Zezinho dialoga com uma feirante sessentona.
"Tú é índio menino"?
_Não senhora, sou gente. Sou filho de dona Jovem, sou gente.
_"E o qui faiz aqui na fêra sozim, cum deiz anos de idade minino?
_Vir comprar carne de porco, peixe salgado, alho, cebola, tomate, pimentão e laranjas da Bahia, aquelas que tem um grande umbigo e são as mais doces.
_Adonde você mora?
_Na praça da Igreja N.S do Socorro, perto do tiro de guerra, no bairro do socorro.
_"Já está na escola"?
_Sim senhora, no grupo escolar padre Cícero, minhas irmãs são professoras de lá, e meus irmãos mais velhos estudam no Salesiano.
_ "Nasceram aqui mesmo?".
_Não senhora, nascemos na Serra do Araripe, só os dois mais novos nasceram aqui.
_"Tá bom minino, vá pra casa, a sua mãe precisa fazer o armôço.
_Tá minha senhora, vou primeiro no mercado, esqueci que tenho que comprar uma lata de banha de coco lá em seu Gentil, a mercearia dele fica dentro do Mercado Municipal, vou lá agora.
Com a cesta de carnaúba na mão direita e com o corpo troncho, devido o peso só de um lado, tomou o rumo do mercado pra comprar a banha, de lá o caminho de casa.
No caminho para casa, pára na rua São Pedro, defronte a uma grande loja de utensílios domésticos. Passa meia hora, de pé, ouvindo o cego Oliveira e a sua rabeca artesanal a entoar o bendito da Beata Mocinha:
"Meu Padim fez uma viagem e deixou Juazeiro sozinho".
O documentarista, músico, cantor, compositor e pedinte, cego Oliveira, no final deste romance, dá uma pausa e explica para a sua pequena plateia:
"Este foi o bendito da Beata Mocinha. Feito em 1898, quando meu Padim foi a Roma falar com o Papa Leão XIII ".
Esta pausa, além de ser para o descanso do mestre Oliveira, era para ouvir o tilintar das moedas na sua surrada azia, uma lata de embalagem de flandres, de um famoso doce da região. Lata velha, arredondada, amassada de tanto uso e quase sem as cores originais, vencidas pelas grossas mãos do gênio sem valor, quase oculto, um cidadão invisível como todos os pedintes de RUA, quase sem cidadania.
Zezinho e mais umas duas pessoas jogam um níquel nesta lata, ao ouvir o tilintar, o cego as recolhe. Pelo tamanho, tamanho e os números em alto relevo, sabe de imediato o valor de cada uma, guarda no seu bisaco de couro e volta a entoar um novo bendito, geralmente para uma nova plateia, constituída de curiosos, de idosos, analfabetos, romeiros do meu Padim e da mãe das Dores. Finalmente o menino entra da rua da Conceição e toma o caminho de casa.
_"É quage dez horas menino, por que atrasou tanto? Vá catar o feijão e cortar o toicim", reclama a sua mãe.
_Fiquei conversando com a velha que vende jatobá e depois parei para ouvir o cego Oliveira tocar alguns benditos na sua rabeca.
_"Tá bom. Cate o feijão, corte o toicim e depois vá estudar, enquanto eu ajeito os outros alimentos. Depois almoce e vá pra escola.
A casa do Zezinho, além dos móveis, possuía muitos livros. Os seus pais sempre falavam que no futuro, os conhecimentos, os livros, os lápis, os cadernos e as leituras seriam os instrumentos para se ganhar vida. As enxadas, enxadecos, carros de mão e foices seriam utilizadas apenas pelos que não estudaram. Diziam os pais de Zezinho:
" No futuro nem os animais irão pegar peso. Os homens irão utilizar máquinas e motores para pegar peso, eles vão usar o cérebro."
_Tá bom mamãe.
Vai se aproximando a hora do almoço.
É Zezinho estudando, gente chegando para visitar sua mãe, outras para pedir alguma coisa emprestada, geralmente um caldeirão, um serrote, um martelo, uma vara de espanar e até o ferro de passar roupa. Nada tira sua atenção. Perto do almoço escuta a voz de sua mãe.
_"Vá lá em dona Mocinha e compre uma penca de bananas com 12 unidades, da boa e da casca amarela.
Mais do que depressa, pega a mesma cesta e corre para a casa de dona Mocinha. No caminho sempre encontra um ajudante, este sabe que vai comprar as doces bananas. Maria, a filha de dona Mocinha, sempre doa duas ou três bananas das pequenas, de agrado, para o pequeno Zezinho e o seu colega. Os dois voltam alegres e saltitantes, saboreando as gostosas bananas nanicas. Como era bom a vida das crianças dos sertões do Ceará, principalmente a convivência com os grandes injustiçados culturais como o Cego Oliveira, muito são estes injustiçados que recebiam a alcunha de MENDIGOS, classificados como ESMOLÉS.
Para muitos, naquela época, Zezinho não era gente, Zezinho era índio. Índio cariris, xucurus ou tupinambá, Zezinho era um COREMBÊS.
Um COREMBÊS que furou a grossa bolha social, frequentou a escola, sorveu o máximo em aproveitamento e foi aos limites humanos da alfabetização interiorana, sem chegar ao artificialismo da vida. Não deixou ser atingido pelos modismos e nem pelos afastamentos da sua ancestralidade. A alfabetização foi um instrumento para conhecer as coisas do mundo, uma ferramenta para socializar-se num mundo moderno, um equipamento para desvendar e usufruir de muitos fatos negados aos excluídos.
O Zezinho se transformou em gente, um cidadão indígena, um cidadão com direitos e deveres, inclusive o de votar e de ser votado. Não saia de sua cabeça uma célebre frase dos seus pais:
"Viva do suor do seu próprio rosto".
O Zezinho hoje é um cidadão indígena e não foi contaminado pelos pensamentos mesquinhos, maldosos, falsos e oportunistas dos líderes mundiais e regionais. Apesar das agruras, Zezinho não perdeu a sua essência e diariamente ovaciona, valoriza e se orgulha de sua ancestralidade.
Zezinho é um cidadão de raízes fortes, tronco robusto, fronde ampla, seguras e muito difícil de idolatrar. Traz na mente outra frase repetida por seus pais:
"Não baixe a cabeça e nem idolatre nenhum comedor de feijão aqui na terra, se comem meu filho, também C...m".
A sua personalidade é muito resistente aos pensamentos deletérios dos pesados líderes da atualidade.
O Zezinho é um CIDADÃO.
Salvador, 18 de Março de 2025
Iderval Reginaldo Tenório
ESCUTEM O CEGO OLIVEIRA E SINTAM A DEFINIÇÃO DE SUA RABEQUINHA. É ELA, JUNTA AO SEU TALENTO DADO POR DEUS, QUE LHE PROPORCIONA UMA VIDA DIGNA. VIVE DIGNAMENTE DO SEU PRÓPRIO SUOR.
Iderval Reginaldo Tenório
3 comentários:
Dra. Ana Dulcinea. Estou esperando lançamento do seu livro!! Vc arrasa, histórias de gente da gente!! Dr.ESCRITOR!!
PARABENS, meu irmão do coração, inteligência nata!!
[24/5 23:23] Lairton: Zezinho é diferente dos 58 milhões que votaram em Bolsonaro, personalidade forte, idolatria nunca mais.
[24/5 23:26] Lairton: Temos que ser como Zezinho: pensar, analisar, e depois colocar no poder alguém que realmente possa fazer algo de diferente. Votar é obrigatório, governar bem, não! É um dever que muitos políticos não cumprem.
Lairton Marques. Temos que ser como Zezinho: pensar, analisar, e depois colocar no poder alguém que realmente possa fazer algo de diferente. Votar é obrigatório, governar bem, não! É um dever que muitos políticos não cumprem.
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