quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

As Gargalhadas de seu Mocim.

 

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 video do leão rindo|Pesquisa do TikTok

As Gargalhadas de seu Mocim.

Em três Capítulos.


I

A CHEGADA

As Gargalhadas de seu Mocim. 

Ao adentrar,  não aguentou a decoração da sala,  deslumbrou-se com as  centenas  de livros da estante e outros esparramados nas cadeiras, como se fossem melancias no pomar. Ficou encantado com  os quadros mostrando a família, o Nordeste e outros   homenageando   alguns pacientes.

 Como um atento cinegrafista, filmou com os olhos    os painéis de informações, as esculturas das coisas do sertão,    as   estátuas do Padre Cícero e a do Frei Damião, nada  escapou das suas duas objetivas fotográficas naturais, desmanchou-se em risos. Não conseguia olhar nos olhos do médico, olhava para dentro de si e para o mundo, era um olhar de realização, de igualdade, superação, desforra, da conciência humana e do esvaziamento das mágoas, um  olhar vitorioso, um olhar de cidadania,  cada detalhe, mais risos. Ficou exausto de tanto sorrir. Seu Mocim deixou de ser coisa e voltou a ser gente.

     "Doutor há muito tempo que não tenho dado um único sorriso, só sofrimentos, só mesmo o senhor para me fazer rir, obrigado doutor, Deus sabe o que faz.

 Mais uma vez se desmanchou em intermináveis gargalhadas.

Refez-se, olhou para o médico, perguntou   qual era seu interior  e onde havia se formado. Começou a fazer comentários da inusitada sala. 

 Falou que o ambiente estava mais para museu do que para consultório,  para o passado do que para o presente ou futuro. Perguntou se aquele rádio de 1930  funcionava, lembrou muito do seu avô e do seu pai. Ficou assombrado quando no toque de um dos botões, surgiu um som grave, de uma viola pantaneira, a executar o clássico Chalana, do Mário Zan, dedilhado pela maior violeira brasileira, considerada em todo o mundo, pela  "Guitar Player", como uma das 50 maiores e em 2012,  incluída na lista  dos 30 maiores ícones brasileiros da guitarra e do violão, a pantaneira do Mato Grosso do Sul,  Helena  Meirelles, hoje estudada em diversas universidades pelo mundo.  Depois se deliciou com um som aconchegante do velho Gonzagão, A volta da Asa Branca, do médico pernambucano Zé Dantas. Não se conteve,  levantou-se, encostou a orelha direita na parte frontal do aparelho, abaixou e elevou o som, ficou impressionado, era igualzinho ao do seu avô.

    "Doutor este rádio é igual ao do meu avô,  me lembro até da sua voz, do seu cheiro, das suas mãos ressecadas e do  cuidado com a sua preciosidade. Aqui estou na Fazenda do Tio Chiquim".

Não conseguiu ficar em silêncio. Pegou um candeeiro  que estava sobre o rádio e pronunciou o nome de sua vó. Riu ao avistar uma antiga máquina de costura,  veio à  mente a sua tia Cotinha, tão boa, tão caridosa e tão atenciosa, era a  mais velha das irmãs do seu pai, era  franzina, porém decidida. Inclusive Deus a chamou, quando o Brasil foi campeão em 1970. Não conseguiu calar  quando avistou um fruto nordestino, um jatobá, os olhos lacrimejaram, pois no seu sertão, quando menino, era o único bocado a lhe matar a fome quando perambulava à caça de alguns nambus, preás e juritis,  caiu em prantos.
 

 "Ah! seu doutor como era bom, tudo  era alegria. Como o mundo era bom, puro   e de todos os homens   da terra, a única riqueza era a família"

Os risos foram desaparecendo e aos poucos a razão foi se aproximando, e junto com a emoção, o homem começou a falar de sua vida e a explicar à filha como foi a sua infância nos cafundós da Paraíba. 

Falou da raridade da água, da seca de 32, dos conselhos do Pe Cícero e o quão importante foram os seus antepassados. Há muito não se lembrava das pessoas do seu interior, dos latidos dos cães, do cheiro dos estrumos,  nos raros dias  chuvosos,   e nem  do seu velho torrão. 

Contemplando o ambiente, sentou na cadeira do paciente, pregou os  olhos num quadro 100 X150, que   mostra uma velha estação de trem. Trilhos envelhecidos,   um trem fumacento,  cambaleante e uma criança esquálida no batente de uma choupana.  Lá no fundo, uma chapada  baixa com arbustos cinzas, e no primeiro plano, uma alta calçada, em decomposição. Deitado abaixo da falha marquise, que ensombreia a frente da estação, um velho cão à espera de um naco para saciar a fome. Olhou, balançou a cabeça, mirou a face do médico e assim se expressou .

            "Doutor,  valeu, só esta visita valeu, mesmo que não fique bom de minha enfermidade, valeu, mas valeu mesmo.  Viajei no tempo e no espaço, voltei ao meu Seridó, senti o cheiro dos meus antepassados. Valeu."

 

II

A CONSULTA 

Iniciei a consulta. Perguntei por  suas origens, o seu Estado natal, profissão, pais, avós, das brincadeiras na infância,  das namoradas, dos seus vira-latas, das festas juninas e de fim de ano, se havia tomado banho de rio, se morou em casa de sopapo,   se falou e andou  na época certa, se já teve sarampo, catapora, bicho de pé ou outras moléstias  regionais e se já tomou alguma vacina. Indaguei a respeito dos  seus filhos e dos contemporâneos do campo,  do seu trajeto como ser humano e  da dureza  de hoje  encontrar-se com 90 anos, vivo, lutando, brigando, incompreendido, injustiçado e muitas vezes desvalorizado,   uma vez que,    na vida só fez mesmo foi trabalhar. Labutar para educar os filhos e enriquecer o país em troca de quase nada.

A função principal era os cuidados com os filhos em todas as pripriedades da vida, da comida à educação. A função era forjá-los como  cidadãos.

Neste momento notei  mudanças no seu semblante, as palavras tocaram o seu mundo e a sua vida.

Após este preâmbulo, observei com o olhar médico todo o seu corpo, parte por parte.   Indaguei por sua saúde, detalhe por detalhe, ponto por ponto, sintomas por sintomas.  Enquanto olhava e perguntava, os olhos  observavam  atentamente todos os seus pontos anatômicos,  inclusive as asas do nariz e o pulsar das carótidas.  Os ouvidos, como radares,  escutavam sem aparelhos o som da respiração, da fala, do tossir, dos movimentos das pernas, dos braços e dos dedos, enquanto   o nariz o cheirava à procura dos seus odores e dos odores das patologias. Eu o conduzir a uma macia maca, procurei edema nos membros inferiores, pulso das artérias pediosas, do calcanho, das  poplíteas, femurais e das demais artérias,   palpei as vísceras,  os gânglios inguinais, axilares, submandibulares e os cervicais. Realizei a percussão abdominal, auscultei os pulmões e o coração, tudo parte por parte, sempre a descreve-los e olhando nos olhos  de  seu Mocim, depois avaliei   todos os seus exames em voz alta e a comentar. 

Trazia na lapela um diagnóstico sombrio e  de  péssimo prognóstico, era uma doença maligna em avançado estado, inclusive com  ascite e disseminação para outros órgãos, não aguentava mais procurar médicos e sem uma  solução.

De posse dos  dados, esbocei um rascunho do corpo humano, enfatizando o aparelho digestório. Localizei a origem do seu problema, martelei didaticamente órgão por órgão.   Para que servem, o que fazem e como se encontravam, explanei a sua evolução. 

A cada traçada das esferográficas coloridas, seu Mocim balançava a cabeça afirmativamente, como   já soubesse de tudo. Falei que o figado, o estômago, o baço e os intestinos são vermelhos. As vias biliares e pancreáticas, a vesicula e o pâncreas são verdes. Os vasos que saem e entram do lado esquerdo do coração, são vermelhos e os que saem e entram no lado direito do coração, são azuis.

Expliquei que o homem no país, vive em média até os 74anos, e ele com 90, já havia ultrapassado 16 anos da média. Mandei que o mesmo relembrasse dos seus amigos de infância, coloque em uma única mão, contando nos dedos, quantos estavam vivos, quantos ainda saboreavam um feijão com toucinho e farinha, ele não se conteve e  complementou:

   "E bem vividos doutor, bem vividos. O senhor se  esqueceu das doces rapaduras   das cidades de Monteiro, Souza, Cajazeiras  e de Campina Grande.

Levantando o dedo indicador da mão direita, apontando-o para os céus, complementou: 

"as mais doces do mundo."

 Completei:

      "vividos no trablho seu Mocim, no respeito, na honestidade e com seriedade, não como muitos que se dizem importantes e só servem para subtrair o pouco dinheirinho do povo, muitos estão exercendo cargos políticos a enganar a nação nordestina."

Retrucou seu Mocim:

 "Pura verdade doutor, pura verdade.  Eduquei todos os meus filhos com o salário da leste e com o suor do meu próprio rosto. 

Na leste eu era o despachante das toneladas de algodão que a Paraíba mandava para a Inglaterra, a minha função era de compactador. O algodão vinha nos caminhões e para a carga não ocupar muito espaço nos navios, os ingleses mandaram um compactador, uma máquina de ferro para comprimir o algodão que vinha nos fardos. Esta geringonça  pegava um caminhão carregado até o topo, e transformava  em três ou quatro   cubos de um metro por um metro. Daqui eram enviados até o Porto de Cabedelo em João Pessoa" 

Mostrei o meu interesse pelo assunto e o seu Mocim orgulhosamente explanou: 

"O senhor sabia que todo o algodão do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e parte do Ceará iam para os estrangeiros pelo porto do Cabedelo?  A minha Paraiba doutor, fez e faz   muito por este Brasil"   

 Eu só tenho o ABC doutor, o ABC, mas conseguir educar os meus filhos. Hoje um é engenheiro da Petrobrás, outro é Professor  e o outro é Medico, médico numa cidade do interior, muito procurado pelos seus pacientes.  Não é porque é meu filho não doutor, mas é um bom médico, todo mundo gosta dele, desde pequeno que é muito estudioso.

Todas as  semanas, me telefona e ainda manda uma coisinha todo mês. Sei que  está difícil, mas não se esquece de mim e nem da sua velha mãe. 

    Elevou a ressecada mão esquerda até o  ombro direito da filha e falou:

Esta aqui doutor, é a Dolores, a  caçula. Estudou para Assistente Social, casou com um colega do senhor, está muito bem e mora aqui em Salvador, trabalha no INPS.

  Complementei:

        Seu Mocim,  é de pessoas como o senhor, que o Brasil precisa, aliás,  foi o senhor quem construiu  este país, contruiu com vergonha na cara  e as forças dos seus braços.  Naquela época, sem água encanada, estrada,  luz e sem telefone; geladeira só para os ricos, os mangangões, aqueles que mandavam no povo. Só os coronéis possuíam esta tal de Frigidaire, o resto  era  sofrimento. Existindo água no pote,  comida e um cômodo para dormir, já estava bom demais. Mesmo assim, lá estava o senhor na labuta e numa vida digna  para toda a família.

O homem abriu mais um sorriso, desta vez uma gargalhada, o sorriso da experiência, da responsabilidade, da autoestima, da força de vontade e do orgulho pessoal.

             "Êita que doutor danado, era  isso mesmo doutor, era assim mesmo."

E mais uma vez os olhos marejaram, inclusive os olhos da dedicada filha .

Foi realizado um minucioso exame físico, o que confirmou a gravidade do caso.  Explicado ao paciente que se tratava de uma doença que não necessitaria de cirurgia, que  poderia comer o que quisesse, desde quando não prejudicasse a sua saúde. Poderia passear, ir à praia, visitar os seus parentes na Paraíba, trazer um bom queijo  coalho, uma boa goma de tapioca, uma boa farinha e doce de leite   para o seu médico, e que não deixasse de comparecer à clínica nestes próximos 15 dias. Aos familiares, foi informado que se tratava de um caso inoperável devido as metástases, a gravidade e outras doenças adquiridas durante a dura vida que levou, além dos 90 anos de idade, bem vividos.

De pronto a filha disse:

             "Doutor, nós queríamos ouvir mais uma opinião e pai disse que se fosse para operar, ele não aceitaria."

A conversa continuou por mais alguns instantes. O abraço da despedida foi mais efusivo do que o da chegada, foi um abraço mais forte, do desprendimento, da conquista, o abraço como  de dois velhos amigos que há muitos anos não se viam, o abraço da compaixão,  da liberdade, do respito e  do entendimento.

                                       III

                               A NOVA VIDA 

O  paciente passou a ser um grande amigo, o consultório começou a fazer parte de sua vida, sempre que necessário. Muitos foram os momentos de alegrias, de puro entretenimento e muitas histórias recuperadas. Passei a frequentar a sua casa  e a conhecer todos os familiares.

Usufruir de bons papos, enriquecedoras prosas e saborosas relíquias da culinária, passaram a ser rotina.

Como o tempo não perdoa  e o Criador sabe o que faz,  o  amigo foi se familiarizando com seu quadro e  tomou conhecimento da sua enfermidade.  Comentava que o homem é um ser mortal e que todos têm o seu dia para falar mais de perto com Deus, encarou o quadro com consciência.

Alegre como  um menino, foi plantando alegria, foi aproximando-se de si e dos familiares, até o dia de sua audiência maior com o Criador.

Exatamente, 360 dias depois, foi realizada a missa de 7º  dia em homenagem ao o meu querido amigo, que muito riu, dançou, cantou e me abraçou no  humilde, simples e singelo consultório, que muitas alegrias me proporciona e multiplica o  número de amigos.

Nos seus últimos dias, na cabeceira do leito, ou melhor, na cabeceira de sua cama, rodeado de familiares e amigos, olhava e dizia:

"Amigo doutor, valeu, valeu e como valeu"

Convicto de que,  daqui há muitos e muitos anos, quando me encontrar quase que irreconhecível pelos janeiros acumulados, e ao chegar onde muitos já estão,  não serei um estranho no ninho. Chegarei contente, cônscio do dever e  missão cumprida aqui na terra. Sinto que lá, lá, onde   DEUS nos espera  e se for merecedor, serei muito bem recepcionado.  

Foi assim que ganhei mais um amigo e assim que aumentei a minha família.          

                  Salvador, 30 de julho de 2006

                  Iderval Reginaldo Tenório

Escutem do Belchior,  uma imortalizada obra. Fotografia 3X4. Escutem.

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12 de jan. de 2014

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