domingo, 15 de janeiro de 2023

A calçola de tia Zizinha

                                   

 CALÇOLA vermelha | Mercatore

Calçolas Eduardianas (1900-1915) | A Modista do Desterro


As versões de Helena Meirelles e Manoel de Barros moldadas por Marcos  Rezende - Artes - Campo Grande News

A calçola de tia Zizinha

Apesar de franzina, tia Zizinha era uma setentona valente.  Semblante calmo, voz firme e olhar seguro,  empunhava respeito.     Nem só os seus sobrinhos, mas todos a chamavam de Tia Zizinha.  Era  quem organizava as quermesses, as partidas de futebol, as lapinhas, as gincanas,  as torcidas organizadas e as festas do milho. 

       Quando jovem, ganhou concursos de Rainha da Paróquia. Embora pequena e  sequinha  era um verdadeiro furacão ou um vulcão em atividade.
 

Dezembro de  1969,  a cidade encontrava-se em chamas , a população duplicada devido a presença dos visitantes para a maior vaquejada da região . Cavalos espalhados em todos os recantos e baixios,  bois nos currais, caminhões , caminhonetes, carros de boi  e carroças  enchiam as ruas.  Carros de som martelando os  ouvidos com  canções sertanejas aproximando os apaixonados.  Rodas gigantes, canoas, tiro ao alvo e muita comida regional completavam o cenário do grande parque de exposição , tudo idealizado, organizado e executado por tia Zizinha. 

O relógio marcava 12 horas,  a conversa rodeava a farta mesa do almoço, o papo solto campeava na imensa sala da amada tia.  Eu, sempre tirado a conversador, iniciei uma discussão sobre a vida, sobre a grandeza do universo, a importância do ser humano e o quanto de orgulho possui certa classe social apesar da insignificância do ser humano diante da complexidade e grandeza do universo. Depois de longa prosa filosófica, campesina, folclórica, genética e cultural   em tom de deboche falei para tia Zizinha:  

- Tia, a senhora não vê neste mundão de meu Deus esses indivíduos que se dizem importantes, bonitos, orgulhosos, cheios de soberbas etc.? eles e todos nós somos uns bostas, somos uns merdas Tia Zizinha, uns merdas. Aliás tia Zizinha, nós e bosta somos a mesma coisa,  basta um mosquito, uma bactéria, um vírus e lá estamos debaixo do chão.  Veja tia, nós não somos nada, basta um dia sem um banho, e lá está a inhaca.

Tia Zizinha parou, pensou , matutou e de imediato falou para todos em voz alta: 

- Nós não, meu filho, me tire dessa corriola,  vocês sim, vocês que estudaram, que se diplomaram, moram e moraram na capital e são doutores podem se considerar bostas, podem se achar uns merdas, porque eu sou um mero pum.   Um pum silencioso, sem odor, frouxo e abafado, isto é, um pum fajuto, escondido e que não tem direito a voz,  pra você vê, nem zoada o coitado faz.  Eu, seu pai , sua  mãe e os seus tios  somos uns projetos de bosta, ainda falta muito, e nem sei se um dia seremos bosta, acho que daqui para frente  seremos  sempre prenúncios de bosta.  Bosta bosta  com formato, odor e cor  de bosta meu filho, só na próxima geração.

Após gostosas e efusivas gargalhadas retruquei: 

- É tia, eu não sei por que tanto orgulho, tanto orgulho besta, pois todo mundo do mundo tem por trás uma bunda: umas batidas, outras avantajadas, mas todos têm, todos Tia Zizinha, todos os viventes  do mundo tem uma bunda. 

Pensei       que havia falado tudo , a tia não concordou e não  contou conversa, com o dedo em riste, abriu a boca e em voz alta  advertiu a todos que estavam na sala: 

- E ainda por cima, meu filho, ainda por cima, furada.

Este é o perfil da minha velha tia Zizinha, respostas na ponta da língua e tem para todas as perguntas. 

 

 *****

 

Agora  voltando à vaquejada.  Estávamos num pôr do sol de domingo, Tia Zizinha no comando da festa. 

 Vestido vermelho-rodado, chicote de couro cru na mão direita, chapéu de massa na esquerda  e uma  bota cano longo que beirava o joelho, era uma verdadeira amazonas. Pista limpa, rapazolas pendurados nos mourões da cerca de madeira, moças de minissaias saboreando maçãs do amor, velhos e crianças nas arquibancadas de tábuas agrestes. As cancelas e os portões fechados, tudo pronto para a abertura do evento.

Sob os aplausos da plateia entra na pista a tia Zizinha, sozinha, descontraída e envaidecida.   Com as salvas de palmas era a toda poderosa, a rainha da festa, ali estava a Tia Zizinha em carne, osso e outros predicados. A plateia gritava em coro e sincronizada: “Tia Zizinha! Tia Zizinha!” várias vezes e sempre mais alto.  Aquele ato poderia se chamar de :o  dia da glória, da labuta, da dedicação, dia  da coroação.  Tia Zizinha era mais do que uma  Rainha, era a imperatriz do sertão.

De repente, não se sabe de onde,  surgiu um boi preto de mais de metro de largura por dois de altura.  Ancas largas, chifres em arcos, grandes e  pontudos, bem pontudos, aro de cobre nas narinas e cinta de couro apertada no  vazio.  Olhos avermelhados, narinas bufando que só uma maria-fumaça e cascos a furar o chão.  As fortes patadas sobre o solo geravam um poeirão que chamava  a atenção do público.  O animal não contou conversa, nem gritaria e nem tempo ruim,  partiu enlouquecido e desembestado  pra cima de tia Zizinha. 

Imediatamente a tia procurou os portões, todos lacrados. A amazona não titubeou e com seus finos gravetos quis fazer bonito.  Levantou os braços, mostrou o belo chapéu de massa e rodou o chicote de couro cru sobre a cabeça, quis parecer que tudo fora programado, que aquilo fazia parte do espetáculo.  Correu para um lado, pulou para o outro, gritou como vaqueiro,  “Vai boi mandingueiro, boi marruá, boi bufão” . Procurava enganar o valente bizão e mostrar valentia para os espectadores , conseguiu chegar até a cerca, mas,  chegou tarde,  sentiu na sua traseira uma cravinetada dupla ou um impulso veloz, compacto, agudo e muito forte nos atrofiados glúteos. Os chifres lhes acertaram em cheio, a tia decolou   como um teco-teco  sem biruta,  a manobra lhe arrancou a saia, as anáguas e a combinação, de quebra, trouxe como troféu a sua vermelha calçola de brim, fundo duplo de forro grosso , acinturada com cordões de rede , embebida de suor e do odor dos orgãos da região corporal . 

Com a setentona jogada contra a cerca ,  as saias lhes cobrindo as enfurecidas narinas, além das vistas vedadas pela calçola, o boi ficou acuado, perdeu o rumo e o prumo, rodava como um peão à procura da presa, o povo pulava e gritava o ensurdecedor refrão : “ Tia Zizinha, Tia Zizinha”.   O boi atordoado ficou perdido, desorientado, o boi pirou, surtou, o boi endoideceu e rodava como uma cobra cega . Com a grossa e umedecida calçola só enxergava pelas laterais , o boi endoidou. 

Apesar do ataque o boi perdeu a batalha, a Tia Zizinha levantou garbosamente o machucado corpo.  Ao sacudir a poeira, não teve outra escolha, desfilou só de califon e com as vestes de cima três dedos abaixo dos seus dois murchos maracujás.   Com a traseira batida e dois vergalhões vermelhos indo até as costas, a tia corria elegantemente para escapar do esbaforido boi. 

           Foi o espetáculo do ano, a plateia foi ao chão. Os gritos ensurdecedores contagiaram os presentes, a plateia foi ao  delírio e   a tia Zizinha chegou ao estrelato, ao dia de glória.

           Os narradores com os microfones em punho, muitos ficaram roucos de tanta emoção, foi o maior espetáculo da terra
. Nos folhetins  a manchete :
A CALÇOLA VERMELHA DE TIA ZIZINHA E O BOI QUE PERDEU O RUMO.  

 Daquele dia em diante nunca mais a tia organizou festas. Passou a detestar vaquejadas e como vingança comprou o boi bufão, realizando o maior churrasco aberto de minha terra. 

Na Chapada do Araripe não ficou um cristão que não saboreasse uma parte do velho boi e lá a tia  não  compareceu.  

 Como troféu  guarda na dita sala a cabeça do boi BUFÃO

Iderval Reginaldo Tenório

Noticias

Ainda hoje todo boi bravo que aparece nas vaquejadas o locutor brada em voz alta: 

___E lá vai o boi que tirou a calçola de tia Zizinha.  O boi dos chifres certeiros, o boi que aposentou tia Zizinha e  complementa a narração com diversas trovas.

“Menina me da um beijo 

Só não quero do pescoço,

Quero no bico do peito

 Do lugar que não tem osso,

Que é pra quando eu ficá velho 

Me alembrar que já fui moço.” 

Confesso que não gostei da inusitada cena e nem do inesperado espetáculo, porém,  vibro, pois não tenho culpa de ser parente de gente famosa e sobrinho da  minha querida, amada  e inesquecível tia Zizinha. 

Não perco a oportunidade de anualmente participar da maior festa do interior do Ceará, realizada no Parque de Exposição e Vaquejada Tia Zizinha, cujo símbolo é uma cabeça de boi com uma calcinha vermelha nas pontas, cravada com o magestoso TZ maiúsculo  de TIA ZIZINHA.      

 Salvador, 20 de Fevereiro de 2008.

Iderval Reginaldo Tenório

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2 comentários:

Sandritty disse...

Q massa essa história! Gostei p caramba! Vou rir até 2030! Kkkkkkkkkkkkk Eitaaaaa TZ!

Marcus Ribeiro disse...

Maravilhosa história de quem sabia "driblar", ainda que sentisse a pancada! No final de tudo, ganhava o jogo, ainda que tivesse dado impressão de ter perdido! O churrasco do boi dava sinal de uma vitória, ainda que apanhando!
A história é muito interessante, Dr. Iderval!
Mas a pergunta é: quem é parente de Tia Zizinha? Helena Meirelles ou outra pessoa?
Um forte abraço, grande amigo!