As Gargalhadas de seu Mocim.
Em três Capítulos.
I
A CHEGADA
As Gargalhadas de seu Mocim.
Ao adentrar, não aguentou a decoração da sala, deslumbrou-se com as centenas de livros da estante e outros esparramados nas cadeiras, como se fossem melancias no pomar. Ficou encantado com os quadros mostrando a família, o Nordeste e outros homenageando alguns pacientes.
Como um atento cinegrafista, filmou com os olhos os painéis de informações, as esculturas das coisas do sertão, as estátuas do Padre Cícero e a do Frei Damião, nada escapou das suas duas objetivas fotográficas naturais, desmanchou-se em risos. Não conseguia olhar nos olhos do médico, olhava para dentro de si e para o mundo, era um olhar de realização, de igualdade, superação, desforra, da conciência humana e do esvaziamento das mágoas, um olhar vitorioso, um olhar de cidadania, cada detalhe, mais risos. Ficou exausto de tanto sorrir. Seu Mocim deixou de ser coisa e voltou a ser gente.
"Doutor há muito tempo que não tenho dado um único sorriso, só sofrimentos, só mesmo o senhor para me fazer rir, obrigado doutor, Deus sabe o que faz.
Mais uma vez se desmanchou em intermináveis gargalhadas.
Refez-se, olhou para o médico, perguntou qual era seu interior e onde havia se formado. Começou a fazer comentários da inusitada sala.
Falou que o ambiente estava mais para museu do que para
consultório, para o passado do que para o presente ou futuro. Perguntou se
aquele rádio de 1930 funcionava, lembrou muito do seu avô e do seu
pai. Ficou assombrado quando no toque de um dos botões, surgiu um som grave, de
uma viola
pantaneira, a executar o clássico Chalana, do Mário Zan, dedilhado pela
maior violeira brasileira, considerada em todo o mundo, pela "Guitar Player", como uma das 50 maiores e em 2012, incluída na lista dos 30 maiores ícones brasileiros da guitarra e do violão, a pantaneira do Mato Grosso do Sul, Helena
Meirelles, hoje estudada em diversas universidades pelo mundo. Depois se deliciou com
um som aconchegante do velho Gonzagão, A volta da Asa Branca, do médico pernambucano Zé Dantas. Não se conteve,
levantou-se, encostou a orelha direita na parte frontal do aparelho, abaixou e
elevou o som, ficou impressionado, era igualzinho ao do seu avô.
"Doutor este rádio é igual ao do meu avô, me lembro até da sua voz, do seu cheiro, das suas mãos ressecadas e do cuidado com a sua preciosidade. Aqui estou na Fazenda do Tio Chiquim".
Não
conseguiu
ficar em silêncio. Pegou um candeeiro que estava sobre o rádio
e pronunciou o nome de sua vó. Riu ao avistar uma antiga máquina de
costura, veio à mente a sua tia Cotinha, tão boa, tão
caridosa e tão atenciosa, era a mais velha das irmãs do seu pai, era
franzina, porém decidida. Inclusive Deus a chamou, quando o Brasil foi
campeão em 1970. Não conseguiu calar quando avistou um fruto
nordestino, um jatobá, os olhos lacrimejaram, pois no seu
sertão, quando menino, era o único bocado a lhe matar a
fome quando perambulava à caça de alguns nambus, preás e juritis,
caiu em prantos.
"Ah! seu doutor como era bom, tudo era alegria. Como o mundo era bom, puro e de todos os homens da terra, a única riqueza era a família"
Os risos foram desaparecendo e aos poucos a razão foi se aproximando, e junto com a emoção, o homem começou a falar de sua vida e a explicar à filha como foi a sua infância nos cafundós da Paraíba.
Falou da raridade da água, da seca de
32, dos conselhos do Pe Cícero e o quão importante foram os
seus antepassados. Há muito não se lembrava das pessoas do seu interior, dos latidos dos cães, do cheiro dos estrumos, nos raros dias chuvosos, e nem do seu velho torrão.
Contemplando
o ambiente, sentou na cadeira do paciente, pregou os olhos num
quadro 100 X150, que mostra uma velha
estação de trem. Trilhos envelhecidos, um trem fumacento,
cambaleante e uma
criança esquálida no batente de uma choupana. Lá no fundo, uma chapada
baixa
com
arbustos cinzas, e no primeiro plano, uma alta calçada, em decomposição.
Deitado abaixo da falha marquise, que ensombreia a frente da estação, um velho cão à espera de um naco para saciar a fome. Olhou, balançou a
cabeça, mirou a face do médico e assim se
expressou .
"Doutor, valeu, só esta visita valeu, mesmo que não fique bom de minha enfermidade, valeu, mas valeu mesmo. Viajei no tempo e no espaço, voltei ao meu Seridó, senti o cheiro dos meus antepassados. Valeu."
II
A CONSULTA
Iniciei a consulta. Perguntei por suas origens, o seu Estado natal, profissão, pais, avós, das brincadeiras na infância, das namoradas, dos seus vira-latas, das festas juninas e de fim de ano, se havia tomado banho de rio, se morou em casa de sopapo, se falou e andou na época certa, se já teve sarampo, catapora, bicho de pé ou outras moléstias regionais e se já tomou alguma vacina. Indaguei a respeito dos seus filhos e dos contemporâneos do campo, do seu trajeto como ser humano e da dureza de hoje encontrar-se com 90 anos, vivo, lutando, brigando, incompreendido, injustiçado e muitas vezes desvalorizado, uma vez que, na vida só fez mesmo foi trabalhar. Labutar para educar os filhos e enriquecer o país em troca de quase nada.
A função principal era os cuidados com os filhos em todas as pripriedades da vida, da comida à educação. A função era forjá-los como cidadãos.
Neste momento notei mudanças no seu semblante, as palavras tocaram o
seu mundo e a sua vida.
Após este preâmbulo, observei com o olhar médico todo o seu corpo, parte por parte. Indaguei por sua saúde, detalhe por detalhe, ponto por ponto, sintomas por sintomas. Enquanto olhava e perguntava, os olhos observavam atentamente todos os seus pontos anatômicos, inclusive as asas do nariz e o pulsar das carótidas. Os ouvidos, como radares, escutavam sem aparelhos o som da respiração, da fala, do tossir, dos movimentos das pernas, dos braços e dos dedos, enquanto o nariz o cheirava à procura dos seus odores e dos odores das patologias. Eu o conduzir a uma macia maca, procurei edema nos membros inferiores, pulso das artérias pediosas, do calcanho, das poplíteas, femurais e das demais artérias, palpei as vísceras, os gânglios inguinais, axilares, submandibulares e os cervicais. Realizei a percussão abdominal, auscultei os pulmões e o coração, tudo parte por parte, sempre a descreve-los e olhando nos olhos de seu Mocim, depois avaliei todos os seus exames em voz alta e a comentar.
Trazia na lapela um diagnóstico sombrio e de péssimo prognóstico, era uma
doença maligna em avançado estado, inclusive com ascite e
disseminação para outros órgãos, não aguentava mais procurar médicos e sem uma
solução.
De posse dos dados, esbocei um rascunho do corpo humano, enfatizando o aparelho digestório. Localizei a origem do seu problema, martelei didaticamente órgão por órgão. Para que servem, o que fazem e como se encontravam, explanei a sua evolução.
A cada
traçada das esferográficas coloridas, seu Mocim balançava a cabeça
afirmativamente, como já soubesse de tudo.
Falei que o figado, o estômago, o baço e os intestinos são vermelhos.
As vias biliares e pancreáticas, a vesicula e o pâncreas são verdes. Os
vasos que saem e entram do lado esquerdo do coração, são vermelhos e os
que saem e entram no lado direito do coração, são azuis.
Expliquei que o homem
no país, vive em média até os 74anos, e ele com 90, já
havia ultrapassado 16 anos da média. Mandei que o mesmo relembrasse dos seus
amigos de infância, coloque em uma única mão, contando nos dedos, quantos
estavam vivos, quantos ainda saboreavam um feijão com toucinho e farinha, ele
não se conteve e complementou:
"E bem vividos doutor, bem vividos. O senhor se esqueceu das doces rapaduras das cidades de Monteiro, Souza, Cajazeiras e de Campina Grande.
Levantando o dedo indicador da mão direita, apontando-o para os céus, complementou:
"as mais doces do mundo."
Completei:
"vividos no trablho seu Mocim, no respeito, na honestidade e com seriedade,
não como muitos que se dizem importantes e só servem para subtrair o pouco
dinheirinho do povo, muitos estão exercendo cargos políticos a enganar a nação nordestina."
Retrucou seu
Mocim:
"Pura verdade doutor, pura verdade. Eduquei todos os meus
filhos com o salário da leste e com o suor do meu próprio rosto.
Na leste eu era o despachante das toneladas de algodão que a Paraíba mandava para a Inglaterra, a minha função era de compactador. O algodão vinha nos caminhões e para a carga não ocupar muito espaço nos navios, os ingleses mandaram um compactador, uma máquina de ferro para comprimir o algodão que vinha nos fardos. Esta geringonça pegava um caminhão carregado até o topo, e transformava em três ou quatro cubos de um metro por um metro. Daqui eram enviados até o Porto de Cabedelo em João Pessoa"
Mostrei o meu interesse pelo assunto e o seu Mocim orgulhosamente explanou:
"O senhor sabia que todo o algodão do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e parte do Ceará iam para os estrangeiros pelo porto do Cabedelo? A minha Paraiba doutor, fez e faz muito por este Brasil"
Eu só tenho o ABC doutor, o ABC, mas conseguir educar os meus filhos. Hoje um é engenheiro da Petrobrás, outro é Professor e o outro é Medico, médico numa cidade do interior, muito procurado pelos seus pacientes. Não é porque é meu filho não doutor, mas é um bom médico, todo mundo gosta dele, desde pequeno que é muito estudioso.
Todas as semanas, me telefona e ainda manda uma coisinha todo mês. Sei que está difícil, mas não se esquece de mim e nem da sua velha mãe.
Elevou a ressecada mão esquerda até o ombro direito da filha e falou:
Esta aqui doutor, é a Dolores, a
caçula. Estudou para Assistente Social, casou com um colega do senhor, está
muito bem e mora aqui em Salvador, trabalha no INPS.
Complementei:
Seu Mocim, é de pessoas como o senhor, que o Brasil precisa, aliás, foi o senhor quem construiu este país, contruiu com vergonha na cara e as forças dos seus braços. Naquela época, sem água encanada, estrada, luz e sem telefone; geladeira só para os ricos, os mangangões, aqueles que mandavam no povo. Só os coronéis possuíam esta tal de Frigidaire, o resto era sofrimento. Existindo água no pote, comida e um cômodo para dormir, já estava bom demais. Mesmo assim, lá estava o senhor na labuta e numa vida digna para toda a família.
O homem abriu
mais um sorriso, desta vez uma gargalhada, o sorriso da experiência, da
responsabilidade, da autoestima, da força de vontade e do orgulho
pessoal.
"Êita que doutor danado, era isso mesmo doutor, era assim mesmo."
E mais uma vez os olhos marejaram, inclusive os olhos da dedicada filha .
Foi realizado um minucioso exame físico, o que confirmou a gravidade do caso. Explicado ao paciente que se tratava de uma doença que não necessitaria de cirurgia, que poderia comer o que quisesse, desde quando não prejudicasse a sua saúde. Poderia passear, ir à praia, visitar os seus parentes na Paraíba, trazer um bom queijo coalho, uma boa goma de tapioca, uma boa farinha e doce de leite para o seu médico, e que não deixasse de comparecer à clínica nestes próximos 15 dias. Aos familiares, foi informado que se tratava de um caso inoperável devido as metástases, a gravidade e outras doenças adquiridas durante a dura vida que levou, além dos 90 anos de idade, bem vividos.
De pronto a filha disse:
"Doutor, nós queríamos ouvir mais uma opinião e pai disse que se fosse
para operar, ele não aceitaria."
A conversa continuou por mais alguns instantes. O abraço da despedida foi mais efusivo do que o da chegada, foi um abraço mais forte, do desprendimento, da conquista, o abraço como de dois velhos amigos que há muitos anos não se viam, o abraço da compaixão, da liberdade, do respito e do entendimento.
III
A NOVA VIDA
O paciente passou a ser um grande amigo, o consultório começou a fazer parte de sua vida, sempre que necessário. Muitos foram os momentos de alegrias, de puro entretenimento e muitas histórias recuperadas. Passei a frequentar a sua casa e a conhecer todos os familiares.
Usufruir de bons papos, enriquecedoras prosas e saborosas relíquias da culinária, passaram a ser rotina.
Como o tempo não perdoa e o Criador sabe o que faz, o amigo foi se familiarizando com seu quadro e tomou conhecimento da sua enfermidade. Comentava que o homem é um ser mortal e que todos têm o seu dia para falar mais de perto com Deus, encarou o quadro com consciência.
Alegre como um menino, foi plantando alegria, foi aproximando-se de si e dos familiares, até o dia de sua audiência maior com o Criador.
Exatamente, 360 dias depois, foi realizada a missa de 7º dia em homenagem ao o meu querido amigo, que muito riu, dançou, cantou e me abraçou no humilde, simples e singelo consultório, que muitas alegrias me proporciona e multiplica o número de amigos.
Nos seus últimos dias, na cabeceira do leito, ou melhor, na cabeceira de sua cama, rodeado de familiares e amigos, olhava e dizia:
"Amigo doutor, valeu, valeu
e como valeu"
Convicto de que, daqui há muitos e muitos anos, quando me encontrar quase que irreconhecível pelos janeiros acumulados, e ao chegar onde muitos já estão, não serei um estranho no ninho. Chegarei contente, cônscio do dever e missão cumprida aqui na terra. Sinto que lá, lá, onde DEUS nos espera e se for merecedor, serei muito bem recepcionado.
Foi assim que ganhei mais um amigo e assim que aumentei a minha família.
Salvador, 30 de julho de 2006
Iderval Reginaldo Tenório
Escutem do Belchior, uma imortalizada obra. Fotografia 3X4. Escutem.
Texto rico, cheio de detalhes. Por um breve momento me transportei para sala e parecia vivenciar essa conversa 💕
ResponderExcluirAbraço meu amigo doutor. Ass beth