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Recentemente,
ao participar de um protesto pró-Bolsonaro, o ex-piloto de Fórmula 1 e
tricampeão mundial Nelson Piquet, notório apoiador do atual presidente
da República, não se intimidou ao ser gravado por um manifestante com
seu celular. Em alto e bom som e com um sorriso na boca, Piquet
vociferou: “Vamos botar esse Lula filho de uma p… para fora. E Lula lá
no cemitério”.
Em janeiro deste ano, o escritor Olavo de Carvalho foi mais uma das
vítimas da Covid-19. Olavo menosprezou a pandemia e a vacina, mas
sucumbiu à doença. Logo que a notícia da morte do ideólogo da extrema
direita brasileira caiu nos principais portais e nas redes sociais, uma
onda de memes invadiu a web para comemorar o óbito de Olavo.
Psicóloga especialista em saúde mental e luto, Valquiria Alcântara
diz que vivemos tempos de muita intolerância, e discursos de ódio são
disseminados, muitas vezes, de forma gratuita. Para ela, celebrar a
morte de alguém, ainda que seja comum, é uma postura reprovável.
“Desejar o mal do outro é algo que está dentro de nós? Sim, em alguma
intensidade, mas não em todo mundo, necessariamente. Às vezes, isso
está presente de forma bem sutil e até inconsciente. O ser humano
aprendeu a rir da desgraça alheia. Desejar a morte de alguém é
ultrapassar todos os limites, é uma crueldade imensa do ser humano”,
enfatiza Valquiria.
A psicóloga pondera que é fundamental saber lidar com sentimentos que
vêm acompanhados de violência, raiva e repulsa pelo outro. Entre pensar
e agir na prática para fazer mal a outro indivíduo, há uma linha tênue.
“Esse é o grande ‘x da questão’. Há pessoas que levam para a prática a
questão da violência no comportamento. São desejos de atacar o outro a
partir do momento em que ela se sente em perigo ou injustiçada”, analisa
a especialista.
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Há quem admita, no entanto, que instintos raivosos e violentos sejam
despertados sem que isso seja uma tomada consciente de atitude.
Colaboradora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), Mires
Camilo, 56, conta que já teve reações de desejar o mal ao outro e até
vibrar quando uma pessoa que não lhe era benquista se deu mal.
“Claro, a minha primeira reação, enquanto ser humano, é querer dar o
troco, fazer justiça com as próprias mãos, mas a gente tem que se
conscientizar que estamos evoluindo. Ninguém nasce pronto”, ela afirma.
Para barrar a cólera, o ódio e o desejo pela desgraça alheia, Mires
reconhece que é preciso muito esforço. Ela cita o caso do ex-ator e
pastor Guilherme de Pádua, que faleceu nesta segunda-feira (7). Pádua e
sua então esposa, Paula Thomaz, foram condenados pelo assassinato da
atriz Daniella Perez, filha da autora de novelas Gloria Perez. O crime
aconteceu em dezembro de 1992 e gerou uma profunda comoção no país,
revivida recentemente com o lançamento da série documental “Pacto
Brutal: O Assassinato de Daniella Perez”, disponível na HBO Max.
Com a morte de Guilherme de Pádua, vítima de um infarto aos 53 anos, o
que se viu na internet foram reações de celebração pelo ocorrido. “Sou
mulher e mãe e, num primeiro momento, tive aquela reação de ‘olha, que
bom (que ele morreu)’, mas eu não sou julgadora do universo. Preferi
jogar (esse sentimento) no limbo do meu pensamento para não sentir essa
energia”, conclui Mires Camilo.
Saúde mental sob riscos
“O ódio é um veneno que adoece quem toma”. É com essa frase que a
psicóloga Valquiria Alcântara comenta sobre os prejuízos à saúde mental
que uma postura sempre reativa, violenta e brutal em relação ao outro
pode causar. Quando falamos do desejo de que o alguém próximo seja
prejudicado de alguma maneira, a lista inclui desde a torcida para que
ele perca o emprego ou não consiga aquela tão sonhada vaga no concurso,
até a morte e o sofrimento dessa pessoa, que se transforma em alvo da
ira de quem o vê como um ser humano que merece o pior.
Neste contexto, a internet e as redes sociais são terreno fértil para
discursos contaminados de preconceito, intolerância e truculência. O
ambiente no qual estamos inseridos também tem muita influência sobre
nosso comportamento e nossas atitudes.
“A morte seria a punição mais severa do ponto de vista do julgamento
social e o ambiente virtual virou um território sem lei. É um espaço
aberto que muita gente encontrou para destilar veneno e ódio em nome de
uma suposta liberdade de expressão. O comportamento do indivíduo é
resultado de vários fatores, entre os quais o meio cultural e social”,
ressalta Valquiria Alcântara.
A violência e a agressividade podem ser escudos que as pessoas usam
para se proteger do outro e esconder fragilidades, medos e inquietações.
Muitas vezes, há dores malresolvidas, traumas não cuidados e conflitos
existenciais tamanhos que a única solução que a pessoa vê é explodir em
ódio e fúria. É necessário dominar nossas reações para viver em
sociedade, caso contrário a barbárie se instala definitivamente.
Segundo a psicóloga, a terapia é um caminho para aprendermos a lidar
com nossos sentimentos. Valquiria pontua que percebe as pessoas com uma
dificuldade muito grande de gerenciar as próprias emoções.
Autoconhecimento, de acordo com a especialista, é um processo essencial
pelo qual precisamos passar, por mais doloroso que possa ser em alguns
casos.
“Quando não temos essa ferramenta, nos tornamos reféns das nossas
emoções, das nossas limitações, da nossa impulsividade. A agressividade,
quando aprendemos a canalizá-la, pode ser direcionada para um caminho
que seja saudável, como faz um atleta, por exemplo”, finaliza Valquiria
Alcântara. (Com colaboração de Alex Bessas)