sexta-feira, 1 de abril de 2022

A morte e o processo de morrer: ainda é preciso conversar sobre isso

 

 

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A morte e o processo de morrer: ainda é preciso conversar sobre isso


Resumo

Objetiva-se refletir sobre o processo de morte e morrer e dos cuidados necessários associados a essa fase da vida das pessoas que vivenciam a morte e de suas famílias, visando contribuir para o debate da educação para a morte e da humanização do processo de morte e morrer. A morte é uma fase da vida e está presente no cotidiano dos profissionais de saúde, mas o modelo de atenção à saúde não se mostra efetivo para lidar com as demandas das pessoas e de suas famílias na morte. Há muitos desafios a serem enfrentados na formação profissional, como limitações nos currículos e na abordagem multicultural da morte. Privilegia-se o ensino da tecnociência, com pouco espaço para a abordagem dos aspectos emocionais, espirituais e sociais do ser humano. Concluiu-se que é preciso conversar mais sobre a morte e o processo de morrer, ampliar a geração de conhecimentos sobre o tema e a aquisição de habilidades profissionais para lidar com os familiares e com as situações de cuidados de fim de vida, com a morte no cotidiano assistencial e com os próprios profissionais que vivenciam tais experiências de cuidado.

Palavras-chave: Morte; Cuidados Paliativos; Enfermagem.

 

INTRODUÇÃO

A morte e o processo de morrer são fenômenos que geram angústia, medo e ansiedade e, apesar de fazerem parte da vida, ainda são considerados tabus.1,2 As atitudes das pessoas em relação à morte são influenciadas por sistemas de crenças pessoais, culturais, sociais e filosóficas que irão moldar seus comportamentos conscientes ou não.3

No cuidado em saúde, cotidianamente os profissionais se deparam com o sofrimento físico, emocional, social e espiritual das pessoas e, em muitos casos, com situações de difícil resolução. O modelo de atenção à saúde baseia-se em prevenção, diagnóstico, tratamento efetivo e cura de doenças, mas diante da incurabilidade de determinadas doenças esse modelo se mostra ineficaz.4 Aliviar sintomas, nesse caso, requer medicamentos, mas também abordagens aos sintomas emocionais, sociais e espirituais, bastante complexos de se lidar.

Estágios avançados de determinadas doenças, como o câncer, por exemplo, são situações temidas por estarem atreladas ao sofrimento físico e moral, à dor, à mutilação, e à morte. Comumente o sofrimento se estende por toda a família e amigos, gerando medo e insegurança e, geralmente, são poucos os profissionais preparados para lidar com toda a complexidade de um paciente com doença avançada e em progressão.

De modo geral, há carência de debates nas escolas de ensino fundamental, médio e superior, demandando ampliação do escopo da educação para a morte, em face da interdição do tema.2 Na enfermagem, há muitos desafios a serem enfrentados na formação, tais como as limitações nos currículos das escolas sobre o processo de morte e morrer, especialmente em ambientes multiculturais.5

No que se refere aos modelos de atenção, também há diferentes políticas e práticas nos sistemas de saúde que implicam a aquisição de habilidades profissionais para lidar com as situações de cuidados de fim de vida e morte.5

Diante disso, este artigo objetiva refletir sobre o processo de morte e morrer e dos cuidados necessários associados a essa fase da vida das pessoas que vivenciam a morte e de suas famílias, visando contribuir para o debate da educação para a morte e da humanização do processo de morte e morrer.

 

A VIDA, O CUIDADO E A MORTE

A vida é o grande triunfo do cuidado em saúde e exaltá-la obscurece a visão dos profissionais de saúde, interdita a compreensão de que quando a morte é inevitável, porque o curso na vida foi completado, por adoecimento ou por fatalidade, cuidar de sua morte é uma ação digna e necessária, sendo também uma importante função do profissional de saúde. A morte está presente no cotidiano desses profissionais, mas o preparo formal ainda é insuficiente, com ensino voltado para a tecnociência, mas com pouco espaço para a abordagem dos aspectos emocionais, espirituais e sociais do ser humano.4 Essa insuficiência gera dúvidas sobre o que fazer nos casos incuráveis que, fatalmente, conduzirão o indivíduo à morte.

Mas é preciso considerar que os profissionais também sofrem nesse processo, pois falar de morte e do processo de morrer exige-lhes grande esforço cognitivo e emocional, pois essa linguagem não lhes foi ensinada ou o foi de forma incipiente, no processo pedagógico de formação. Não há investimento adequado e suficiente nas formações, tanto de nível técnico quanto de nível superior que lhes permita interpretar os sentimentos que emergem nesse momento, que é único na vida de alguém. Os profissionais de saúde cuidam da dor do outro, mas não encontram o acolhimento adequado para os seus próprios sofrimentos e muitos adoecem.6

Poucos profissionais tiveram experiências que pudessem esclarecer os diversos questionamentos que surgem nesse momento inusitado de encontro. E ainda se acrescenta que, sendo o processo de morrer uma vivência subjetiva, os cuidados são singulares e sempre sob demanda, exigindo do profissional uma disposição para cuidar também única, além de capacidade de comunicação verbal e não verbal para estabelecimento de relação humana, tão essencial ao cuidado em saúde.7,8

Estudo de revisão evidencia que enfermeiras mais jovens relatam consistentemente medo mais forte da morte e atitudes mais negativas em relação aos cuidados ao paciente em fim de vida.3 Por outro lado, estudantes de Enfermagem do primeiro ano de formação informam que pensar sobre a morte é mais assustador do que a experiência real de lidar com ela.9 Tais resultados mostram o quanto a experiência de lidar com a morte pode ser diversa, na dependência do preparo e da disposição de cada ser humano.

A morte integra o desenvolvimento humano no seu ciclo vital, é uma realidade e, por mais que se tente abstraí-la e torná-la distante, ela estará presente algum dia na vida de todos. Acompanhar a morte de outrem traz à consciência de sua própria condição de mortalidade, gerando ansiedade e desconforto.3 Essa consciência é que diferencia o ser humano dos outros animais. Negá-la é uma das formas de não entrar em contato com as experiências dolorosas e de se sentir único e inesquecível. Essa idealização ressalta a fragilidade, a finitude e a vulnerabilidade humana.2

Pensar que um dia todos irão morrer, sem saber de que ou como, gera uma angústia existencial. Por isso é tão comum ocorrer uma postura defensiva de afastar-se da ideia por meio do distanciamento das situações concretas de morte. Afastar-se gera no imaginário uma forma de autoproteção como se, ao não entrar em contrato com a morte, ela pudesse não existir.

Esse afastamento não é só existencial, vai ocorrendo no cotidiano da vida das famílias. Historicamente a morte ocorria no âmbito do lar, com a participação da família, sendo aos poucos institucionalizada e incorporada ao hospital.6 Essa migração de local alterou toda a percepção sobre o processo de morrer, que se refletiu na postura das pessoas e das famílias diante dela. Não há propósitos e motivações para se participar do processo de morrer dos familiares, ao contrário, há um estranhamento, uma vez que esse processo não foi construído nas mentes desde a infância.

Para reverter esse estranhamento, deve-se criar o hábito de pensar, discutir, dialogar sobre a morte e as questões que surgem a partir daí e do momento em que a pessoa decide encarar sua própria finitude. A morte levanta questionamentos sobre a vida: como se está vivendo, quais as escolhas feitas até aquele momento.10 A morte convida todos a olharem para a vida, em todas as suas nuanças construídas até então. Algumas perguntas necessárias ao aprofundamento do estudo da morte e do processo de morrer são: você gostaria de morrer de forma aguda ou crônica? Em sua casa ou em um hospital? Quem seria seu principal cuidador? O que você faria (ou não faria) se só tivesse 24 horas de vida? E se tivesse uma semana? E se tivesse seis meses? O que você decidiria para você em relação à internação em unidade de terapia intensiva, alimentação artificial, diálise e suporte ventilatório?10 O que se identifica de forma clara e objetiva é que a morte conduz a questionamentos sobre valores e modos de viver.

A morte é algo presente, pode acontecer a qualquer momento, em qualquer lugar e em qualquer tempo, diferente do imaginário coletivo que sugere um pacto de que a morte só virá quando lhe for permitido que venha.11 Mas quando ela é inevitável, iminente, as pessoas querem deixar um legado, algo que se traduza em lembrança, registro de que elas viveram em algum tempo por aqui. Esse legado não se traduz somente em algo grandioso e nobre. Pode ser o simples ensinamento de uma receita culinária, algo que alguém faça em sua intenção, tornando-a viva naquele momento de lembrança.

Nos momentos finais de um indivíduo, além da necessidade de deixar um legado, aparecem as necessidades de resolver questões mal-elaboradas ao longo da vida; discutir sobre os papéis sociais e como sua família irá assumir responsabilidades na sua ausência. A necessidade de reconciliação com os outros, consigo mesmo e com um ser supremo é algo também muito presente nas pessoas que estão em processo de morrer. É como se a finalização da vida exigisse um término de contrato com ela e com os outros. A necessidade de despedir-se, de ter a presença de pessoas com quem se estabeleceu vínculos afetivos e satisfação nesse relacionamento é quase um pedido de licença para sair do mundo e da vida da família, dos amigos. Buscar nos gestos dos familiares a mensagem de que ela poderá partir e que os que ficam poderão se reestruturar sem sua presença.11

Essas reflexões são necessárias às equipes de cuidados paliativos que precisam trabalhar em conjunto, com comunicação interpessoal firme e constante entre si, de modo a fortalecer a colaboração interprofissional, pois uma comunicação efetiva estreita vínculos e promove mais segurança no cuidado.12 Além disso, a comunicação também precisa ser melhorada com os pacientes e com as famílias.

Na abordagem sobre a morte e o processo de morrer, a comunicação é fundamental, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. É preciso haver clareza na mensagem e adequação cultural para que não ocorram ruídos que interditem o seu entendimento. É importante considerar o emissor, a mensagem e o receptor, especialmente porque o tema é de difícil abordagem e o receptor está em situação de sofrimento.

A comunicação faz parte do cuidado e nesse processo o profissional de saúde precisa aplicar os conhecimentos técnico-científicos adquiridos, como também a sensibilidade, na qual os fundamentos humanitários de sua formação e trajetória pessoal serão de grande valor.4

As maneiras de cuidar de pessoas em processo de morte e morrer e de suas famílias precisam ser bem exploradas nos processos de formação, de modo que se trabalhem os aspectos culturais e religiosos, os tabus e as crenças das pessoas sobre a morte. Estudos de vários países mostram que um programa de educação no local de trabalho pode reduzir a ansiedade de morte e contribuir para melhorar o atendimento de enfermagem às pessoas no fim de suas vidas.3

Ainda mais, ressalta-se que ações de enfermagem no atendimento das necessidades de familiares de pessoas que estão à morte evidenciam o valor das competências interpessoais das enfermeiras no cuidado. Estudo realizado com parentes de pessoas falecidas em hospitais mostrou que a equipe de enfermagem facilita a presença da família, mantendo os membros informados, envolvidos e presentes, influenciando nos seus estados físicos e emocionais.13

Cuidar do outro é uma responsabilidade social, e o cuidado do paciente em processo de morrer é assim entendido pelos enfermeiros, por isso está para além de suas funções profissionais, convertendo-se em uma obrigação humana.14 Esse lidar com a morte alheia e com a dor do outro torna os enfermeiros vulneráveis, o que demanda apoio para que eles possam melhor ajudar a pessoa que está sob seus cuidados, sua família e a si próprio nas suas demandas emocionais e de bem-estar.14,15

Por isso, é preciso conversar sobre a morte, seja nas instituições assistenciais, seja nas de formação, pois, sem conversação, a morte permanecerá como potência próxima do outro, mas distante de nós e silenciada no processo de cuidar.

 

CONCLUSÃO

Quando se faz o exercício de olhar para essas questões de forma profunda, cria-se a possibilidade de se perceber o quão trabalhoso e complexo é a fase de despedida de alguém que está morrendo e de quanto estudo é necessário para aprender a lidar profissionalmente com essa situação: da morte do outro e de sua família, ainda mais quando não se está habituado a pensar nesse assunto.

Por isso, ainda é preciso conversar sobre a morte, trazê-la para perto de nós, torná-la íntima, conhecê-la. Na vida e no campo da saúde, especialmente, quanto mais e melhor se conhece um fenômeno, mais se aprende a lidar com ele. Portanto, para melhor cuidar de alguém que está morrendo, é preciso falar sobre a morte: sobre a dele, sobre a sua, sobre a nossa.

Lidar com o fenômeno da morte da mesma maneira com que se lida com o fenômeno do nascimento, cuidar da vida implica cuidar da morte, pois a responsabilidade profissional é com o amparo da vida: daquele que está por nascer, daquele que está por morrer.

Essa reflexão sugere que ainda seja justo e necessário gerar conhecimentos sobre a morte e o processo de morrer, sobre os cuidados a quem está morrendo e aos seus familiares, sobre os cuidados a quem está cuidando de pessoas nessas situações, pois na prática, no momento da morte, o desejo humano é de que tenhamos mãos amigas que nos amparem e confortem na nossa morte e profissionalmente que sejamos as mãos que os outros desejam ter.

 

 

Death and the dying process: we still need to talk about it

Roberta de Lima1; Alessandra Zanei Borsatto2; Danielle Copello Vaz3; Anne Caroline da Fonseca Pires4; Valéria de Paiva Cypriano5; Márcia de Assunção Ferreira6

1. Enfermeira. Doutora. Instituto Nacional de Câncer José de Alencar Gomes da Silva - INCA. Rio de Janeiro, RJ - Brasil
2. Enfermeira. Estomatoterapeuta. INCA, Ambulatório interdisciplinar da Unidade De Cuidados Paliativos. Rio de Janeiro, RJ - Brasil
3. Enfermeira. Mestre. INCA, Unidade de Cuidados Paliativos. Rio de Janeiro, RJ - Brasil
4. Enfermeira. Especialização em Oncologia Clínica. INCA, Unidade De Cuidados Paliativos. Rio de Janeiro, RJ - Brasil
5. Enfermeira. Especialização em Enfermagem Oncológica. INCA, Unidade de Cuidados Paliativos. Rio de Janeiro, RJ - Brasil
6. Enfermeira. Doutora. Professora Titular. Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Escola de Enfermagem Anna Nery - EEAN, Departamento de Enfermagem Fundamental - DEF. Rio de Janeiro, RJ - Brasil

Endereço para correspondência

Márcia de Assunção Ferreira


E-mail: marcia.eean@gmail.com

Submetido em: 12/01/2017

 

REFERÊNCIAS

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3. Peters L, Cant R, Payne S, O'Connor M, McDermott F, Hood K, et al. How death anxiety impacts nurses' caring for patients at the end of life: a review of literature. Open Nurs J. 2013[citado em 2016 dez. 12];7:14-21. Disponível em: doi: 10.2174/1874434601307010014

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