se Ortega detém opositores para que não
concorram às eleições, como fizeram comigo, está equivocado”.
A democracia
brasileira propiciou que um retirante nordestino, sindicalista metalúrgico,
fundador de um partido de esquerda alcançasse a Presidência por dois mandatos.
A ditadura de Ortega aboliu a alternância no poder, prendendo as lideranças
concorrentes, inclusive os antigos companheiros de esquerda da Frente
Sandinista. No Brasil democrático, Lula foi preso por corrupção, mas um
Judiciário independente revisou o processo, declarou parcial o juiz que o
sentenciou e anulou as condenações. Na tirania nicaraguense, os juízes fazem o
que Ortega determina. Mas, segundo Lula, é tudo igual.
Lula
repete, como papagaio, os mandamentos de política internacional de Cuba.
Contudo, casualmente no mesmo dia, Dilma revelava algo mais: para o PT,
democracia é declínio, ruína histórica.
“A China
representa uma luz nessa situação de decadência e escuridão que é atravessada
pelas sociedades ocidentais.” O diagnóstico de Dilma surgiu num debate de
lançamento de um livro de propaganda do “socialismo do século XXI” chinês. Não
foi uma observação circunstancial, confinada à economia ou à tecnologia, nem a
afirmação óbvia de que o Brasil deve manter relações estáveis com seu maior
parceiro comercial, mas algo como um julgamento histórico.
O
contexto interessa. De acordo com o autor do livro, “o socialismo é a razão no
comando”. Sob tal paradigma, o “debate” enalteceu, especificamente, a “linha
justa” imposta por Xi Jinping, ou seja, a expansão do controle do
Partido-Estado sobre o setor privado da economia e mais um giro no torniquete
da repressão estatal sobre a sociedade chinesa. Ninguém, ali, mencionou Hong
Kong — mas celebrava-se a supressão das liberdades políticas na cidade
supostamente autônoma. A palavra Xinjiang não foi pronunciada — mas
comemoravam-se os crimes contra a humanidade perpetrados na região, onde
centenas de milhares de muçulmanos uigures estão internados em “campos de
reeducação”.
Lula não
vê diferença de fundo entre democracias e ditaduras. Dilma vê, sim — mas julga
as segundas melhores.
O
“socialismo real”, na sua versão soviética, costumava ser defendido pelos
intelectuais de esquerda ocidentais por meio de argumentos que giravam em torno
do “poder do proletariado” (em oposição à “democracia burguesa”). O
propagandista de Xi inova, ao substituir a antiga alegação por uma invocação
puramente tecnocrática: a razão no comando. O Timoneiro da Razão não pode
conviver com contestações “irracionais” de partidos, sindicatos ou movimentos
sociais. A Dilma que descobriu a “luz” em 2021 mandaria prender o Lula de 1980,
líder dos metalúrgicos grevistas do ABC.
O PT
nasceu como partido democrático de esquerda. Nos seus anos iniciais, não se
furtou a condenar os regimes de partido único na URSS, na China e em Cuba. Há
muito, porém, engatou marcha a ré, incorporando o discurso dos antigos partidos
comunistas. Não é que o partido pretenda estatizar os meios de produção,
instalando uma economia socialista. É que, no plano das ideias, ele renunciou
ao princípio do pluralismo político. Nos seus delírios, governaria sem
oposição: a razão no comando.
Há
consequências. A alma autoritária do PT legitima a alma autoritária da extrema
direita bolsonarista, normalizando a noção de que a democracia é um ornamento
supérfluo ou, no limite, uma enfermidade de sociedades decadentes.
Por Demétrio
Magnoli