sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

A INTERIORANA/ UMA VENCEDORA.

 


      

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                    A INTERIORANA VENCEDORA.

                                             Adolfo Ricart

Dormiu sob  as marquises por duas semanas, chegara do interior sem lenço e sem documento.  Não possuía um naco de carne, faltavam-lhes músculos e brilho na face.
 
Cabelos castanhos  e quebrados, pele porosa , gordurosa e  mostrando finas cicatrizes,  fruto da lida  no campo.  O sol causticante maltratara a vida  durante a adolescência e parte da juventude; na capital duas semanas no relento comendo não se sabe o que.

No desespero bate pela vigésima vez noutra porta, aldrava  de metal  cabeça de leão,   que reproduz um som estridente.  A fechadura tem o seu trinco atado a um longo cadarço, que é destravado na sala principal no  interior do casarão  .
 
Dos fundos da casa, aos gritos,  surge uma apavorante voz:

" Pode entrar! " 
 
Com um puxavanco, a matrona  destrava a pesada e centenária porta. Sentada numa cadeira de balanço, mesmo sem ouvir uma única palavra da visitante,  que de posses  apenas um saco com duas mudas de roupas  , de imediato entendeu o pedido de socorro. Não agiu com compaixão, estava precisando de mais um serviçal e assim se pronunciou para a   assombrada interiorana:

" Não tenha medo se não sabe lavar, passar ou cozinhar, preciso apenas de  uma ajudante  para serviços diversos. O dia começa as 6 da manhã e só termina quando a última panela for lavada"

Cabisbaixa, introspecta, olhar para o futuro, palavras atritadas e pensativa a garota responde:

"Aceito sim senhora, aceito sim, onde fica o meu quarto?"
 
A patroa retruca:

"Que quarto? Nos fundos onde se guarda as tralhas, arma-se uma rede, bate-se a porta e só se abre às 5 da manhã. Banho tomado, inhaca fora e logo-logo ajudando a Maria na lida do café, só se come após recolher a mesa depois do último hóspede.

Humildemente a menina confirma:

"Aceito sim senhora, já posso começar?"

A matrona   e futura patroa pede a sua  atenção mais uma vez. Com voz ríspida, fácie mumificada , dedo em riste e olhos arregalados detalha vociferando:

"Outra coisa; roupas limpas , bem comportadas e este lenço no cabelo, também com este corpo pode até assombrar a hospedaria. Toma este sabão, dá uma geral, desgrenha esta moita da cabeça e veste este conjunto, foi da última que despedi na semana passada , emprenhou e mandei de volta para os pais, por isso tome cuidado e nada de trela com os vadios da rua."

Passa para a desvalida dois conjuntos de roupas velhas, surradas, puídas, número maior  do que o seu manequim e exige pressa. 
 
Neste dia, após o banho, a interiorana matou a fome . Não deixou um único naco de pão , da sopa rapou até o tacho , foi assim durante o primeiro mês quando começou a perder o medo da cidade grande. Acostumou com o rabugento jeito da patroa, tomou coragem e lhe dirigiu a palavra:


"Dona Gertrudes daria para a senhora me arrumar um sabonete? não precisa ser do bom, queria também um pente com os dentes mais afastados para não danificar os meus  ressecados cabelos.

A velha retrucou na mesma hora com um olhar reprovador. Com uma mão na cintura e a outra a gesticular foi dura com a neófita aprendiz, desdenhando do seu atrevimento duramente a repreendeu:

"Sabonete? pente grosso? Olha menina, vá trabalhar que é melhor, para onde tu vais com esta arrumação? Para onde tu vais? Tu não tens parentes aqui na cidade, namorado não arranjas, para que diabo esta invenção? Cuida do teu serviço e pronto.  Faz uma touca, cobre estes cabelos, sabão de côco não falta nesta casa, o que vou arrumar é um desodorante para acabar com esta inhaca dos sovacos."


A menina não insistiu, contudo não procurou se desviar do bom caminho, juntava as sobras  dos sabonetes usados pelos hóspedes, colava um ao outro e tomava banho com diversas essências.  Do seu pente arrancou-lhe os dentes pulando um, arrancado o outro, pulando e arrancando, com este engenho penteava  os encaracolados  fios e os  cobria com um lenço. Com a farta alimentação, evidente sobras, a menina foi ganhando carnes. A ausência causticante do sol, banhos diários e a cicatrização definitiva dos finos arranhões mostrava uma delicada pele. De bom trouxe os belos dentes enfileirados que após sessenta dias de escovação passaram a causar inveja.

A garota foi notada por dona Gertrudes, deixou de ser invisível.  A menina tomava jeito de gente, mostrava-se  preocupada com o trabalho e não apresentava nenhuma amofinação, tinha jeito para as coisas, desenvolvia bem, tinha futuro. A velha fez uma demonstração de carinho:

"Menina, vou te vestir com roupas mais compostas, vi que já aprendestes a fazer o café e pôr a mesa pela manhã, o que também me impressiona é a tua rapidez nos serviços e sem reclamar, mas sempre reivindicando, me diga uma coisa, tu estudastes até que ano?
 
A menina prontamernte responde:

"Fiz o primário dona Gertrudes, fiz o primário, não aprendi mais devido a distância da escola e porque na roça é comum deixar os estudos na época das  plantações, das limpas e das colheitas.  Dona Gertrudes , na roça  primeiro o enche buxo; a lavoura e as  criações. Para matar a fome  come-se de tudo, até xingó assado com  bredo ou berdoelga   (beldroega nome científico)  é banquete no meu interior, depois a educação e o conhecimento cultural, como  na minha região só existia o primário tomei rumo à capital para completar os meus estudos"

Deixei a minha família chorosa, pai morreu e mãe vive cuidando da roça , prometi a mãe que um dia ela vai se orgulhar de mim, um dia ela vai subir no palco ,  receber comigo o  meu diploma  e   bater muitos  retratos com uma beca  de formatura. Vou ajudar  todos os meus familiares, este é o meu objetivo.

A velha não botou fé, não levou a sério o diálogo com a nova empregada, mesmo assim a promoveu e pela honestidade demonstrada  além do café, entregou os quartos para arrumação.

A menina passou a acordar mais cedo, madrugava.  A cozinheira não morava na hospedaria, quando chegava tudo já estava pronto. Quintal varrido e lavado, feijão catado e de molho, carnes cortadas e temperadas, a mesa posta e algumas novas guloseimas a enriquecer a mesa da tradicional pensão.
 
Os hóspedes cada dia mais satisfeitos, principalmente com a organização dos  quartos,  a limpeza dos sanitários e  a impecável honestidade da funcionária. Vez ou outra  facilitavam, moedas sobre as mesas, cédulas dentro de livros com as pontas à mostras e mesmo assim nada a reclamar, a moça foi ganhando confiança e com ela pequenos agrados: roupas, sapatos, produtos de  beleza e aos poucos foi se revelando.

Passado meses já circulava na sala da televisão com muito respeito, vezes para servir um suco, uma água, para socorrer alguns com dor, servindo  analgésico e até mesmo participando de conversas após os telejornais. A esta altura  já procurara vaga numa escola publica para completar os seus estudos, não conseguiu devido a idade e entrou numa escola de aceleração, concluiu  em 18 meses  os três anos do colegial.

Dona Gertrudes  já se orgulhava da sua  caipira, já acreditava nas suas palavras e podia deslumbrar um futuro melhor, um brilhante amanhã. 
 
Nenhuma desavença com os hóspedes, nenhuma notícia que arranhasse a sua reputação como mulher, não dava atenção às tentações dos moradores , exigia reciprocidade no respeito. Do trabalho para a escola ou para a biblioteca ,  tudo nos conformes . A honestidade, o trabalho e a predestinação para um mundo melhor eram as suas marcas pétreas. A velha patroa vivia  e dormia em paz.
 
Um belo dia , a menina pediu a  palavra à patroa para comunicar um episódio da sua vida:

"Dona Gertrudes preciso falar com a senhora, fui convidada para cuidar de um ancião. Mora com a filha  num bairro nobre e só trabalharei até às 17h, poderei estudar à noite e terei carteira  assinada, o que a senhora acha e o que me aconselha?

A velha não gostou, como perder uma funcionária de tão boa índole, de tão bom perfil e cheia de força de  vontade? Como perder? Quis botar gosto ruim, mas o senso de responsabilidade  falou mais alto.
 
Não só apoiou como também deu alguns conselhos e uma pequena ajuda financeira, passou a ser uma orientadora, a partir daquele dia saía mais um cidadão da informalidade.

A menina sinalizou e foi  ao encontro do novo emprego, uma casa fria, paredes cinzas em um bairro nobre, o limo caia pelos muros e os escuros móveis de madeiras de Lei mostravam sinais de saudosismo e  de abandono.  Nela morava uma senhora de meia idade  e o seu pai,  um viúvo na oitava década da vida que sofrera injúrias na saúde e necessitava de ajuda para os afazeres primários.
 
A filha do ancião, uma funcionária da prefeitura,  a recepcionou e passou as coordenadas:

"Meu pai é  um homem  culto, é professor aposentado e tem  ciúme dos seus livros, tenha muito cuidado.  Não esqueça dos seus remédios, da alimentação e da higiene, chegarei mais cedo."

Esta era a ladainha diária. O senhor  era um sujeito de posses materiais  e de pouca renda, vivia de alguns aluguéis e de uma pequena aposentadoria, por isso morava com a filha solteira nesta casa mal cuidada  e sem manutenção, motivo de ser este  casarão quase que abandonado, apesar das posses, não existia renda.
 
A menina trabalhava até às 17h, conversava muito com o ancião e aprendia o que não existe nos livros.  O trabalho era  um verdadeiro aprendizado, recolhia-se ao seu aposento  e à noite freqüentava novos cursos preparativos para o futuro.

O quarto ficava nos fundos, era  pequeno, mas era só seu.  Tinha um pequeno banheiro, ficava colado à cozinha e à  área de serviço, dava para os fundos da rua, avistava os carros enfileirados e outros lado a lado, não era um quarto descente para a casa que morava, mas era um quarto só seu, para uma orelha seca já era uma vitória.

A menina vivia como merecia, o sol não mais queimava a sua pele,  as roupas soltas e finas revelavam o belo corpo da juventude .  Peitos cheios, macios e brilhosos, não necessitava de apetrechos para sustentá-los. Cintura fina, nádegas dura e levantada , pernas torneadas com toda a  beleza da mocidade, panturrilhas de causar inveja e pés delicados  , a garota no passado era maltratada.

Cuidou do ancião até o dia em que o mesmo olhando para os belos seios da pequena,  quis massageá-los. A câmara mostrou a sua delicadeza, a  reação com urbanismo e a seriedade quando  o repreendeu sem ofendê-lo. De imediato comunicou à patroa sobre o ocorrido e com a voz segura e equilibrada falou:.

"Dona Glória  me desculpe, mas não posso mais trabalhar nesta casa, seu pai já está recuperado, corado, com bom raciocínio e não mais precisa de uma ajudante, ele precisa de uma cuidadora madura  como  companhia, seguirei o meu caminho, o futuro me aguarda."

Dona  Glória de tudo fez para amenizar e apaziguar, sem sucesso,  e a bela menina partiu para o mercado. 
 
Jornal à mão, dedo ao telefone e logo se encontrava sentada numa  sala à espera do futuro patrão.
 
Cabelos penteados, blusa branca , blazer preto, saia quadriculada e sapatos pretos de salto médio. Os olhos bateram com os olhos de um jovem senhor que adentrou à sala.  
 
A moça pensou: "Quem seria aquele moço? Quem seria? O mesmo sumiu  e só duas  horas depois foi revelado a sua identidade, tratava-se do  seu futuro empregador.
 
A garota respondeu ao entrevistador, o quarentão de horas atrás:

"Nunca trabalhei neste tipo de serviço, só trabalhei em casa de família, se ficar estou realizando o meu sonho, comunicarei primeiro à minha mãe, ela ficará orgulhosa de mim, será a porta de entrada para uma nova vida, farei de tudo para dar certo, farei de tudo."

O jovem empregador sentiu no olhar da donzela um futuro promissor, sentiu que aquele encontro seria um elo importante na sua vida, aquele emprego apesar de simples seria o ponta pé inicial para uma bela e independente carreira, seria o início do orgulho profissional esperado por sua cuidadosa  e humilde mãe  que de longe rogava a Deus por dias melhores. 
 
No fim da entrevista o senhor de meia idade comunica o veredicto:

"Menina o emprego é seu, começa amanhã e faça tudo para aprender. São três meses de experiência, depois contrato definitivo.
 
 Lembre-se também  que não deverá encará-lo como emprego para o resto da vida, trata-se de mais uma etapa ,  mais um degrau da sua vitoriosa trajetória, no entanto , enquanto aqui permanecer tem que ser com muita competência e responsabilidade.

A menina tomou conta do ambiente.  Rápida, dinâmica, amiga, interessada, limpa  e inteligente tinha muita identidade com o jovem patrão. Fez curso, fez preparo para o vestibular, passou a ser enxergada e a enxergar o padrão como fazendo parte de sua vida.
 
Relacionamento trabalhista respeitoso,    conseguiram viver por um bom tempo  dias felizes e de alegrias.  Como  nem tudo são flores e existem os espinhos, o ciclo terminou e a feroz interiorna se despediu do emprego.  Continuou os seus estudos,   procurou novos rumos e com o tempo foi se distanciando do passado comprometedor.
 
Encontrou um  relacionamento e honrosamente se afastou definitivamente do seu primeiro emprego  formal , começou uma nova e longa aventura.
 
Ingressou no Curso  Superior colando grau 04 anos depois , sempre se superando. Com saga pelo  conhecimento e de crescer, foi perdendo o elã pelo  novo companheiro, que parou no tempo e no espaço . Um   jovem de pensamento mesquinho, conservador, arcaico, sem dinamismo e sem força de vontade. A menina foi  sentimentalmente se desinteressando  até o afastamento dos corpos, da pele e do diálogo. 

Partiu sozinha para novas conquistas e voou para outras plagas à procura de melhores dias.
 
Da sua mente sempre se  escuta as palavras do jovem empregador:
                               " O céu é o limite, avante"
 
Este  foi e sempre será a luta de mais uma vitoriosa que acredita em si e no futuro da vida.
 
O CEU É O LIMITE.

Iderval Reginaldo Tenório 
2001

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