quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

CHACINA NA SERRA DO ARARIPE 1928

 

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CHACINA NA SERRA DO ARARIPE

                 Madrugada do dia 23 para 24  de junho de 1928, um  desconhecido estrategista, sorrateiramente, sem  dúvida e sem remorso metralhou toda uma família, dos mais velhos ao mais novos dos Pereiras e alguns serviçais. Vasculhou todos os aposentos, quarto por quarto, sala por sala, chiqueiro por chiqueiro e conferiu cada um dos corpos. Arrumou a  sua geringonça matadeira na garupa do  animal de carga, como se fosse mercadoria à venda, montou no seu alazão  e sumiu  sertão adentro.

              Ao nascer do sol, os serranos da vizinhança jamais imaginariam que aqueles estrondos, de fogos de artifícios, na noite de São João,  fossem balas da mais afamada metralhadora europeia,  apelidada de   "  A costureira". 

Arma moderna, a Maschinen 42 alemã, o mesmo modelo usado pela sargento João Bezerra para dizimar Lampião, Maria Bonita e alguns cangaceiros, na Grota do Angico, em Poço Redondo, Sergipe, no dia 28 de julho de 1938. Arma  precussora da submetralhadora, também  alemã, a Lurdinha, companheira inseparável  do homem da capa preta, Tenório Cavalcanti, o Rei de Duque de Caxias, de 1945 a 1960, no Rio de Janeiro, o precussor das milícias cariocas.  Neste dia, Corisco o seu maior companheiro, não estava presente e alertava ao Capitão Virgulino: 

"Cumpadi, esta Grota é uma armadilha, quem for pego de surpresa não terá chance de escapar vivo, é o fim da jornada

                 Dizimanda a  família dos Pereiras, o autor não deixou pistas, não deixou um único rastro da autoria do  crime, em nada mexeu. A mesa continuou posta, cadeiras caídas, sangue salpicados nas paredes e no chão, animais domésticos circulando pelo ambiente, à procura de restos, panelas no fogão a lenha, algumas com os alimentos esturricados,  potes e barricas aos cacos, corpos  com vários orifícios transpassando os seus tórax e abdomes, alguns debruçados sobre a mesa e outros jogados ao solo, todos sem vida.

                                O AMANHÃ

                 Na Serra do Araripe,  não ficou um só cristão que não tomasse conhecimento da fatídica tragédia. Quem era aquele forasteiro? por que aniquilou toda uma família, que até aqueles dias se mostrava pacata, trabalhadora e honesta? Os Pereiras não possuíam inimigos, eram respeitados naquela redondeza. 

                 O ano  era 1928, Lampião e o seu bando, resumidos  a quatro cangaceiros, já se encontravam pelos lados da Bahia, Sergipe e Alagoas a  iniciar a segunda fase do cangaço.    De Juazeiro da Bahia, Senhor do Bonfim, Paulo Afonso, Queimadas, Rodelas, Piranhas, Macureré, Capela, Santo Antonio da Glória, Jeremoabo e outros municípios sedimentaram a reconstrução  e o  reforço  do  bando, em menos de um ano encontrava-se mais forte do que o bando da primeira fase. 

                    Na Bahia  o Virgulino Lampião construiu o seu reinado e no Raso da Catarina, norte da Bahia, a região mais inóspita do Estado, divisa com Segipe e Alagoas montou o seu quartel general, apesar de seco, possue o rio Vaza-Barris e o São Francisco.

                 Em1929,  com a patente de Capitão, adquirida em Juazeiro do Norte em 1926, pelo Padre Cicero Romão Batista e o médico baiano Dr.Floro Bartolomeu, tomou posse clandestinamente  como o governador do Nordeste, o imperador dos Sertões.

                   Os gangaceiros eram inimigos número um do Rádio, dos Jornais  e dos construtores de estradas, chamados pejorativamente de  Cassacos, pois dificultavam a sobrevivência do cangaço. Enquanto o rádio e os jornais denunciavam os seus paradeiros, as estradas permitiam chegar até eles, foi esta estratégica e outras providências implantada por Getúlio Vargas, depois de 1930, que culminou com o enfraquecimento do cangaço no Nordeste, os bandos ficaram sem fôlego.  Abrir estradas permitia a entrada de caminhões, motos e outros veículos motorizados  no incalço dos bandos do cangaço. Muitos  engenheiros  e operários morreram por trabalhar para o governo, muitos corpos foram enterrados nas margens das estradas em contrução. Zé de Nana tá de prova, como denuciou Vital Farias, em Saga da Amazonia, nas derrubadas das matas nas décadas de 30, 40, 50 e 60 nos desbravamentos da maior floresta do mundo. Assim também, foi no nordeste brasileiro, notadamente na Bahia.

                Muitos núcleos familiares se expandiam, nos redutos dos Pereiras, com os casamentos consanguíneos.   Moravam em casas equidistantes,  desde quando, uma avistasse a entrada, a lateral ou a saída da outra, era uma maneira de um proteger o  outro.

             A dúvida tomou conta da pequena população, "quem foi o forasteiro que cometeu tão sanguinário crime?"   Os familiares distantes apareceram, os corpos foram contados, muitos não possuíam documentos, os serviçais só tinham apelidos ou de quem eram descendentes: Tião, Chiquinha de  dona Zefa, Zé de seu Ciço, Pedim de dona Dodó, Mané de seu Geromo e até Dedé de seu Zé da Foice.  Todos foram sepultados em covas rasas, enfileiradas nos aceiros da velha estrada carroçal e  fincada uma cruz, de madeira verde, na cabeceira de cada monte de terra, primeiro o chefe, depois os outros por ordem de importância.

            A polícia foi informada. Compareceu timidamente. Pelo pequeno contingente de  três soldados, dois cabos, um sargento, pouca munição e seis mulas esquálidas, foi a primeira a fugir com receio de ser atacada de surpresa pelo o assassino ou os assassinos dos Pereiras, nunca mais apareceu ou tomou conhecimento dos fatos a partir daquela data. Temia a polícia, que com as suas espingardas  soca soca, não era páreo para as armas  de quem executou a chacina.

             A sede da Fazenda ficou abandonada. Os moradores mais antigos aos poucos foram se acostumando com o acontecido, os parentes mais distantes voltaram para os seus distritos. Ficaram  as indagações sobre o horrendo crime, quem teria motivos para tal desventura? roubo não foi, só poderia ser vingança, a melhor maneira de cobrar dos desafetos os males cometidos em datas anteriores, só poderia ser vingança, não haveria outra explicação, só poderia ser vingança. No nordeste é assim, fez mal a alguém, um dia, o mal será devolvido, muitas vezes com juros e correções.


                                        O PASSADO

                  Conta o velho Malaquias, uma das enciclopédias humanas da região, com os seus  90 anos de idade, que  tempos atrás, lá pelos meados de 1871, quando um jovem padre, de 27 anos de idade,  assumiu a capela do povoado Tabuleiro Grande, no Sul do Ceará, hoje Juazeiro do Norte, duas famílias de Alagoanos foram morar na  região para ficarem próximos ao jovem missionário.  Para as duas famílias, o Padre aconselhou que fossem morar na Serra  do Araripe, lá existiam muitas terras devolutas. Fossem criar caprinos, ovinos, suínos, bovinos pé duro, equino, asininos, muares e  aves, fossem   plantar mandioca, fava,  feijão de corda, de arranca e  feijão de pau, este último conhecido como  andú,  muito apreciado em toda aquela Chapada.

               As famílias se deslocaram e por manterem vínculos de  parentescos, começaram a habitar a mesma gleba de terra.   Viviam em paz, até o dia  em  que, o governo de Pernambuco resolveu legalizar as posses e criar uma escritura, houve desentendimento entre os líderes de cada família e   numa noite escura do dia 23 de junho de 1898, ano em que nasceu Virgulino Ferreira  Lampião, na cidade de Vila Bela, hoje Serra Talhada,Pe, uma das famílias aniquilou  todos os componentes adultos da outra, todavia, cometeu um grande pecado, não vistoriou todos os aposentos da casa, deixou vivo uma criança, de 09 meses de idade, que engatinhava por debaixo da cama do  infeliz casal aniquilado .

                A criança sem pais e sem parentes  foi assumida por tropeiros, os    almocreves que  cruzavam a velha serra Pernambucana com destino à mais nova vila  Nordestina, no sul do Ceará, a famosa vila do Juazeiro.    Povoado que  crescia com muitos fanáticos religiosos devido o milagre da Beata Maria de Araújo em 1889, quando na comunhão, a hóstia consagrada, saída das mãos do Padre Cícero, transformava-se em sangue na boca de uma negra beata, de 28 anos de idade. Foi difundido para o mundo, que se tratava do sangue de Jesus Cristo, episódio, que após 3 anos de estudos e sempre a se repetir, afastou o padre da igreja católica em 1992. Naquela época, final do século XIX e início do século XX, a Igreja Católica, a Europa, os bispos  e o clero de muitas nações, até aqui do Brasil falavam:

"Se Jesus Cristo tivesse que aparecer em forma de sangue, não seria pela boca de uma negra analfabeta, numa região inóspita, seca, onde o povo passa fome e das mãos de um insignificante Sacerdote dos sertões do Ceará, seria uma afronta ao mundo civilizado e jamais um milagre, só poderia ser um embuste"    

              A criança foi criada no mais diferente mundo que deveria ser criada, não tinha paradeiros, não tinha endereço fixo. À proporção que crescia, tomava conhecimento da grande chacina que aniquilou uma determinada família no topo da Serra do Araripe em 1898, ano que nascera em Vila Bela o facínora Lampião. A criança cresceu e transformou-se em um  homem sem familia, sem um norte e com uma memória vingativa.

              Naquela redondeza,  não se conhecia as suas origens e nem o seu destino, a família que cometera a esquecida e distante chacina,   encontrava-se bem instalada e próspera no cume daquela abençoada Serra.  O cangaço, que reinava na região, estava em baixa devido acordos feitos pelos governadores da época, dando total poderes à polícia de um Estado  entrar  no território do  Estado vizinho,  à caça de qualquer desordeiro, principalmente o bando de Lampião. Foi a primeira  manobra  para acabar com o cangaço, além do rádio e da construção de estradas. A este acordo foi dado o nome de : O PACTO DOS GOVERNADORES, ampliado depois de 1930 pelo governo Vargas.

             Na região só existiam cinco maneiras de sobrevivência. A primeira era ser patrão, chefe político, coronel, latifundiário e   dono do poder, a segunda era ser subserviente, capacho, jagunço, capanga ou pistoleiro,   a terceira era entrar no cangaço ou ser  coiteiro, a quarta era entrar nos quadros da policia e das volantes, pejorativamente cognominados de  "OS MACACOS DO GOVERNO", precisamente para perseguir o cangaço. Era comum a troca de lados, o jovem procurava  o que pagasse melhor e o mais interessante,  a quinta era   pertencer à sofredora classe de professores primários, funcionários públicos, agricultores de subsistência  ou criadores de pequenos animais: bovinos  pé duro, suínos, caprinos, asininos, ovinos, galináceos, cães e gatos, eram  os honestos, geralmente  dominados por todos de os reféns. O comum entre  os cinco grupos, era o credo religioso e o sincretismo religioso, todos temiam o feitiço, as pragas,  os santos e a Deus, alguns eram fanáticos ao extremo, verdadeiros idólatras. A população era constituída dos que mandavam e daqueles que obedeciam.

               Grassava no arrebol dos Pereiras,  o sentimento de congraçamento e descontração  devido o grande número de parentes casados entre si, existia calmaria. Produziam tudo que o Padre Cicero orientou na chegada  em 1871. A Chacina de 1898 era coisa do passado, tudo era "prefume e fulor", como dizia o grande Patativa do Assaré,  em Conversa de Matuto,  da obra Cante Lá Que Eu Canto Cá.

                                          A VINGANÇA

                O Jovem morava num pequeno sítio, distrito da  então e próspera cidade de  Juazeiro do Norte, na Serra do Horto ou Serra do Catolé.  Conhecia muito bem a Chapada do Araripe,  divisa do Ceará com Pernambuco, grande celeiro fóssil do Mundo, hoje fazendo parte do Geopark  do Araripe.

              O jovem procurou  familiarizar-se com os moradores do distrito dos Pereiras.  Aos poucos foi mapeando o fatídico acontecimento de 1898, foi localizando os descendentes dos familiares,  que junto com os seus pais se mudaram  para a velha serra do Araripe, a pedido do jovem padre em 1871. Ficou claro e ciente de cada componente, colheu  a história da época e como mercante compareceu à sede da fazenda e conheceu cada membro.  

             Voltou aos seus afazeres  de almocreve, de vendedor de manufaturas, bugigangas  e remédios oriundos do exterior, nada era produzido no Brasil naqueles tempos, e numa noite de são João, quando os fogos de artifícios pipocavam  nos ares da silenciosa serra, o jovem estrategista, na sorrelfa, executou o seu vingativo e mirabolante plano, eliminando de uma só vez, todos os descendentes dos Pereiras. Tomou o cuidado de vistoriar exaustivamente todos os aposentos, todos os  ambientes e arredores,  para não cometer os mesmos erros dos autores da chacina de 1898.  Com esta atitude, fechou o ciclo do grande ditado do povo nordestino: 

"quem comete um mal, um dia será vingado pela vítima, pelo filho, neto ou bisneto da vítima, um dia o crime será vingado". 

                   E foi assim que se desenrolou a grande chacina de 1928.

        Salvador,18 de Março  de 2008

            Iderval Reginaldo Tenório 

Beata Mocinha - YouTube

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