segunda-feira, 11 de setembro de 2023

O VELHO CAVALO, A FALTA DE ESCOLA E O FUTURO DE CADA UM

 

           Saber e Saberes: O cavalo e o burro / Fábula de Monteiro Lobato                     

 

 Conheça os cavalos que mais viveram no mundo e outras curisidades —  CompreRural

                                                                                           

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                                                        O VELHO CAVALO                                                        

   Sertão do Ceará, 1915 .

1915, um almocreve de meia idade negociava nos cafundós e nos grotões da esturricada Serra do Araripe, divisa do Ceará com Pernambuco. Possuia uma parelha de animais, um belo equino, bom de marcha e um musculoso muar, bom de carga.  Longas eram as distâncias e belos os lugares percorridos na lida diária, o muar para as cargas, o equino para os passeios.

Junto ao patrão, o garboso cavalo sempre nas festas, nos namoros, nas comemorações e nas grandes corridas, era com orgulho que o belo animal desfilava naqueles sertões. Bem tratado, bem alimentado, bom capim, boa alfafa, excelente milho e tortas de caroços de algodão, era vida de rei.

Impecáveis arreios e vistosos ornamentos, manta vermelha, sela macia, peitoral ornado com estrela de metal, rédeas e alforjes de couro  de carneiro, rabicho trançado com fio de seda, boqueira e estribos de pura prata, polidos, encerados e bem conservados, vivia época de glórias.

Orgulhava-se quando nas paragens recebia preços e apreços, recebia avaliação, elogios e jamais o cavaleiro pendia para negociação. Era um animal faceiro, elegante, orgulhoso e cheio de brios, na sua garupa as mais belas donzelas e as mais macias das nádegas, era motivo de festas onde chegava com os seus passos, galopes e trotes numa demonstração de força e virilidade, qualidades estas que lhe credenciavam a cruzar semanalmente com uma bela égua ou uma formosa e elegante asinina, assim era o pomposo e pabo cavalo, cheio de garbo.

O muar, coitado, a subir ladeiras e a cortar caminhos, dois a três sacos na pesada cangalha pregada no lombo, cabresto de cordas de croá, rabicho de agave e duas puídas viseiras de couro cru em cada lado da cabeça obstruindo, tapando, abortando, escurecendo e a impedir a visão lateral, no pescoço um pesado chocalho para a sua identificação.

Nos fins de semana, durante o dia, quatro cambitos para o carregamento de lenha e feixes de canas, à noite dois caçuás para o transporte de frutas, garrafas e diversas mercadorias no seu lugarejo.

Como pastagem capim seco, algumas relvas, palhas de milhos encontradas nos arredores e nos monturos das casas. Não sabia se vivia para comer e trabalhar ou só teria comida se trabalhasse.

Longas eram as conversas entre os dois animais, o muar piado nas duas patas direitas, triste e a lamentar, porém conformado por lhes sobrar a vida para o trabalho; o outro, solto pelos terreiros, falante, garboso e risonho; ambos confabulavam sobre as suas vidas, as injustiças e quão ingrata era a vida para um deles, a diferença era exorbitante, era de fazer pena e foi assim durante muitos anos, um sempre sorrindo e a gargalhar, o outro... o outro só Deus para socorrer.

Como o tempo é o pai, o aconselhador e o diluidor dos sofrimentos, e a esperança a mãe de todos os animais, uma década se passou, os dois viventes sempre a dialogar.

Com a falta das chuvas, foram escasseando as vendas e aumentando as despesas, motivo mais do que suficiente para o almocreve diminuir os momentos de festas e de alegrias. Primeiro se desfez dos belos arreios, diminuiu a compra de alimentos especiais e como necessitava aumentar o volume das cargas passou a utilizar os dois animais na lida diária, os passeios recreativos do equino passaram a ser coisas do passado.

O belo e orgulhoso equino passou a andar na vala comum, lado a lado com o muar, a garbosa sela foi substituída por uma cangalha, um saco de cada lado e o dono escanchado no meio. Desta vez contando os passos, pulando grotas, subindo e descendo ladeiras; na ida produtos da lavoura, na volta especiarias para abastecer as bodegas da região: querosene, peixes salgados, açúcar, café e outros mantimentos, com o novo ofício desapareceram as belas éguas, as formosas asininas e os saborosos manjares. O equino passou a sobreviver nos grotões e nos monturos do esturricado sertão.

O muar continuou a sua batalha, agora como coadjuvante, apenas como complemento de cargas. Quando o produto era pouco ficava a pastar, a perambular pelas capoeiras à procura de uma relva mais hidratada, vivia a pensar na sua atual e inútil vida. Costas batidas, boca mucha, dentes falhos, amarelados, desgastados e com raias escuras. Bicheiras no lombo, espinhaço pelado, cascos rachados e juntas calcificadas, sobrevivia a perambular caatinga adentro. Como era do trabalho, se sentia um inútil. Intediado mergulhou no mundo da tristeza.

O velho equino fazia a vez do muar nas feiras livres dos vilarejos serranos. Dois sacos, o dono escanchado no meio da cangalha e o filho na garupa, subia e descia os penhascos do Araripe, já não possuía belas boqueiras de prata.

O rabicho de seda fora substituída por um de cordas a cortar a borda anal. As cilhas, agora de couro cru, com suas grosseiras fivelas a lhes causar mossas na barriga e a traumatizar os bagos aposentados, a força era agora a sua maior virtude, força para não sofrer com as pontiagudas esporas que tangenciavam os órgãos genitais, muitas vezes ferindo-os quando desacertava os passos, fruto dos janeiros acumulados e da  perda da massa muscular.

A vida endureceu para o faceiro e garboso animal, trouxe à memória os momentos de bonança ao lado do zeloso patrão nos tempos das vacas gordas, das chuvas, das farturas e dos grandes bailes. Olhava para os lados e não mais enxergava os pomares verdejantes do caminho, pois os tapa olhos laterais do muar, agora encontravam-se na sua cabeça, vedando os seus olhos, limitando a visão .

O velho cavalo não mais participava dos acontecimentos e nem das quermeces, passou a ser um animal de cargas, puramente para comer e para o trabalho, não tinha direito a pensar. Seguia a dura e pétrea regra, obediência sem contestação, vivia silente aos puxavancos do puído cabresto que lhe cortava as moídas narinas, do rabicho que magoava o tronco da calda e a borda anal, das cilhas que feriam a barriga, as virilhas e machucavam os inúteis bagos, o animal vivenciava a mais espúria entidade criada pelo dominador, o mais baixo golpe sofrido por um ser vivo, obedecer sem contestar, vivia a mais degradante forma de vida, a escravidão.

Os três foram minguando. O esquálido muar sem trabalho,  esquecido, menosprezado, deprimido e abandonado foi requisitado pelos asiáticos para a produção de  charque. O faceiro equino, agora não mais belo, sem a força da juventude, com a estima em baixa caiu no ostracismo. Calda imóvel a proteger o fim dos intestinos, esfíncter este que sofria compressões musculares periódicas ao menor grito. Relinchos abafados, olhos sempre para o chão, dentes desgastados, puídos e rentes às gengivas, musculatura minguada, pele áspera e pelos ressecados. Sem força, sem brio e sem pernas foi substituído por sangue novo, mergulhou na solidão. Não mais requisitados ao trabalho se embrenhou nos carrascos e nunca mais soube do seu paradeiro, sumiu.

O cavaleiro em crise e em desacerto envelheceu. Sem os seus amigos e provedores animais, com a chegada do progresso, dos bulidos das motocicletas e dos motores mergulhou no esquecimento e na solidão da vida.

Os dias ficaram mais longos, a falta de afazeres lhe consumiram os brios e a cidadania, caiu no esquecimento. De resto, com o exodo e à procura da sobrevivencia, os deseducados filhos, os sofridos netos e os demais descendentes migraram para as  cidades  a fim  de alimentar, como lenhas verdes,  as grandes metrópoles, ora na construção civil, ora na desconstrução da cidadania e ora a forjar uma nação servil,  sem rumo, sem prumo e sem paradeiro. 
 
Em terras estranhas batalham, lutam e sobrevivem, muitos mergulham nos mares dos desvios de condutas.  
 
                       Salvador, Ba 18 de março de 2010

Iderval Reginaldo Tenório 
 

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