A INTERIORANA VENCEDORA.
Adolfo Ricart
Dormiu sob as
marquises por duas semanas, chegara do interior sem lenço e sem
documentos. Não possuía um naco de carne, faltavam-lhes músculos e brilho na face.
Cabelos castanhos e quebrados, pele porosa, gordurosa e mostrando finas
cicatrizes, fruto da lida no campo. O sol causticante
maltratara a vida durante a adolescência e parte da juventude, na capital duas semanas ao relento comendo não se sabe o que.
No
desespero bate
pela vigésima vez noutra porta, aldrava de metal cabeça de leão, que
reproduz um som estridente. A fechadura tem o seu trinco atado a um
longo cadarço, que é destravado na sala principal no interior do casarão .
Dos fundos da casa, aos gritos,
surge uma apavorante voz:
" Pode entrar! "
Com um puxavanco, a matrona destrava a pesada e centenária porta. Sentada numa cadeira de balanço, mesmo sem ouvir uma única palavra da visitante, que de posses apenas um saco com duas mudas de roupas, de imediato entendeu o pedido de socorro. Não agiu com compaixão, estava precisando de mais um
serviçal e assim se pronunciou para a assombrada interiorana:
" Não tenha medo se não sabe lavar, passar ou cozinhar, preciso apenas de uma ajudante para serviços
diversos. O dia começa as 6 da manhã e só termina quando a última panela for lavada"
Cabisbaixa, introspecta, olhar para o futuro, palavras atritadas e pensativa a garota responde:
"Aceito sim senhora, aceito sim, onde fica o meu quarto?"
A patroa retruca:
"Que quarto? Nos
fundos onde se guarda as tralhas, arma-se uma rede, bate-se a porta e só
se abre às 5 da manhã. Banho tomado, inhaca fora e logo-logo ajudando a
Maria na lida do café, só se come após recolher a mesa depois do último
hóspede.
Humildemente a menina confirma:
"Aceito sim senhora, já posso começar?"
A
matrona e futura
patroa pede a sua atenção mais uma vez. Com voz ríspida, fácie
mumificada, dedo em riste e olhos arregalados detalha vociferando:
"Outra coisa;
roupas limpas, bem comportadas e este lenço no cabelo, também com este corpo pode até
assombrar a hospedaria.
Toma este sabão, dá uma geral, desgrenha esta
moita da cabeça e veste este conjunto, foi da última que despedi na
semana passada, emprenhou e mandei de volta para os pais, por isso tome
cuidado e nada de trela com os vadios da rua."
Passa para a
desvalida dois conjuntos de roupas velhas, surradas, puídas, número maior do
que o seu manequim e exige pressa.
Neste dia, após o banho, a interiorana
matou a fome. Não deixou um único naco de pão,
da sopa rapou até o tacho, foi assim durante o primeiro mês quando
começou a perder o medo da cidade grande. Acostumou com o rabugento
jeito da patroa, tomou coragem e lhe dirigiu a palavra:
"Dona Gertrudes
daria para a senhora me arrumar um sabonete? não precisa ser do bom, queria também um pente com os dentes mais
afastados para não danificar os meus ressecados cabelos.
A velha retrucou na
mesma hora com um olhar reprovador. Com uma mão na cintura e a outra a
gesticular foi dura com a neófita aprendiz, desdenhando do seu
atrevimento duramente a repreendeu:
"Sabonete? pente
grosso? Olha menina, vá trabalhar que é melhor, para onde tu vais com
esta arrumação? Para onde tu vais? Tu não tens parentes aqui na cidade,
namorado não arranjas, para que diabo esta invenção? Cuida do teu
serviço e pronto. Faz uma touca, cobre estes cabelos, sabão de côco não
falta nesta casa, o que vou arrumar é um desodorante para acabar com
esta inhaca dos sovacos."
A menina não
insistiu, contudo não procurou se desviar do bom caminho. Juntava as
sobras dos sabonetes, usados pelos hóspedes, colava um ao outro e tomava
banho com diversas essências. Do seu pente arrancou-lhe os dentes
pulando um, arrancado o outro, pulando e arrancando, com este engenho
penteava os encaracolados fios e os cobria com um lenço. Com a farta alimentação,
evidente sobras, a menina foi ganhando carnes. A ausência
causticante do sol, banhos diários e a cicatrização definitiva dos finos
arranhões da lida no campo, mostrava uma delicada pele. De bom, trouxe os belos dentes
enfileirados, que após sessenta dias de escovação passaram a causar inveja.
A garota foi notada por dona Gertrudes, deixou de ser invisível. A menina tomava jeito de gente, mostrava-se
preocupada com o trabalho e não apresentava nenhuma amofinação, tinha
jeito para as coisas, desenvolvia bem, tinha futuro. A velha fez uma demonstração de carinho:
"Menina, vou te
vestir com roupas mais compostas, vi que já aprendestes a fazer o café e
pôr a mesa pela manhã, o que também me impressiona é a tua rapidez nos
serviços e sem reclamar, mas sempre reivindicando, me diga uma coisa, tu
estudastes até que ano?
A menina prontamernte responde:
"Fiz o fundamental
dona Gertrudes, o fundamental, não aprendi mais devido a distância da
escola e porque na roça é comum deixar os estudos na época das
plantações, das limpas e das colheitas. Dona Gertrudes, na roça primeiro o enche buxo; a lavoura e as criações. Para
matar a fome come-se de tudo, até xingó assado com bredo ou berdoelga (beldroega nome científico) é banquete no meu
interior, depois a educação e o conhecimento cultural. Como na
minha região só existia até o fundamental tomei rumo à capital para completar
os meus estudos".
Deixei
a minha família chorosa. Pai morreu quando eu tinha 14 anos, mãe vive
cuidando da roça, dos meus 08 irmãos mais novos e os dois mais velhos trabalham ajudando mãe na lida diária. Prometi a mãe que um dia ela iria se orgulhar de mim,
um dia ela iri subir no palco, receber comigo o meu diploma e
bater muitos retratos com uma beca de formatura. Vou ajudar todos os
meus familiares, este é o meu objetivo.
A velha não botou fé,
não levou a sério o diálogo com a nova empregada, mesmo assim a
promoveu e pela honestidade demonstrada além do café, entregou os
quartos para arrumação.
A menina passou a
acordar mais cedo, madrugava. A cozinheira não morava na hospedaria, quando chegava
tudo já estava pronto. Quintal varrido e lavado, feijão catado e de
molho, carnes cortadas e temperadas, a mesa posta e algumas novas
guloseimas a enriquecer a mesa da tradicional pensão.
Os hóspedes cada
dia mais satisfeitos, principalmente com a organização dos quartos, a limpeza dos sanitários e a impecável honestidade da
funcionária. Vez ou outra facilitavam, moedas sobre as mesas, cédulas dentro de
livros, com as pontas à mostras, mesmo assim nada a reclamar, a moça foi
ganhando confiança e com ela pequenos agrados: roupas, sapatos,
produtos de beleza e aos poucos foi se revelando.
Passado meses já
circulava na sala da televisão, com muito respeito e postura, vezes para servir um
suco, uma água, socorrer alguns com dor, servindo
analgésicos e até mesmo participando de conversas após os telejornais. A
esta altura, já procurara vaga numa escola pública para
completar os seus estudos, não conseguiu devido a idade e entrou numa
escola de aceleração, concluiu em 18 meses os três anos do
colegial.
Dona Gertrudes já se
orgulhava da sua caipira, já acreditava nas suas palavras e podia
deslumbrar um futuro melhor, um brilhante amanhã.
Nenhuma
desavença com os hóspedes, nenhuma
notícia que arranhasse a sua reputação como mulher, não dava atenção às
tentações dos moradores, exigia reciprocidade no respeito. Do trabalho
para a escola ou para a biblioteca, tudo nos conformes. A
honestidade, o trabalho e a predestinação para um mundo melhor eram as
suas marcas pétreas. A velha patroa vivia e dormia em paz.
Um belo dia, a menina pediu a palavra à patroa para comunicar um episódio da sua vida:
"Dona Gertrudes
preciso falar com a senhora, fui convidada para cuidar de um ancião. Mora com a filha num bairro nobre e só trabalharei até
às 17h, poderei estudar à noite e terei carteira assinada, o que a
senhora acha e o que me aconselha?
A velha não gostou,
como perder uma funcionária de tão boa índole, de tão
bom perfil e cheia de força de vontade? Como perder? Quis botar
gosto ruim, mas o senso de responsabilidade falou mais alto.
Não só
apoiou como também deu alguns conselhos e uma pequena ajuda financeira,
passou a ser uma orientadora, a partir daquele dia saía mais um cidadão
da informalidade.
A menina sinalizou e
foi ao encontro do novo emprego. Uma casa
fria, paredes cinzas em um bairro nobre, o limo caia pelos muros e os
escuros móveis, de madeiras de Lei, mostravam sinais de
saudosismo e de abandono. Nela morava uma senhora de meia idade e o seu pai, um viúvo na oitava década da vida que sofrera injúrias
na saúde e necessitava de ajuda para os afazeres primários.
A filha do ancião, uma funcionária da prefeitura, a recepcionou e passou as coordenadas:
"Meu pai é um homem culto, é professor universitário aposentado e tem ciúme dos seus
livros, tenha muito cuidado. Não esqueça dos seus remédios, da
alimentação e da higiene, chegarei mais cedo."
Esta era a ladainha
diária. O senhor era um sujeito de posses materiais e de pouca renda, como quase todos os professores deste país. Vivia de alguns aluguéis e de uma pequena aposentadoria, por isso morava
com a filha solteira nesta casa mal cuidada e
sem manutenção, motivo de ser este casarão quase que abandonado, apesar das
posses, não existia renda.
A menina trabalhava até às 17h, conversava
muito com o ancião e aprendia o que não existia nos livros. O trabalho
era um verdadeiro aprendizado, fazia parte da universidade da vida, recolhia-se ao seu aposento e à noite
freqüentava novos cursos preparatórios para o futuro.
O quarto ficava
nos fundos, era pequeno, como de costume nas construções de luxo das metrópoles, para o serviçal, um pequeno cubículo serviçal, porém era só seu. Tinha um pequeno
banheiro, ficava colado à cozinha e à área de serviço, dava para os
fundos da rua, avistava os carros enfileirados e outros lado a lado, não
era um quarto descente para a casa que morava, mas era um quarto só
seu, assim pensava:" para uma orelha seca já era uma vitória".
A
menina vivia como
merecia, o sol não mais queimava a sua pele, as roupas soltas e finas
revelavam o belo corpo da juventude. Peitos cheios, macios e
brilhosos, não necessitavam de
apetrechos para sustentá-los. Cintura fina, nádegas dura e levantada, pernas torneadas com toda a beleza da mocidade, panturrilhas de
causar
inveja e pés delicados, a garota no passado era maltratada.
Cuidou do ancião até o
dia em que o mesmo olhando para os belos seios da pequena, quis
massageá-los. A câmara mostrou a sua delicadeza, a reação com
urbanismo e a seriedade quando o repreendeu sem ofendê-lo. De imediato comunicou à
patroa sobre o ocorrido e com a voz segura e equilibrada falou:.
"Dona Glória me
desculpe, mas não posso mais trabalhar nesta casa, seu pai já está
recuperado, corado, com bom raciocínio e não mais precisa de uma
ajudante, ele precisa de uma cuidadora madura como
companhia, seguirei o meu caminho, o futuro me aguarda."
Dona Glória de tudo
fez para amenizar e apaziguar, sem sucesso. A bela menina partiu para o mercado.
Jornal à mão, dedo ao telefone e logo se encontrava sentada numa sala à
espera do futuro patrão.
Cabelos penteados, blusa branca, blazer preto, saia
quadriculada e sapatos pretos de salto médio. Os olhos bateram com os
olhos de um jovem senhor que adentrou à sala.
A moça pensou: "Quem seria aquele moço? Quem seria?"
O mesmo sumiu e só duas
horas depois foi revelado a sua identidade, tratava-se do seu futuro
empregador.
A garota respondeu ao entrevistador, o quarentão de horas atrás:
"Nunca trabalhei
neste tipo de serviço, só trabalhei em casa de família, se ficar estou
realizando o meu sonho, comunicarei primeiro à minha mãe, ela ficará
orgulhosa de mim, será a porta de entrada para uma nova vida, farei de
tudo para dar certo, farei de tudo."
O jovem empregador
sentiu no olhar da donzela um futuro promissor, sentiu que aquele
encontro seria um elo importante na sua vida, aquele emprego apesar de
simples seria o ponta pé inicial para uma bela e independente carreira,
seria o início do orgulho profissional esperado por sua cuidadosa e
humilde mãe, que de longe rogava a Deus por dias melhores.
No fim da entrevista o senhor de meia idade comunica o veredicto:
"Menina
o emprego é
seu, começa amanhã e faça tudo para aprender. São três meses de
experiência, depois contrato definitivo.
"Lembre-se também que não
deverá
encará-lo como emprego para o resto da vida, trata-se de mais uma etapa
, mais um degrau da sua vitoriosa trajetória, no entanto , enquanto
aqui
permanecer tem que ser com muita competência e responsabilidade."
A menina tomou conta
do ambiente. Rápida, dinâmica, amiga, interessada, limpa e inteligente
tinha muita identidade com o jovem patrão. Fez curso, fez preparo para o
vestibular, passou a ser enxergada e a enxergar o padrão como fazendo
parte de sua vida.
Relacionamento trabalhista respeitoso, conseguiram viver por um bom
tempo dias felizes e de alegrias. Como nem tudo são flores e existem
os espinhos, o ciclo terminou e a feroz interiorna se
despediu do emprego. Continuou os seus estudos, procurou novos rumos e com o
tempo foi se distanciando do passado comprometedor.
Encontrou um relacionamento e honrosamente se afastou definitivamente do seu
primeiro emprego formal, começou uma nova e longa aventura.
Ingressou
no Curso Superior colando grau 04 anos depois , sempre se superando.
Com saga pelo conhecimento e de crescer, foi perdendo o elã pelo
novo companheiro, que parou no tempo e no espaço. Um jovem de pensamento mesquinho, conservador, arcaico, sem dinamismo e sem força de vontade. A menina foi sentimentalmente se desinteressando até o afastamento dos
corpos, da pele e do diálogo.
Partiu sozinha para novas conquistas e voou para outras plagas à procura de melhores dias.
Partiu sozinha para novas conquistas e voou para outras plagas à procura de melhores dias.
Da sua mente sempre se escuta as palavras do jovem empregador:
" O céu é o limite, avante"
Este foi e sempre será a luta de mais uma vitoriosa que acredita em si e no futuro da vida.
O CEU É O LIMITE.
Iderval Reginaldo Tenório
2001
ASA BRABNCA- LUIZ GONZAGA E HUMBERTO TEIXEIRA 1947
A VOLTA DA ASA BRANCA- JOSÉ DANTAS E LUIZ GONZAGA 1951
Asa Branca/A Volta Da Asa Branca
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Provided to YouTube by RCA Records Label Asa Branca/A Volta Da Asa Branca · Luiz Gonzaga Espetáculo Das Seis E Meia ℗ 1977 SONY MUSIC ...
YouTube · Luiz Gonzaga - Topic · 8 de nov. de 2014
História dr uma verdadeira guerreira
ResponderExcluirBom texto. Bela narrativa. Desperta interesse para continuidade da leitura na busca de um final de sucesso…
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